REGISTROS SOBRE REGISTROS (nº 158)
(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 19)
Des. Ricardo Dip
804. O Código civil brasileiro, em seu art. 1.421, prevê, como de caráter ordinário, a indivisibilidade da hipoteca: “O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação”.
Com muita clareza, o Conselheiro Lafayette decompôs essa indivisibilidade em duas proposições:
(i) a de que o imóvel, em sua integridade corporal, fica sujeito “ao pagamento da dívida toda e de cada uma de suas frações”;
(ii) a de que cada uma das partes do imóvel “fica essencialmente obrigada à dívida inteira e a cada uma de suas frações”.
Ou seja, o todo do imóvel e suas partes respondem pelo todo da dívida e suas partes.
Justificam a integralidade ou indivisibilidade da hipoteca tanto o grande problema prático de aferir as subtrações na garantia que correspondam às reduções da dívida garantida, quanto, sobretudo, o escopo de melhor assegurar o credor, a cujo benefício está destinada essa indivisibilidade (cf., brevitatis causa, entre nós, Lafayette, Affonso Fraga, Serpa Lopes, Ademar Fioranelli).
Disse Affonso Fraga, a propósito: “se o imóvel em sua totalidade e em cada uma de suas partes não fora afetado ao pagamento da dívida no seu todo e em cada uma de suas unidades, o credor poderia sofrer consideráveis prejuízos, como, por exemplo, ocorreria se ao devedor fora facultado, pelo pagamento da metade de seu débito, obter o resgate e liberação da metade do prédio”. Isto poderia induzir a conclusão de ser a indivisibilidade algo essencial ou menos próprio da natureza mesma da hipoteca, mas, tal se verá adiante, não é assim.
De toda sorte, a indivisibilidade hipotecária, prevista nesse dispositivo do art. 1.421 do Código civil nacional em vigor, persevera na tradição de nosso direito desde 1864, com a Lei n. 1.237 (de 24-9), cujos arts. 4º, § 7º, e 10, instituíram entre nós a integralidade da hipoteca, que, antes disto, não se incluíra ao lado da vedação de alienar o imóvel hipotecado (isto, sim, esta proibição de alienar, previa-se tanto no Decreto n. 482, de 14-11-1846 art. 13, quanto já com a Lei de 20 de junho de 1774, em seu § 33). Nessa mesma trilha da Lei n. 1.237, além do Código civil de 1916 (art. 758), foram enfileirar-se o Decreto n. 3.453/1865, de 26-4 (art. 239), o Decreto n. 169-A/1890, de 19-1 (art. 10) e o Decreto n. 370/1890, de 2-5 (arts. 216 e 217), guardando sempre correspondência com o aforismo cunhado, no século XVI, por Charles Dumoulin: hypotheca est tota in toto, et tota in qualibet parte ꟷa hipoteca está toda no todo e toda em qualquer cada uma de suas partes.
Vale então dizer que a hipoteca subsiste de modo integral, indivisível, ainda que a obrigação garantida ou o imóvel garante sejam divisíveis e até mesmo, de fato, se dividam: é de Lafayette a observação de que “a indivisibilidade da hipoteca é um atributo exclusivo do direito hipotecário”, ou seja, se o imóvel hipotecado e a obrigação objeto eram divisíveis, continuam divisíveis após a instituição da garantia. Prossegue o Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, tomando apoio na doutrina de Troplong, Dumoulin e Mainz: “a hipoteca não impede que o imóvel seja dividido entre os herdeiros do devedor, e a dívida, entre os do credor”, e, nesta hipótese, a garantia “subsiste sobre cada coisa nova saída da divisão”, ou seja, “se um prédio é dividido em dois, a hipoteca sobre ele existente ficará a onera ambos, respondendo cada um deles pela totalidade da dívida garantida” (Rui Pinto Duarte).
Não diversamente, lê-se em Dídimo da Veiga, que “a indivisibilidade da hipoteca não afeta a divisibilidade da obrigação principal nem é por ela de modo algum influenciada; considerando que ela tanto atua para o efeito de continuar a gravar todos os prédios hipotecados, apesar de paga em parte, como que o imóvel hipotecado a mais de uma dívida conserva-se gravado in totum apesar da liberação de qualquer dos devedores e, ainda mais, que a indivisibilidade conserva inteira a garantia hipotecária em favor de um dos co-credores, apesar de pagos outros…”. E Serpa Lopes: “Se houver divisão da coisa, a hipoteca fica mantida, pela totalidade do crédito, tanto no que ficar com o devedor como na parte transferida ao adquirente”.
805. Ainda para quem ꟷassim, Nalini e eu próprio em nosso escrito conjunto “Hipoteca: natureza e registro” (cf. Doutrinas essenciais…, tomo V, p. 595 et sqq.)ꟷ considere a hipoteca uma instituição natural não cabe nela incluir, sub modo naturali, a indivisibilidade, seja à conta de parte essencial, seja sequer à de próprio.
Diversamente, houve tempo em que parte ampla da doutrina, considerando a ideia de que haveria inesão (ou inerência) da hipoteca ao imóvel seu objeto dando-se, pois, a característica inseparabilidade entre o prédio e a garantia, concluiu ser seu consequente a indivisibilidade hipotecária (cf. Morell y Terry). O que não se terá advertido, entretanto, é que também essa inseparabilidade resultava da lei positiva e não da natureza das coisas.
Entre os juristas brasileiros, (i) Dídimo da Veiga expressou, à partida, o juízo de que a indivisibilidade hipotecária não era da essência da garantia, mas de sua natureza (§ 171), para adiante, retificando-se, dizer que “o assento jurídico da indivisibilidade da hipoteca está não na natureza desta, mas no objetivo que dá a esta a convenção as partes” (§ 287); (ii) é a lei, disse Affonso Fraga, que, “no interesse exclusivo do credor”, reputa indivisível a hipoteca; (iii) a indivisibilidade da garantia, na lição do Conselheiro Lafayette, “não é da essência do direito hipotecário; é uma pura criação da lei, toda em favor do credor”; (iv) e no mesmo sentido Clóvis Beviláqua: “A indivisibilidade, propriamente dita, do vínculo, não é da essência da relação jurídica; é criação da lei, em benefício do crédito”.
Daí que, não se tratando, na integralidade hipotecária, de algo essencial desta garantia, sequer mesmo de um próprio dela (scl., um elemento que, sem ser a essência, nela resida), estando-se, isto sim, diante de um acidente contingente instituído pelo direito determinativo, nada impede que a lei possa admitir, além de outras exceções à regra comum dessa integralidade (vidē art. 1.488 do Cód.civ.bras.), a derrogação da indivisibilidade da hipoteca mediante acordo dos interessados.
Desta maneira, a solidariedade da hipoteca, ou seja, o fato de que, em seu todo e em cada uma de suas partes suscetíveis de divisão, o imóvel responder pela plenária satisfação do débito garantido, pode ser abdicada por meio de convenção, seja ela existente já ao tempo da constituição da garantia, seja superveniente, tampouco se impedindo, além disto, que, mediante ato unilateral, o credor hipotecário renuncie ao benefício que a lei dispôs em seu exclusivo favor (hipótese em que a renúncia há de ser averbada no ofício imobiliário).
O Código civil brasileiro, na parte final de seu art. 1.421, prevê, com efeito, excepcionar-se a indivisibilidade da hipoteca por “disposição expressa no título ou na quitação”, de tal maneira que não se impera o cariz originário da derrogação da norma legal.
806. Outra exceção à indivisibilidade da hipoteca está prevista no art. 1.488 do Código civil brasileiro de 2002: “ Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito”.
Há aqui duas hipóteses: a do loteamento de imóvel hipotecado ou a de nele sobrevir a instituição de condomínio edilício.
Disto trataremos a seguir.