(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a locação – parte 1)
Des. Ricardo Dip
766. À margem da discussão doutrinária sobre a natura jurídica da locação –se de direito real ou de direito obrigacional–, é da tradição brasileira a admissão de seu acesso ao registro público.
Assim o dispunha o Código civil nacional de 1916, como se lê ao fim do caput do art. 1.197, dispositivo que, por sua letra, abarcava tanto a locação de coisas móveis, quanto de prédios: “O preceito é geral: abrange móveis e imóveis” (Clóvis Beviláqua), dirigindo-se à salvaguarda do pacto de vigência locatícia em hipótese de alienação.
A norma desse art. 1.197 do Código civil de 1916 reportava-se, simpliciter, a registro público, sem indicar-lhe a espécie: “A lei fala em registro público –observou Philadelpho Azevedo– e, tratando-se de um dos muitos casos da zona intermediária entre o direito material e o formal e em que difícil é a sua distinção, facilmente se demonstra a conveniência de sua regulação (…)”. Essa regulação logo se expediu com o Decreto n. 12.437, de 3 de janeiro de 1917; instituíra-se, por meio da Lei n. 973/1903 (de 2-1), o “ofício privativo vitalício do registro facultativo de títulos, documentos e outros papéis” (art. 1º), e foi a esse registo de títulos e documentos que se indicou, por primeiro, o acesso dos ajustes de locação (tanto de móveis, quanto de imóveis), tal se lê no art. 3º do Decreto n. 12.437/1917:
“No registro de titulos e documentos, creado pela lei n. 973, de 2 de janeiro de 1903, e pelo modo do processo que estabelece o decreto n. 4.775, de 16 de janeiro do mesmo anno, ou, nos Estados, em que não tiver sido creado, pelo da regulamentação do provimento que o supprir, continuará:
O registro do contracto de locação de cousa, com a clausula de ser o adquirente obrigado a respeital-o, no caso de alienação (art. 1.197).”
Veio a seguir o Decreto n. 4.403/1921 (de 22-12) reiterando, em seu art. 4º, que “os contractos de locação de predios urbanos -a prazo certo- poderão ser feitos por escriptura particular, registrada no Registro Geral de Titulos”.
A doutrina de Philadelpho Azevedo nisto via uma “gravíssima falha”, bem observando, a propósito, entre outros inconvenientes da previsão do Decreto n. 12.437/1917 (em cuja trilha insiste o Decreto n. 4.403, de 1921), que o registro em títulos e documentos poderia fazer-se em ofício diverso do da comarca em que situado o imóvel objeto de uma locação. Daí proclamar Philadelpho que esta “errada, infeliz e funesta” legislação havia, o “quanto antes”, de reformar-se, “pela inclusão no registro de imóveis das locações que devam ser respeitadas por terceiros”.
A legislação posterior alterou este quadro: tratando-se, com efeito, de “restrição da propriedade” (Clóvis Beviláqua, Carvalho Santos), convinha que o registro se perfizesse, tanto que a locação fosse de prédios, no ofício imobiliário: quer o Decreto n. 4.827/1924 (de 7-2), prevendo transcrever-se, “o contracto de locação no qual tenha sido consignada clausula de sua vigencia, no caso de alienação da cousa locada” (inc. II da alínea b do art. 5º), quanto o Decreto n. 4.857/1939 (de 9-11), preceituando inscrever-se (no livro n. 4, registros diversos: cf. art. 256) o “contrato de locação de prédio, no qual tenha sido consignada cláusula de vigência, no caso de alienação da coisa locada” (inc. IX do art. 178), atenderam, assim, às ponderáveis críticas da doutrina. Ressalte-se, porém, que esta destinação do pacto locatício ao registro de imóveis se vinculava à presença contratual de cláusula de vigência do ajuste em caso de alienação, persistindo a possibilidade de transcrição “no registro de títulos e documentos, para valerem contra terceiros” dos “contratos de locação de prédios, feitos por instrumento particular, não compreendidos nas disposições do art. 1.197 do Código Civil” (item 1º do art. 136 do Decreto n. 4.857, de 1939; é dizer, quando o contrato não consignasse cláusula de vigência; por igual, ao registro de títulos e documentos poderiam acorrer as locações de serviço e de coisas móveis: itens 5º e 6º da redação original do mesmo art. 136 –posteriormente, com o Decreto n. 5.318, de 29-2-1940, esses itens se renumeraram, respectivamente, como 4º e 5º).
767. A Lei brasileira n. 6.015/1973 perseverou nesta linha adotada com o Decreto n. 4.857, de 1939, prevendo o registro, no ofício imobiliário, “dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada” (n. 3 do inc. I do art. 167), de par com a previsão de averbamento, por igual no registro de imóveis, “do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência” (n. 16 do inc. II do art. 167).
Preservou-se a possibilidade de registro, nos títulos e documentos, dos “contratos de locação de serviços não atribuídos a outras repartições” (item 4º do art. 129), admitindo-se ainda registrarem-se, nesse ofício de títulos e documentos, “os contratos de locação de prédios, sem prejuízo do disposto do artigo 167, I, nº 3” (item 1º do art. 129; mais não se indicando, na Lei n. 6.015, de 1973, a anterior referência legislativa à inscrição da locação de coisas móveis, é de admitir que o registro deste pacto seja da competência do ofício de títulos e documentos por força de suas atribuições residuárias: “Caberá ao Registro de Títulos e Documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressamente a outro ofício” –par.ún. do art. 127 da Lei n. 6.015–, mas Walter Ceneviva sustenta que o item 1º do art. 129 dessa Lei, embora se refira expressamente à “locação de prédios”, dirige-se à locação em geral de bens móveis e imóveis residenciais”).
Têm-se, então, com a Lei n. 6.015, dois modos de inscrição das locações imobiliárias: o primeiro, o de seu registro stricto sensu, para fins de vigência do ajuste locatício em caso de alienação do prédio, suposto que, saliente-se, conste cláusula de vigência no pacto de locação. Requer-se ainda, já por imperativo lógico, que o contrato possua prazo determinado, requisito previsto, no mais, em norma da Lei brasileira n. 8.245/1991 (de 18-10), a de seu art. 8º, que assim enuncia: “Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel” (a ênfase gráfica não é do original). O art. 242 da Lei n. 6.015 preceitua deva o registro da locação (que se fará no livro n. 2) indicar o valor do contrato, sua renda, prazo, tempo, lugar do pagamento e pena convencional, além da indispensável menção da cláusula de vigência.
O segundo modo inscritivo da locação, tal se prevê no n. 16 do inciso II do art. 167 da Lei n. 6.015 é o da averbação “para os fins de exercício de direito de preferência”, previsão esta que foi incluída na vigente Lei de registros públicos pelo art. 81 da Lei nacional n. 8.245, de 1991. Essa averbação é exigível para que se viabilize contra o adquirente o direito de preferência aquisitiva que se atribui ao locatário conforme o disposto nos arts. 27 a 34 da Lei n. 8.245.
Lendo-se no referido art. 27 que, “no caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca” (o itálico não é do original), a vulneração dessa preferência ensejará:
(i) direito indenizatório, por perdas e danos (primeira parte do art. 33 da Lei n. 8.245/1991), ou mesmo,
(ii) com o depósito do preço aquisitivo do imóvel e de outras despesas com sua transferência, a aquisição do prédio pelo locatário, “se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no cartório de imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do imóvel”
(segunda parte do art. 33 da Lei n. 8.245/1991).