(Princípio da legalidade – Décima-primeira parte)
 
375. No aqui versado conceito de “qualificação registrária” aponta-se à partida ser ela um juízo prudencial.
 
Temos, pois, de saber que é um juízo e que é a prudência.
 
Isto o veremos brevemente, relacionando ainda este conciso exame com o tema da indicada primeira limitação do juízo qualificador registrário, cioè a de ser um juízo sobre meios e não sobre fins.
 
376. Designa-se juízo −no conceito aqui analisado− o ato intelectual de composição (afirmando) ou de divisão (negando) relativo a duas ideias (ou dois termos, dois conceitos, dois intelligibiles: o sujeito e o predicado do juízo).
 
Nessas composição e divisão de ideias (compositio et divisio idearum vel terminorum), tal já o dissera Aristóteles no Peri Hermeneias, encontram-se o verdadeiro e o falso (Bkk. 16 a 13-14), ou, em oportuna especificação para nosso âmbito do direito registral: na composição ou na divisão encontram-se o justo e o injusto registrais.
 
Isto se deve a que o justo é algo bom, ou seja, um concreto especializado do bem moral, e o que é bom, por sua vez, é um transcendental que se converte ao verdadeiro; logo, o justo é, ele também, conversível ao verdadeiro. (Transcendental diz-se o que transcende todas as categorias, está “além” delas; exs. ente, verdadeiro, bom, uno, belo).
 
O juízo é um ato do entendimento −mais propriamente dito, um ato do intelecto− que tem por signo externo a proposição (propositio), enunciação verbal (oral ou escrita) da compositio ou divisio dos conceitos. Assim, o juízo, em sentido estrito, é uma enunciação mental, ao passo em que a proposição é uma enunciação oral ou literal. Antes, pois, de proferir-se uma proposição, já seu conteúdo se formula intelectualmente. Não é incomum que, em linguagem figurada, chamemos de “juízo” uma “proposição” −e por igual falamos em “proposição mental” para referir o “juízo”. Vejamos alguns poucos exemplos de proposições (ou juízos): “Sócrates é um filósofo”; “Aristófanes é o autor de As vespas”; “Esta doação é de ser registrada”; “Este compromisso de compra e venda não pode ser registrado”.
 
377. Mas o juízo −ou proposição− de que se está a cuidar é aqui o da qualificação registrária, e já o dissemos “prudencial”: juízo prudencial.
 
Que é um juízo prudencial? É um juízo ditado pela prudência, ou, de modo mais assinalado: o juízo consequente de um discurso prudencial, de um silogismo dirigido pelo hábito (ou ao menos por um ato) da prudência.
 
Consiste a prudência em um hábito do intelecto prático −habitus intellectus practici−, ou seja, uma virtude voltada a um operável, destinada a algo por ainda cumprir-se, dirigida a uma dada regra da ação humana concreta a realizar-se: não se trata já, pois, diversamente do que ocorre com a inteligência especulativa, de um conhecimento que se exaure na própria operação cognoscitiva −apreendendo-se o que é cada coisa; a função do entendimento prático vai além da operação do intelecto especulativo, pois é generativa, ordenadora de um operável singular, concreto, de alguma forma externo −operatum quodammodo externus−, operável sobre o qual o entendimento exerce causalidade de modo preceptivo ou imperativo −per modum imperii.
 
Antecipe-se aqui uma questão que mais à frente se examinará: o operatum do juízo registral é um ato singular juridicamente seguro, um ato que concretiza uma res iusta secundum normam positivam. Josué Modesto Passos disse isto em muito lúcidas palavras: “As notas e os registros não são meras técnicas de informação −são meios de distribuir justiça! É isso que as notas e os registros têm de específico, e é a isso que devem submeter as novas tecnologias de informação”.
 
378. O juízo prudencial, ficou sobredito, é um juízo do discurso da prudência, vale dizer, um juízo que integra −e remata− o silogismo da razão prática, silogismo que assenta, como todo silogismo, em premissas (sejam elas de razão superior −verdades eternas e imutáveis, p.ex.: agir o bem e evitar o mal; o resguardo do direito de defesa; trata-se aí de verdades que se integram à noção de sabedoria. Sejam ainda as de razão inferior −verdades temporais e contingentes; v.g.: as normas meramente determinativas; essas últimas verdades, as que dizem com o conhecimento racional dos temporais −na expressão agostiniana−, participam do conceito de ciência).
 
A conclusão ou juízo consequente da argumentação prudencial, último juízo da razão prática, pode designar-se consciência (Cathrein, Zalba) −e vamos perseverar neste uso, aqui−, mas isto, em rigor, constitui uma simplificação. Parece melhor o desdobramento do juízo consequente do discurso prudencial de maneira a que, só uma de suas partes −a cognoscitiva−, deve denominar-se “consciência”, reconhecendo-se ela no âmbito da sínese ou, quando o caso, da gnome (assim: Santiago Ramírez, Gardeil, Rousselot, Gauthier, Domingo Basso). Deste modo, a sucessiva eleição de meios e o império pertencendo à prudência, não são, entretanto, próprios do que se designa de “consciência”. Por simplificação, adotaremos a palavra “consciência” como sinônima de último juízo da razão prática (embora seja apenas uma parte dele, sua parte cognoscitiva).
 
379. Parece que, de logo, devamos distinguir, para evitar confusões, duas espécies de consciência; a psicológica e a moral.
 
Consiste a consciência psicológica na percepção que alguém possui de sua própria existência, de suas sensações, de seus sentimentos, de suas ações, etc., de maneira que a consciência (psicológica) é tanto um ato (por exemplo, o do próprio pensamento, pois este tem um conteúdo perceptível pelo sujeito cognoscente), quanto uma função, uma operação mental −é o aspecto dinâmico da consciência psicológica. Robert Brennan, nas páginas aqui consultadas de sua excelente Psicologia geral, ensina que a consciência não se confunde com a inteira vida da mente, porque de muitas coisas não nos damos conta, e outras, percepcionamo-as de maneira obscura. Vejamos, a propósito, algumas ilustrações: (i) os que agora leem estas linhas, têm consciência −percepção− de que o fazem; (ii) os que meditam sobre o tema dessa “consciência”, têm consciência −ou percepção− de que meditam; (iii) quando nos lembramos de um acontecimento passado, temos consciência −ou percepção− do que nos apresenta o sentido interno da memória; (iv) temos consciência de que sentimos frio, fome, sono etc.; (v) temos consciência da imaginação, “la loca de la casa”, etc.
 
Ao passo em que a consciência psicológica é um ato e uma função vitais, já, diversamente, o que se designa consciência moral é o derradeiro juízo da razão prática, algo que vai muito além da mera percepção de coisas, porque envolve o consequente de uma argumentação e, mais que isto, de uma argumentação prática, cioè de um discurso que remata na conclusão sobre a bondade (ou, em nosso caso, a justiça) ou malícia de um ato.
 
Não pode haver consciência moral sem que haja advertência mental ou reflexão −isto é exatamente a consciência psicológica; mas esta configura um suposto da consciência moral… nec plus ultra. (A confusão dos dois sentidos de “consciência” traz problemas graves de entendimento: assim é que, faz algum tempo, um jurista brasileiro criticou a asserção de que os juízes devam sempre decidir segundo a consciência, porque entendeu este vocábulo no mero sentido de consciência psicológica ou, talvez, de liberdade negativa, qual se uma norma subjetiva dispensasse a objetiva).
 
380. A consciência moral −e não estaria de todo impróprio falar em “consciência jurídica” ou em “consciência registral”, esta para especializar o juízo de qualificação registrária−, mas eu dizia: a consciência moral é um juízo da razão prática que, assentando-se em premissas da ordem moral (e, quando o caso, também, jurídica), decide sobre a moralidade (ou, ainda, em dado quadro, a juridicidade) de um ato que (i) já se realizou (consciência consequente), (ii) está a realizar-se (consciência concomitante ou simultânea) ou (iii) vai realizar-se (consciência antecedente).
 
Consideremos um tanto mais alguns poucos pontos:
 
 (i)     a consciência (moral) é um juízo −e não uma potência diversa da própria inteligência;
 
 (ii)    a mesma consciência moral é um juízo ou ato do entendimento prático, juízo radicado no intelecto −e não na vontade, como sustentaram alguns autores (p.ex. Duns Scot e, mais recentemente, Max Scheler), que, com isto, reduziriam a consciência ao mero plano afetivo, sentimental, à capacidade de “sentir” o bem moral (não será isto o que, de algum modo, vamos encontrar na prática brasileira contemporânea de levar ao registro civil das pessoas naturais não importa quais notícias de afecções meramente subjetivas, fantasias e devaneios?). Bem o advertiu Domingo Basso, em um de seus sempre importantes estudos sobre a ética, que o próprio étimo de “consciência” −cum scire, cum alio scire, simul quasi scire, conhecer junto com outro, conhecer simultaneamente − aponta as funções racionais e não volitivas da “consciência”; claro esteja que não se nega o papel dos valores sentimentais e mesmo volitivos na formulação da consciência moral, mas isto não implica negar-lhe o estatuto cognoscitivo: consciência é conhecimento e não sentimento, conhecimento e não vontade (que é potência não cognitiva);
 
 (iii)   mas a consciência moral de que tratamos no juízo de qualificação registrária é rotineiramente restrita ao campo da consciência antecedente, porque ela −e a qualificação sempre se dirige a um registro que vai (ou não) realizar-se− precede o ato registral. Pode haver, contudo, alguma sorte de consciência simultânea do registrador quanto ao ato inscritivo que se esteja realizando; essa consciência não será, de comum, um juízo de qualificação, mas não se exclui a possibilidade de que o seja, quando o registrador chegue a uma redecisão do juízo precedente (é dizer, decide que não se registre o título que se está inscrevendo, por entender, então, ser caso de denegar o registro). A consciência consequente do registrador −aquela a que de costume se chega com o “exame de consciência”−, por mais louvável lhe seja a prática, nunca se confunde com o juízo de qualificação registral, de que é posterior.
 
Continuaremos a versar o tema, acercando-nos da questão do hábito prudencial, até para justificar a independência registral e para esclarecer sua primeira já apontada limitação.