(Princípio da legalidade – Vigésima-quinta parte)
 
461. Insistamos um tanto neste ponto acerca do convívio entre a jurisdição administrativa e a contenciosa quanto a casos de registro público.
 
Dispõe o art. 204 da Lei brasileira n. 6.015/1973 que a decisão da dúvida não interdita o uso do processo contencioso.
 
Desde os albores dessa lei, que passou a vigorar em 1976, foi comum o (muitas vezes implícito) entendimento que restringia a acepção do termo “processo contencioso” −enunciado expressamente no referido art. 204−, reportando-o a ações, p.ex., a de mandado de segurança, a demarcatória, a reivindicatória e até mesmo a que veiculasse uma pretensão direta de registro. Equivale a dizer, demandas autônomas e, especialmente, sentenças exequíveis; tal o sistema do então aplicável Código processual civil de 1973, uma decisão final (cf. arts. 162, § 1º, e 269; para o Código de processo civil de 2015, vidē § 1º do art. 203).
 
Desta maneira, admitindo-se embora, como não poderia deixar de ser à luz do texto do art. 204 da Lei n. 6.015 (Lei de Registros Públicos), possível enfrentamento, em dado caso de admissão ou negativa de um registro, entre, de um lado, uma decisão administrativa e, de outro, uma decisão contenciosa, não se cogitara, de início, pudera ser esta última um juízo interlocutório (é dizer, a decisão propícia a resolver uma questão incidental no processo −cf. § 2º do art. 162 do Cód.pr.civ. de 1973 e § 2º do art. 203 do Cód.pr.civ. de 2015).
 
Não só isto, senão que −a despeito de não ser uma consequência da tese antecedente− era entendimento comum o de que o “processo contencioso” mencionado no art. 204 da Lei n. 6015 sempre supunha o término do processo administrativo da dúvida.
 
Ainda que, pouco tempo após a vigência dessa Lei brasileira de Registros Públicos (1º-1-1976), passasse a vigorar a Emenda constitucional n. 7/1977 (de 13-4), que deu nova redação ao § 4º do art. 153 da Emenda constitucional n. 1/1969 (de 17-10), condicionando, em dadas hipóteses, o princípio da ubiquidade da justiça −ou da inafastabilidade da jurisdição−, mediante supostos de esgotamento da via administrativa (“A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido”), o fato é que não havia lei expressamente voltada ao exaurimento da via administrativa da dúvida registrária para admitir-se o recurso ao processo jurisdicional.
 
Certo é que, não se pode negar, em caso positivo de registro, com não se admitir a intervenção prévia de terceiro, evidente era a posterioridade da demanda contenciosa correspondente. Mas isto não poderia abranger os casos de denegação de registro.
 
[Averbe-se, em breve excurso, que a não admissão interventiva de terceiro no curso do processo de dúvida cedia passo depois da prolação de sentença, porque então cabia aplicar as regras processuais civis. Com efeito, a explícita enunciação legal do caráter administrativo do processo de dúvida −o que não apenas o afasta de uma nota de contenciosidade jurisdicional, senão que também de uma suposta inclusão no espectro da jurisdição voluntária− sempre conspirou contra a tese de a disciplina da apelação (recurso legalmente previsto para as sentenças no processo de dúvida −cf. art. 202 da Lei brasileira n. 6.015) importar numa regressiva e integral processualização (ab initio) deste instrumento administrativo].
 
462. Voltemos ao ponto. Coube à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça submeter a expressão “uso do processo contencioso”, tal a mencionada no art. 204 da Lei de Registros Públicos, a um quadro mais elástico, deixando de espartilhá-la ao só ajuizamento de ações.
 
Passou a entender-se, a partir de julgados dessa Corte superior, que as decisões interlocutórias jurisdicionais integram o objeto de conceito de “processo contencioso”, na referência do art. 204 da Lei n. 6.015.
 
Foi assim que se admitiu a força de julgados de recursos incidentais atinentes à inscrição de protesto contra alienação de bens (REsp 695.095 -Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. em  26-10-2006; REsp 606.261 -Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, j. em  5-4-2005; REsp 440.837 -Rel. Min. BARROS MONTEIRO, j. em 3-10-2002) ou em que, de modo intercorrente, houve decisão contenciosa de afastamento de uma recusa em averbar penhora ou registrar carta de arrematação ou de adjudicação (CC 31.866 -Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, j. em 22-8-2001; CC 30.820 -Rel. Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, j. em  22-8-2001; RMS 193 -Rel. Min. FONTES DE ALENCAR, j. em 4-8-1992; CC 21.413 -Rel. Min. BARROS MONTEIRO, j. em  4-4-1999; CC 21.649 -Rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, j. em  22-9-1999; CC 40.924 -Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, j. em  26-5-2004).
 
463. Em síntese, para concluir este capítulo, os títulos judiciais devem submeter-se à qualificação registrária, mas isto não implica possa uma decisão administrativa −entre elas, designadamente, a prolatada no processo da dúvida registrária− enfrentar com êxito uma decisão jurisdicional-contenciosa, seja esta final, seja interlocutória.
 
Apresentado que seja para fins de registro um título judicial, deve o registrador, pois, qualificá-lo, e disto poderá resultar eventual juízo negativo, com suscitação de dúvida sucessiva −ou sem ela. De toda a sorte, se o título regressar ao cartório com ordem posterior de seu registro, mais não poderá o registrador expedir juízo de indeferimento da inscrição solicitada. Já terá, então, a esfera jurisdicional apreciado, em concreto e de modo singular, uma pretensão de registro, e isto evade a competência revisora do registrador.
 
464. Questão ainda, entre outras, de frequente revolvimento na prática registral é a da exigência de comprovação do trânsito em julgado de decisões judiciais que imponham o cancelamento de inscrições prediais (vidē inc. I do art. 250 da Lei brasileira n. 6.015, de 1973).
 
Este é um ponto relevante na vida cotidiana dos registros, elevado o número de mandados judiciais, com determinação de cancelamento de inscrições, dos quais mandados não consta notícia do trânsito em julgado.
 
Para alguns, deve entender-se implícita a ocorrência da preclusão, argumentando-se −o que, a meu ver, enfrenta a realidade contraposta das coisas− ser presumível que o título judicial não se expediria sem o trânsito em julgado da decisão a que se refere.
 
Outros, entretanto, e assim me parece também, entendem que a normativa dos registros públicos não indicaria, de modo expresso, a necessidade da preclusão para o cancelamento de inscrições, se esta não houvesse de ser, ao menos formalmente, aferida pelo registrador, que, ademais, deve mencionar esta circunstância no assento que venha a lavrar.
 
465. O derradeiro suposto que se admite, de modo consagrado, por elemento da qualificação registral dos títulos judiciais diz respeito às formalidades documentárias.
 
Para logo, considere-se o ponto central de que o processo de registro −e isto se estende ao campo da dúvida registral− é, na imensa maioria das vezes, um processo documentário.
 
Vale por dizer que nesse processo documentário não têm lugar provas por meios testemunhais, de vistorias ou de exames técnicos. Disto escapam, no Brasil. os processos de retificação e de usucapião (mal designada pelo termo “usucapião extrajudicial”), porque neles já se avista a outorga de uma função de “quase juiz” para o registrador.
 
Caberia acrescentar que, no processo extrajudicial de usucapião versado no art. 1.071 do Cód.pr.civ. de 2015, assinou-se ao registrador o papel de formar o título que ele próprio registrará; trata-se aí de uma função anômala, com efeito, e, neste gênero de mescla funcional no domínio das atividades registrais e notariais, poderíamos ainda acenar para a imposição de reconhecimento de firmas pelo registrador de imóveis, nos requerimentos de averbação; ou pela previsão de expedir-se título −supostamente ainda− judicial por tabelionato de notas, assim se dá com a chamada “carta notarial de sentença”, uma e outra destas funções híbridas objeto de afirmada normatividade judiciária no Estado de São Paulo.
 
Tem-se admitido algum elastério quanto às formalidades documentárias dos títulos judiciais, e é mesmo da prática registral que, por assim dizer, “o gato se tome por lebre”, de maneira que, p.ex., ofícios se considerem mandados, termos se substituam por ofícios, etc. Isto, em parte, não parece de todo mal, sempre que se tenha certeza do teor e validez do título em sentido material, mas, em outra parte, se a praxe responde a algum receio de mal estar com o Judiciário, nisto já não me parece que um temor semelhante seja causa razoável para mitigar uma estrita observância da legalidade.