(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Sexta parte)
 
712. À comparência ou audição notarial, seguem, na escritura pública, primeiro, a exposição e, depois, a disposição ou estipulação.
 
A exposição –expositio instrumenti publici– é a parte da escritura notarial em que se indicam (i) a causa –e outros antecedentes do ato ou contrato objeto do instrumento– e (ii) as coisas (ou objeto material) a que se refere a escritura. Ou seja, na gráfica síntese de Fernández Casado, a exposição na escritura é “la expresión de la causa y la descripción de los bienes”.
 
Não parece soar mal dizer que a exposição está para a integralidade da escritura tanto quanto as premissas para a conclusão de um discurso, e é por isto que se justifica designar esta parte do instrumento público, a exposição, com os termos “suposto” ou “antecedente”, assim a refere Giménez Arnau, afirmando que nesta fase da escrituração notarial “se establecen los supuestos que en el orden lógico y jurídico sean antecedentes de los pactos, estipulaciones o manifestaciones de voluntad que seguidamente hayan de hacer los comparecientes”.
 
Daí que possa compreender-se a visão unitária das etapas exposição-estipulação (cuja distinção, segundo Núñez Lagos, é de caráter moderno), visão unitária, p.ex., a da interessante síntese de Natalio Etchegaray: “(…) las partes exponen el negocio, mediante cláusulas perfectamente individualizadas o numeradas, yendo de lo particular a lo accesorio, pasando por lo esencial, lo natural y lo accidental del contrato, previendo asimismo las consecuencias del posible incumplimiento de las prestaciones que quedaren pendientes”. Deste modo, tem-se aí a visão sintética do todo discursivo, embora possa, analiticamente, considerar-se que a exposição está para a estipulação como as premissas para a conclusão de um silogismo.
 
713 Sem prejuízo desta perspectiva que põe à mostra o caráter lógico do desenvolvimento formativo e da expressão final da escritura pública, deve estimar-se, por ser de sua história, que a exposição no instrumento notarial correspondeu, em dado tempo, a uma expressão ou sentimental, ou religiosa, ou moral, dos motivos que conduziram ao ato ou negócio; chamava-se, então, arenga.
 
É muito possível que algum excesso racionalista seja inculpável desta designação, arenga, que corresponde ao dito fastidioso, ao falar o que vem à boca –garrit quidquid in buccam venit (Cícero); diz Núñez Lagos que esta expressão de motivos sentimentais, morais ou religiosos se tornou “cláusula de estilo, fija e inmutable en infinidad de documentos notariales”, e isto, este trivialismo, convertia-a, de fato, em uma arenga, ou seja, em uma discurseira enfadonha e sem utilidade.
 
Mas será mesmo que, à margem desta praxis de fórmulas estereotípicas –de mero formularismo, enfim–, a exposição nas escrituras seja algo menos relevante? Ou seja, a exposição na escritura estaria reduzida a ser uma singela expressão literal imposta somente por exigências ritualísticas?
 
714. É certo que, sem deixar de admiti-la parte necessária do instrumento público, Fernández Casado observou não haver sempre necessidade de exprimir a exposição, de maneira que seja bastante compreendê-la ao modo de uma inferência imediata, o que se conforma, de resto, com o rotineiro nas argumentações humanas, nas quais é comum, na retórica, o uso das elipses, e, na lógica, o do entimema ou silogismo abreviado (sylogismus contractus), em que uma das premissas é subentendida (este exemplo é de Fröbes: Deus iustus est; ergo crimina puniet; a premissa oculta é esta Deus iustus crimina punire debet; este outro exemplo é de José María De Alejandro: Sócrates es hombre; luego es mortal; assim não menos a expressão do infeliz subjetivismo de Descartes: cogito, ergo sum).
 
Já Quintiliano adotava o entimema por expressão comum do silogismo retórico (cf. Curtius), e De Alejandro muito bem observa que este modo discursivo “está sólo en la expresión oral; en la mente es un silogismo completo, ya que la visión mental no admite entimemas”. Tal o disse Jacques Maritain, na Petite logique,  que “dans le langage courant, –langage scientifique aussi bien que langage vulgaire, – l’enthimème est naturellement d’un usage beaucoup plus fréquent que le Syllogisme complet”.
 
Assim, parece de todo compreensível a admissão da implicitude expressiva na expositio do documento notarial, e de Capmany é a observação de que, ordinariamente, as elipses são mostras de concisão, e, quando bem lançadas, até mesmo faltantes à gramática, não ofendem os conceitos que exprimem, nem a claridade da expressão.
 
Nada disso obstante, ainda que não seja textualmente essencial, a exposição na escritura é um mecanismo de redação –diz Giménez Arnau– propício a eliminar contradições, obscuridades e ambiguidades que possam repercutir na claridade das estipulações. Daí que só se admita a elipse redacional quando se resguarde a claridade, pois, prossegue Giménez Arnau, “si la claridad no se consigue, ni el Notario estará a la altura de su misión ni el instrumento público cumplirá la suya: la escritura correrá el riesgo de provocar contiendas y pleitos”.  Bem por isto, sem afirmar um caráter sacramental para a expositio nas escrituras, pode admitir-se, com Fernández Casado, que, “si bien la falta de la expresión del contrato no le vicia ni anula, es conveniente manifestarla para dar mayor claridad al instrumento”.
 
Isto diz respeito ao dictum, ao textus scripturæ, não, porém, ao actum ou conceptus da escritura, em que se põe a questão da necessidade da etapa expositiva na gestação da tarefa notarial, ou seja, a sindicância (exposição procedimental) indispensável ao itinerário que redundará na escritura.
 
715. Ora, que coisas se inqueres na fase expositiva para a escrituração notarial?
 
Descrevem-se ou, quando menos, referem-se os elementos de atos ou negócios preexistentes ao conceptus scripturæ, é dizer, aquilo que está à raiz do que está documentando na via notarial; indica-se o estado de fato antecedente do actum que se instrumenta, seus supostos necessários ou influentes na consecução dos efeitos almejados (cf. Emérito González); os motivos que conduzem os outorgantes à manifestação de sua vontade; as relações familiares ou contratuais que orientam a fixação correta das estipulações; os deveres morais e legais que se pretendam adimplir (Giménez Arnau); a quais bens se refere a escritura; quais sua titulação e seus ônus; qual a finalidade do ato ou negócio (Chico Ortiz e Ramírez Ramírez), cēt.
 
Ainda que não se exprimam in textibus scripturarum esses elementos relevantes para a configuração do actum correspondente, ainda que –note-se bem– não caiba ao registrador de imóveis, na ordem da sobrequalificação, investigar sobre o acerto ou desacerto da conduta notarial em abster-se da expressão textual da expositio, o fato é que não deve o notário faltar a seu múnus de “consultor jurídico por excelência” (Vallet de Goytisolo), deixando de cumprir seu labor –que o mesmo Juan Vallet qualificou de artesanal– dirigido a satisfazer o respondere e, sobretudo, o cavere (o prevenir, o precatar, o acautelar), tal é a elevada missão que lhe concedeu a comunidade, a alguém, o notário, que é antes “órgano de la sociedad [rectius: comunidade] más que del Estado” (Vallet), alguém que confere segurança não pela mera assinatura de um documento público, mas, sim, pelo prestígio de sua autoridade, de sua conduta, de seu desvelo (“es el prestigio del hombre lo que da la seguridad, no la mera subscripción del documento” -Martínez Sarrión)
 
Labor artesanal, disse Vallet, porque é a tarefa de um artista do direito, de alguém que tem a função de modelar (ou seja, dar forma) a relações jurídicas, e que só o pode fazer traduzindo, juridicamente, a vontade empírica dos clientes, assessorando-os, esclarecendo-lhes as dúvidas (respondere), precavendo-os (cavere). Por isto, sentencia Luiz Figa Faura que “a formação da vontade negocial exige uma assistência humana e cordial, ética e jurídica, uma atividade maiêutica”, em que o notário intervém com as funções prévias e concomitantes de indagar, compreender, interpretar, responder, aconselhar, iluminar a vontade profana dos outorgantes, colaborar para o acordo de suas vontades (a conciliação e a mediação participam da natura officii notariorum) –e tudo isto corresponde mais diretamente à expositio da escritura, embora também apareça, repercutido, na consequente estipulação.
 
Assim, se a exposição pode ser, textualmente, reduzida em elipse, não deve faltar na marcha da elaboração da escritura.  Tal o diz Giménez Arnau, a expositio scripturæ não é uma necessidade formal –eis a razão porque não se submete à qualificação pelo registrador de imóveis–, mas, isto sim, uma conveniência lógica, e, acrescente-se, uma conveniência moral, jurídica e até mesmo política, uma vez que ela bem justifica a persistência da legitimidade do exercício notarial.