O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 11)

A ética profissional é uma especialização da ética geral. Há entre ambas um relacionamento de gênero e espécie. A ética geral regula o agir em conformidade com a reta razão; a ética profissional regula, de modo especial, também segundo o ditado da razão reta, o agir no exercício de cada profissão. Pode, é verdade, afirmar-se que o traço distintivo da ética profissional esteja na diferença específica que a discrimina no gênero próximo (a ética geral), mas isto não significa, primeiro, possa haver regras especiais da ética profissional em conflito com as regras gerais da ética, nem, de resto, que estas últimas possam ser desprezadas por quem almeje observar uma efetivamente reta conduta profissional.

Daí a relevância do capítulo da moralidade pública para o bom exercício notarial, na medida em que as regras dessa moralidade pública sejam exigidas de todos os membros da comunidade política e, entre eles, com mais vigor, pelos que nela detenham autoridade ou potestade.

Estamos examinando o tema da piedade patriótica –ou, noutros termos, do patriotismo. Depois de acercar-nos da ideia de «pátria», sem cuja intelecção não compreendemos o conceito de «patriotismo», alistamos alguns dos elementos ou fatores da pátria: a terra, a língua, a religião, a herança biológica, o «querer viver coletivo” (Le Fur). Em seguida, tratamos brevemente da noção de terra, enquanto “lugar onde se nasce”, e destacamos seu vulto no respeito devido à pátria.

Vamos agora referir um pouco a importância da raça na caracterização da pátria. Não, contudo, sem antes observar que, a despeito de toda civilização começar por ser “uma adaptação ao habitat” (Leonel Franca), isto não faz da terra o elemento determinante da pátria assim o indicaram as teses de Ratzel (o fundador da antropogeografia ou geografia humana), Taine, Huntington, entre outros; é conhecida, a propósito, a afirmação de Ernest Renan, segundo quem o monoteísmo do povo judeu se explicaria porque “le désert est monthéiste” –frase atraente, sem dúvida, mas de todo falsa, porque muitas foram as tribos politeístas que viveram na região do deserto.

Da mesma sorte, a herança ética, por mais relevante se mostre, não é tampouco um fator determinante da pátria.  Elemento natural das comunidades políticas, a raça é o fator de transmissão física de suas gerações sucessivas: dela não fazemos parte por ato de liberdade, nem dela nos excluímos voluntariamente: “Pode-se mudar de terra –disse Gladstone Chaves de Melo, sem cogitar, à altura, de interferências cirúrgicas–, mas não se pode conseguir outro índice cefálico; um japonês pode naturalizar-se brasileiro, mas não pode deixar de ter olhos amendoados e tez amarela”.

A importância étnica na formação da pátria é tão eminente que levou a excessos, assim à ideia de supremacia racial (p.ex., com o Conde Gobineau, o pensador Ludwig Gumplowicz, Georges Vacher de Lapouge, Houston Chamberlain –genro do compositor Richard Wagner), ideia que deu nutrição a nacionalismos exacerbados, bastando reportar-nos aqui ao nacional-socialismo alemão.

Sem embargo, entretanto, da influência da etnia na gestação dos povos, o fato é que mesmas áreas territoriais diversas conheceram o caldeamento de várias raças, e pátrias distintas provêm de mesmas etnias. Vejamos o que nos diz o Padre Leonel Franca:

“Se é talvez exato que, no princípio, a raça faz, em parte, a civilização, mais certo é que, ao depois, a civilização refaz a raça. (…) É verdade que o passado exerce uma influência poderosa sobre o presente. Os mortos são mais numerosos do que os vivos. Esta influência, porém, mais do que pela herança do sangue, transmite-se pela ação das instituições e do ambiente cultural modelado pelas gerações dos que passaram e plasmador dos que hoje vivem. Chegamos, assim, deslindando um equívoco fácil à noção de raça histórica, cuja unidade é menos física do que moral. Na sua constituição não entra só a identidade de sangue, muitas vezes problemática, mas de modo preponderante uma comunhão de ideias e sentimentos, de modos de agir e reagir, transmitida pela vida, pela educação e pela convivência social. Enquanto só se considera num grupo étnico o elemento físico, o seu vínculo orgânico é frouxo e vago; falta-lhe a consciência nítida de uma finalidade e a organização eficiente das vontades que a realizem.”

As conclusões da ciência são no sentido de que não há raças superiores e inferiores, falsa a afirmação de Chamberlain de que a mescla de raça implique sua debilitação: sirvam de exemplos opostos as Espanhas de Felipe II e Portugal, a que devemos nossa civilização. Disse muito bem Marcellin Boule (apud Chaves de Melo) que

“não há raça bretã, mas povo bretão; não há raça francesa, mas nação francesa; não há raça ariana, mas línguas arianas; não há raça latina, mas civilização latina.”

A reverência pelos elementos naturais da história da pátria –o respeito pela raça de nossa própria geração– não significa mais do que o piedoso respeito por nossos Maiores, pela nossa civilização. Gladstone Chaves de Melo conta, a propósito, um episódio interessante: discursava certa vez o negro José do Patrocínio Filho em uma solenidade e ali referiu-se a «nós, os latinos», sendo-lhe oposta uma crítica amigável (talvez de Olavo Bilac); mas Patrocínio estava certo, pois que “latino era pela cultura, pela civilização em que estava integrado, pela raça espiritual a que pertencia, pela herança étnica de que era portador” (Chaves de Melo, p. 37).

Da raça, enfim, recebemos a continuidade do tipo físico, mas não nos esqueçamos do que disse São Paulo aos gálatas, pois não há mais judeu, nem gentio –non est Iudæus, neque Græcus.