Sabe-se bem do tema.
O artigo 1.848 do Código Civil determina que, no testamento, a validade da restrição dos poderes de propriedade depende de “justa causa”:
Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
§ 1o Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa.
§ 2o Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros.
A doutrina, de modo majoritário, advoga que a mesma restrição de testar deve ser aplicada no momento de doar. Para que bens da legítima possam ser doados com cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade, seria necessário indicar “justa causa”.
Esse entendimento já foi adotado, inclusive, pelo E. TJSP (p.ex., Ap Cível nº 0024268-85.2010.8.26.0320 – …Manifesta, pois, a intenção de o legislador reduzir os poderes do testador em relação à legítima. Por essa razão, presente a mesma “ratio legis” (“Ubi eadem ratio ibi idem ius”), não há como afastar a aplicação extensiva do art. 1848, “caput”, às doações feitas aos herdeiros, consideradas adiantamento de legítima (art. 544, do Código Civil). Não fosse assim, estaria aberta a via para burlar a restrição imposta pelo art. 1848, “caput”: bastaria que o titular dos bens os doasse em vida aos filhos, para que pudesse gravá-los sem nenhuma justificativa…) e pelo E. STJ (p.ex., REsp. nº 1.631.278 – PR …A doação do genitor para os filhos e a instituição de cláusula de inalienabilidade, por representar adiantamento de legítima, deve ser interpretada na linha do que prescreve o art. 1.848 do CCB, exigindo-se justa causa notadamente para a instituição da restrição ao direito de propriedade).
Os motivos geralmente apontados para o entendimento de que a “justa causa” se aplicaria na doação em antecipação de legítima são os seguintes:
(i). Necessidade de evitar burla ao espírito do art. 1.848 do Código Civil;
(ii). Compatibilização da proteção da propriedade que é antecipada da legítima com o direito de dispor do doador;
(iii). Função social da propriedade; e
(iv). Existência de diversas regras comuns entre testamento e doação.
Com a vênia, os motivos indicados não se sustentam:
(i). A possibilidade de “burla”, de modo genérico, não pode ser motivo de inovação legal pelo intérprete, sob pena de arbítrio; pelo contrário, como se verá abaixo, a burla pode ser incentivada pela inovação legal pretendida;
(ii). A compatibilização pretendida já está regrada na doação, especialmente no artigo 549 do Código Civil, ao estatuir a necessidade de aceitação do donatário (o que é o ponto sacral para a compreensão do tema) – se o donatário não quiser a constrição, basta não aceitar a doação (eis a medida de compatibilização: o contrato);
(iii). A função social da propriedade não é um conceito fechado – no caso concreto, a função social poderá ser mais cumprida com a doação de “uma casa com a cláusula de inalienabilidade”, do que a manutenção do bem no patrimônio de uma pessoa que deixará o imóvel fechado e sem qualquer uso (e se a função da propriedade deixar de existir? Aí o problema é outro e o gravame poderá ser extinto, conforme abaixo explicado); e
(iv). A existência de similitudes não pode gerar confusão conceitual – é justamente nas diferenças que se justifica a existência dos diferentes institutos
Por que a justa causa não se aplica às doações em antecipação de legítima?
Os motivos pelos quais não deve ser exigida “justa causa” na gravação de bens da legítima na doação são os seguintes:
(i). Testamento é negócio jurídico unilateral de eficácia futura (ou seja, não há uma parte atual que corresponda ao “donatário”), ao passo que a doação é negócio bilateral, contrato (o donatário aceita a disposição se quiser, se não quiser, não aceita*);
(ii). A existência do dever de motivação só foi trazida no Código Civil de 2002 (que foi discutido por décadas) ao testamento, não à doação;
(iii). A razão de ser da justa causa é simples: a Constituição garante o direito de herança e o Código Civil, regulamentando ela neste ponto, define que o direito de herança se reflete pela preservação da legítima – e, uma vez que a gravação dos bens pelo testador poderia ocasionar, teoricamente, o esvaziamento do próprio direito de propriedade (p.ex., é prevista a cláusula de inalienabilidade a um bem que o herdeiro sabe que jamais conseguirá usar ou fruir, como meio de punir ele por ser um filho desregrado), o legislador criou um mecanismo de controle do eventual abuso de direito “de testar”; ora, na doação, o donatário recebe se quiser, se não estiver de acordo, não aceita.
(iv). A doação é um ato que reflete a saúde da família, a justa causa é uma proteção contra a doença dela;
(v). A lei, reitere-se, não contém essa obrigação e negócios jurídicos de liberalidade devem ser interpretados em favor do disponente (se o doador não tem a obrigação de motivar e não quer, não deve ser compelido a o fazer);
(vi). Na prática, muitas vezes as partes não querem motivar ou simplesmente não enxergam uma “justa causa” (e o que uma exigência como tal ocasiona é quase uma obrigação de falsear uma declaração)
(vii). “Justa causa”, como abaixo por fim exposto, é conceito que somente faz sentido à hipótese de litígio, o que pode ser imposto há quem está em paz.
Deve-se pontuar. Afinal, o que é a “justa causa” do artigo 1.848?
Por mais que se possa embater sobre várias definições (se é elemento objetivo ou subjetivo, se demanda prova ou não), deve-se ser simplório: “justa causa” é o argumento de contestação que o testador expõe, para o juízo e herdeiros, na hipótese de o herdeiro discordar da gravação dos poderes do bem. É uma hipótese de defesa antecipada de litígio possível, que pode ser mais ou menos fraca.
O que se pretende com a “justa causa” é convencer o herdeiro (ou, quando não possível, ao menos o juízo) de que a gravação se faz necessária.
Por outro lado, se, na doação, não houver exposição de “justa causa” para a gravação dos bens, é porque a “causa” é uma questão restrita à intimidade familiar. Não poderiam duas partes, maiores e capazes, serem obrigadas a expor possíveis fraturas familiares, sem qualquer exigência legal literal.
A confusão entre constituição (plano de validade) e manutenção (plano da eficácia) das gravações da propriedade
Deve pontuar, por fim, que toda a discussão que se faz em torno do tema perde seu sentido ao se observar que, no plano de eficácia, as gravações de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade que pesem sobre a propriedade podem ser extintas por ordem judicial. Isto é, independentemente da necessidade de haver justa causa (ou de os bens gravados virem da legítima ou da disponível), fato é que, sempre, a qualquer momento, a pessoa proprietária de bem gravado poderá se socorrer do judiciário, pedindo a sub-rogação dos gravames ou mesmo a extinção deles, se houver motivos atuais que demandem a providência jurisdicional.
Portanto, o que se deve firmar é que, em situação concreta, pode sim ser recomendado que, na doação de bens em antecipação de legítima, com gravação de impenhorabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade, seja exposta a justa causa. Porém, não se pode obrigar as partes a antever litígio onde há pleno consenso, ou briga onde há amor.
Em outro pensar, existiria causa mais justa do que a de a gravação ser feita a pedido do próprio herdeiro, que entender que aí há medida que lhe é protetiva? Não. E, em tal hipótese, o herdeiro poderia no futuro obter em juízo a extinção da constrição, em razão de necessidade não antevista? Claro que sim.
Finalmente, vale consignar que esta visão (de que justa causa não é elemento de validade em doações) é respeita no meio notarial. Por quê? Porque os notários lidam com a questão todos os dias e sabem que, na prática, a gravação dos imóveis, no mais das vezes, é pedido dos próprios beneficiados e, quando não há consenso sobre a gravação, é provável que os herdeiros simplesmente não aceitem a doação. Como se sabe, o direito precisa se voltar ao mundo dos fatos e urge-se que não se inove onde não há litígio, ou naquilo que vai bem.
*Fernando Blasco é o 30º Tabelião de Notas de São Paulo/SP – www.cartorioblasco.com.br
(Trechos extraídos de: Direito Notarial Brasileiro – Reconstrução de conceitos, FDC Blasco, obra inédita. Reprodução reservada)