(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: o bem de família – parte 5)
 
Des. Ricardo Dip
 
Apresentada ao registro de imóveis competente ꟷé dizer, ao cartório que detém atribuições na circunscrição geográfica do prédio objeto da pretensão de constituir-se em um bem de famíliaꟷ, repete-se: apresentada a escritura notarial com a declaração do instituidor de que almeja destinar o imóvel para “domicílio de sua família”, declarando ele, ainda, que o deseja excluir da “execução por dívida” (art. 260 da Lei brasileira n. 6.015/1973), tem início o processo registral correspondente.
 
Esta última declaração, a exclusão da via executória, é, de si própria, inócua, pois os efeitos isentivos derivam simpliciter da lei e tampouco repercute sobre todas as dívidas, ao não afligir as anteriores à instituição.
 
Saliente-se, neste passo, a preservação do princípio da instância para a constituição do bem de família; já o acentuara Serpa Lopes, ao tempo do Regulamento brasileiro de 1939: “Embora o Bem de Família se destine à proteção da família, não se trata de uma instituição decorrente de um imperativo legal, ao qual o instituidor esteja subordinado. De modo nenhum. É um puro ato de vontade (…)”.
 
Autuada essa escritura, com os documentos que a acompanhem, e numeradas as folhas correspondentes (cf. Ademar Fioranelli), deve prenotar-se o processo formado ꟷou seja, inscrevê-lo no Livro n. 1, o Livro do Protocoloꟷ, impondo logo a normativa de regência que o oficial de registro mandará publicar o pleito “na imprensa local e, à falta, na da capital do Estado ou do Território” (deve agora entender-se: do Distrito Federal; vidē art. 261).
 
Preceituando o vigente Código civil brasileiro, no caput de seu art. 1.715, que “o bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição (…)”, essa instituição exige título e modo, ou seja, escritura pública e inscrição imobiliária permanente, o que faz invocar o que dispõe o art. 1.246 desse mesmo Código civil: “o registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo”.
 
Desta maneira, não se consideram dívidas posteriores à instituição ꟷvale por dizer, dívidas suscetíveis de ser afligidas pela constituição do bem de famíliaꟷ as que se contraiam no tempo entre a elaboração da escritura e o registro. Diversamente sustentava Serpa Lopes (ainda ao tempo do Regulamento registral de 1939): “…a publicação dos editais, com o prazo para a impugnação, é fator decisivo a respeito [refere-se ao ao medio tempore entre a escritura e a inscrição]. As dívidas contraídas até antes da publicação desses editais podem constituir matéria de impugnação. Não tendo sido esta apresentada dentro do prazo legal, a inscrição retroage até o momento da escritura”.
 
Serpa Lopes, pois, acolhia neste passo a categoria da retroprioridade exógena, o que, em bom rigor ꟷe sempre realçada a imensa autoridade deste que foi de nossos maiores juristasꟷ, sequer se ajustava ao disposto no art. 534 do Código civil então vigorante, o de 1916: “A transcrição datar-se-á do dia, em que se apresentar o título ao oficial do registro, a este o prenotar no protocolo”. Todavia, é preciso admitir que o par.único do art. 71 do antigo Código civil dava margem de razoabilidade ao entendimento sustentado por Serpa Lopes, ao ditar-se na lei que “A isenção se refere a dívidas posteriores ao ato [mas, qual ato?, o da escritura ou o do registro?], e não às anteriores, se verificar que a solução destas se tornou inexequível em virtude de ato da instituição”. Diferentemente, Carvalho Santos reportou o tempo das dívidas posteriores ao da instituição do bem de família, com que, parece, e ainda que implicitamente, pôs-se em harmonia com a referida norma do art. 534.
 
Se a dívida se instrumenta por escritura pública, a indicação de sua data abrange-se pela fé notarial, de sorte que sua anterioridade ou posterioridade em relação ao protocolo do título relativo ao bem de família é de pronta aferição. Em vez disto, se a dívida se veicula por título de origem particular, incluso dando-se o caso de terceiro beneficiar-se da instituição do bem de família, considerar-se-á datado o documento segundo as hipóteses inscritas no par.único do art. 409 do atual Código de processo civil, a saber: (i) no dia em que foi registrado; (ii) desde a morte de algum dos signatários; (iii) a partir da impossibilidade física que sobreveio a qualquer dos signatários; (iv) de sua apresentação em repartição pública ou em juízo; (v) do ato ou do fato que estabeleça, de modo certo, a anterioridade da formação do documento. Carvalho Santos já se referira a esta questão, observando que os efeitos da via executória poderiam recair de logo sobre o imóvel, tanto que provada a precedência da dívida à instituição do bem de família, mas, disse ele, “quanto aos instrumentos particulares, a data é a da transcrição do registrado, aplicando-se ao caso o que dispõe o artigo 135” [do Cód.civ. de 1916: “O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na disposição e administração livre de seus bens, sendo subscrito por duas testemunhas, prova as obrigações convencionais de qualquer valor. Mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros (art. 1.067), antes de transcrito no registro público”]. O problema solve-se designadamente na via jurisdicional, já por meio de execução da dívida anterior sem isenção da penhora do bem de família, já de maneira incidente ou em embargos de terceiro, dando-se a impugnação da anterioridade.
 
Não o diz explicitamente a lei, mas antes da publicação do edital a que se referem os arts. 261 e 262 da principal normativa brasileira dos registros públicos, cabe a qualificação registrária do título, assim o observou corretamente Fioranelli: “Não existindo dúvidas ou tendo sido estas sanadas pelo interessado ou ainda quando ocorrer de a dúvida ter sido julgada improcedente, o Oficial, nos termos do art. 262 da Lei 6.015/73, elaborará o edital a ser publicado (…)”. Com efeito, é da letra do caput do apontado art. 262 que se publicará o edital correspondente “se não ocorrer razão para dúvida” ꟷe a razão para a dúvida é a objeção ao pleito de registro (art. 198), o que supõe exatamente a qualificação negativa.
 
Neste capítulo, abdicando do exame dos supostos genéricos propícios à qualificação, importa aqui examinar o tema da possibilidade de constituir-se em bem de família imóvel gravado por hipoteca. Beviláqua entendeu incabível nesta hipótese a instituição: “O prédio deve estar livre de hipoteca (…)”, e Serpa Lopes, também abonado confessadamente da posição de Eduardo Espínola, disse que o bem de família estabelece uma relação jurídica que, por seus efeitos, impede a concomitância da hipoteca: “Aqui não se faz mister um estado de insolvência declarado, pois que, pelo próprio vínculo, o imóvel está subordinado a uma dívida”. Parece ser também este o entendimento de Ademar Fioranelli, que nega possa vir o imóvel “a ser hipotecado, isto porque a impenhorabilidade é da própria essência do bem de família”. E, com efeito, não se vê como harmonizar o predicado da inalienabilidade e impenhorabilidade do imóvel instituído bem de família com o suposto do poder de seu constrangimento resultante, ipso iure, da garantia hipotecária.
 
Dispõe a Lei brasileira n. 6.015, de 1973, que, não ocorrendo “razão para dúvida, o oficial fará a publicação, em forma de edital, do qual constará: I- o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio; II -o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial” (art. 262).
 
A subsistência deste preceito, ante o vigor póstero do art. 1.714 do Código civil brasileiro, é objeto de controvérsia. De um lado, p.ex., Milton Paulo de Carvalho Filho e Zeno Veloso opinam no sentido da revogação tácita da norma do art. 262 da Lei de registros públicos; em contrapartida, Ademar Fioranelli, Luís Ramon Alvares, Arnaldo Rizzardo e, parece, Paulo Nader, apoiam, inter plures, a tese da sobrevivência desse art. 262 ꟷcorrente a que também adiro pelos motivos adiante referidos.
 
O conflito, neste passo, põe-se entre o critério da inteira regulação da matéria do bem de família pelo Código civil ꟷem tempo sucessivo ao da Lei n. 6.015ꟷ e o critério da especialidade da Lei de registros públicos: este, previsto no § 2º do art. 2º do Decreto-lei n. 4.657/1942 (“A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”); aquele, contemplado na parte final do § 1º do mesmo art. 2º: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
 
Sem deixar de reconhecer uma inaugural razoabilidade na tese de insubsistência do art. 262 da Lei n. 6.015, quer parecer que o tema da publicação dos editais é de natureza processual, menos propício ao Código civil que à normativa registrária: há terceiros interessados ꟷpotencial ou atualmente interessadosꟷ a que é necessário, por justiça, e convém, por previdência, dar notícia formal do processo de registro do bem de família.
 
A este argumento concorre ainda o das vantagens mais esperadas do que efetivas, é certo, da publicidade ampla da pretensão institutiva da imunidade executória. Isto, conceda-se, não retira a força de uma crítica de Zeno Veloso, no sentido de que, ao fim, a publicação do edital ostente algo de burocrático, na medida em que, com ou sem a reclamação sucessiva ao edital, não se excluirão de salvaguarda as dívidas anteriores à instituição do bem de família.
 
Todavia, o ponto clave, meo iudicio, em favor da vigência do versado art. 262 da Lei brasileira de registros públicos está em sua afeição ao preceito constitucional de garantia formal do contraditório, tema preliminar de toda possível discussão de mérito (inc. LV do art. 5º da Constituição federal de 1988: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). De admitir a revogação desse art. 262, ter-se-ia, de conseguinte, uma possível incompatibilidade constitucional com a lacunaridade correspondente no Código Civil.