(Princípio da unitariedade da matrícula – Segunda parte)
643. Neste capítulo, havemos de excursionar por alguns caminhos que põem em relevo a importância da função social do registro imobiliário. Trataremos do simbolismo do registro predial −designadamente pelo meio documentário e de publicidade que se configura com o fólio real− e indicaremos, para ulterior exame, a relação entre o registro e a consciência humana de territoriedade.
644. Em muitas situações da dinâmica vida do direito encontramos não só uma dada conversão simbólica de algo antes expresso de modo material, físico, algo que o símbolo (por assim dizer) “espiritualiza” ou, quando menos, reduz, intensivamente, a materialidade do que se exprime, senão que, também, uma conversão de crenças, ritos, padrões de conduta e aspirações sociais num símbolo material, de que é exemplo gráfico o totem, com sua resultante −o totemismo− que, em observação de Maurice Besson, configurou-se, em “heureuse formule, comme le droit constitutionnel primitif”.
Um exemplo emblemático de conversão simbólica de instituto da vida jurídica pode indicar-se com a pena de talião −animam pro anima, oculum pro oculo, dentem pro dente, manum pro manu, pedem pro pede: isto é, “a similitude na vingança, a fim de que cada um padeça totalmente como o fez” (S.Isidoro de Sevilha). É interessante observar que o talião foi, originariamente, um modo de restrição das penas, intensiva e extensivamente, evitando-se, com isto, que elas excedessem os danos e lesões que as atraíam (limitação intensiva ou objetiva), bem como que fossem além da pessoa do culpado (redução extensiva ou subjetiva). Vale dizer, o talião foi um modo de dar medida e objeto à vingança ilimitada, evadindo-lhe os excessos tanto objetivos, quanto subjetivos.
Adotado largamente −desde o Código de Hammurabi, base suméria inspiradora frequente de ordenações normativas de muitos povos: p.ex., o babilônio, o assírio, o caldeu, até as legislações mosaica, grega, romana e visigótica−, o talião atraiu o apoio de pensadores não só da Antiguidade (assim, Pitágoras), mas também do mundo moderno (Kant, Bentham, Filangieri).
Ao tipo clássico do “olho por olho, dente por dente” −que é o do talião material− sobrevieram formas de conversão redutora do grau de materialidade: deu-se isto quer com o talião retributivo, instituído, p.ex., na Lei romana das Doze Tábuas (séc. V a.C.), nela cominando-se multa compensatória para a punição de mutilações; quer com o talião propriamente simbólico, em que se castigava o delito no órgão que permitira sua prática: assim, cortavam-se as mãos do ladrão, a língua, do caluniador. Além disso, também passou a admitir-se o talião delegado: o castigo impunha-se, então, na pessoa dos servos do culpado. Essas reduções, é verdade, provinham, em dada medida, do reconhecimento de alguma cifra negra das punições, uma vez que, v.g., não se concebia o talião para o escarmento de crimes patrimoniais se o ladrão não tivesse bens; ou não se saberia como efetivar o talião quanto aos delitos omissivos.
645. O registro imobiliário −especialmente por meio de sua manifestação com o fólio real− possui uma função simbólica, de conservação e garantia, sempre na medida que corresponda na comunidade à confiança em sua atuação ou ao temor de sua violação. A efetividade dos símbolos na vida política não se mede segundo uma óptica racionalista, mas pela inteireza das realidades humanas, o que inclui fatores culturais, psicológicos, sentimentais. Lembremo-nos aqui de que Ruth Benedict relatou, entre os dobuanos (indígenas da Nova Guiné), o poder mágico dos feiticeiros, poder que era tão temido ao ponto de haver casos em que o transgressor de tabus cair morto com o só fato de aparecer-lhe um feiticeiro à frente.
As funções de inscrição, publicidade e conservação que, historicamente, dão fisionomia própria ao registro de imóveis, e nelas podemos considerar um aspecto de simbolização, de missão substituinte dos meios materiais protetivos do domínio territorial, ou, numa expressão figurada: “o registro de imóveis é a espiritualização das paredes, dos umbrais e das muralhas da cidade”. É dizer: o registro predial mantém de maneira continuada o simbolismo que as paredes, os umbrais e as muralhas da cidade apresentavam a seu tempo; o registro é sua manifestação substituinte; a recolha espiritual da consciência de territoriedade e da necessidade de demarcação da posse territorial para a paz comunitária.
646. As paredes são as ancestrais das muralhas. As paredes emergem com a função de substituir a vigilância armada contra invasores das moradias: invasores humanos ou animais brutos, de modo que, com a construção de um recinto fechado, tem-se não apenas o reconhecimento de um período de dominação feminina, mas também o de um tempo de fixação no solo: com a edificação de paredes, “podiam os filhos brincar com segurança, sem que mais nada os guardasse; e, durante a noite, o gado podia repousar sem que lobos e tigres viessem molestá-lo” (Lewis Mumford). Mas não é só esta a função das paredes: Romano Amerio, com sua precisão habitual, nas imperdíveis páginas de seu Iota unum, fez ver que a ordinária frequência histórica da prática de certos atos humanos “entre paredes e às escondidas” −“Infatti le opere della nutrizione, della generazione e dell’egestione si esercitano dall’uomo tra le pareti e nel nascondimento”− revela o sentimento de pudor, espécie do gênero da vergonha: um sentimento anexo à percepção de um defeito da natureza (vergonha natural) ou do modo de viver (vergonha moral). As paredes, pois, são defensivas da vida física e moral.
Não é possível, além disto, passar ao largo do aspecto religioso que se atribuía ao recinto fechado, ao abrigo cercado por paredes e teto. Tomemos por exemplo −e seguindo aqui as memoráveis lições de Fustel de Coulanges− o modelo romano arcaico da celebração do casamento −a confarreatio−, casamento que foi a primeira das instituições estabelecidas pelo paganismo. A confarreatio era um procedimento solene, pelo qual a mulher era trasladada de sua própria família para a do noivo, o que implicava sua transferência de uma dada religião doméstica para outra: a mulher, com o matrimônio, desligava-se plenamente da religião de seus antepassados, de seus deuses lares, e passava a ocupar o lugar de filha de seu marido −filiæ loco. Ora, a confarreatio −por seus evidentes efeitos jurídicos, mas com manifesta pregnância religiosa− tinha início ritual com a entrega da noiva (traditio), ato que se realizava na casa da mulher.
Na sequência, havia um cortejo até a casa do noivo (deductio in domum mariti), com a noiva vestida de branco e portando uma coroa na cabeça; cantava–se então um hino (o himeneu), e o noivo carregava a mulher ao colo, simulando um rapto, e era assim que cruzava o umbral de sua moradia familiar. O umbral tinha, tanto se aventura admitir, um valor simbólico distintivo do amigo: “En las casas y ciudades (isto o diz Álvaro Calderón), el umbral de la puerta principal se hace amplio como los muros y es el lugar principal, pues allí se identifica al amigo y se comercia con el extranjero”. O umbral é signo de proteção, como ainda se extrai desta passagem de Calderón: “El peregrino que llega al umbral tiene en él su primer descanso, pero para poder entrar, antes debe rendir examen de familiaridad o ciudadanía.
O recinto fechado expande-se da moradia familiar à aglomeração de casas. Fixa os homens ao território. E é ainda hoje algo que se encontra na cidade de nossos tempos, cidade que, “com todo seu aço e seu vidro, é ainda, essencialmente, uma estrutura presa à terra, como na Idade da Pedra” (Mumford). A muralha, além de fator material da atmosfera de segurança que teve seu protagonismo nas cidades medievais, é também um símbolo da paz social, a ponto mesmo de serem frequentes nos escudos de várias cidades (cf. Patricio Randle). É ela que defende os que estão dentro da cidade, mas é também ela que impede a “fuga dos desesperados” (Mumford), a deserção diante dos perigos: as pessoas que então viviam circundando as cidades, entravam em seu recinto murado, em tempos de perigo, e ali se punham sob a segurança que a muralha concedia e simbolizava.
Do interior seguro, a muralha discrimina o exterior da cidade, “o campo aberto, sujeito às depredações dos animais selvagens, dos assaltantes nômades, dos exércitos invasores” (Mumford), ao passo que a cidade interior, a cidade murada, é aquela em que se pode “trabalhar e dormir com uma sensação de extrema segurança, até em épocas de perigo militar” (Id.).
Se já por estes indicativos parece avistável a razoabilidade da metáfora que figura o registro imobiliário na condição de muralha espiritualizada da cidade, isto ainda mais parece robustecer-se quando se pensa em que a muralha é definidora de fronteiras, demarca o solo que é da cidade, tanto quanto os muros e as paredes limitam o domínio de cada casa.
Assim é que a territoriedade −ou, por alguns de seus aspectos, a fixidez ao solo, a valorização do solo familiar− é o fator material do enraizamento (enracinement; rooting), que põe à vista a inclinação natural dos homens a estadear-se em um dado lugar, em um local demarcado, porque a sedentariedade é algo inato, o nomadismo, uma exceção induzida em geral pela necessidade: esgotamento de recursos naturais, erosão, secas, inundações etc. (Randle).
O registro imobiliário é o recipiente jurídico da consciência da territoriedade humana, e o fólio real, o meio documentário e expressivo dessa consciência.