Essas questões estão longe de serem simplesmente relacionadas com a forma de cobrança ou o recolhimento do imposto. O tema tem relação com a forma e natureza jurídica desses atos. Logo, para conhecer melhor o assunto, vale a leitura dos artigos 117, 684 e 685, todos do código civil em vigor:
 
Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

Parágrafo único. Para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido subestabelecidos.

Art. 684. Quando a cláusula de irrevogabilidade for condição de um negócio bilateral, ou tiver sido estipulada no exclusivo interesse do mandatário, a revogação do mandato será ineficaz.

Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.
 
Numa análise superficial é possível concluir que ambos os institutos permitem que o procurador celebre um contrato consigo mesmo, mas as semelhanças param por aí. Os artigos supra colacionados mostram grandes diferenças entre a procuração em causa própria, que abreviaremos para “procuração” e o que costuma se denominar de negócio jurídico consigo mesmo, que chamaremos de “negócio consigo mesmo”. A grande diferença entre esses dois atos consiste no interesse de quem o mandato é outorgado.
 
No negócio consigo mesmo o representante age nos interesses do outorgante; ao passo que na procuração em causa própria o representante atua em interesse próprio.

Desta importante premissa advém as grandes diferenças entre os institutos e, consequentemente, as respostas das perguntas objeto desta coluna.
 
Trataremos primeiramente do “negócio consigo mesmo”. Justamente pelo fato de a procuração ser lavrada para tutelar os interesses do outorgante, o procurador deverá sempre agir buscando o melhor negócio jurídico para aquele. Assim, é ínsito à este ato a possibilidade de revogação. Do mesmo modo, mais uma vez – por ser outorgado para zelar pelos interesses do outorgante – caso o outorgado exorbite os poderes que lhe foram conferidos e celebre um contrato consigo mesmo, este negócio jurídico é anulável. Feitas essas considerações, fica fácil concluir que no contrato consigo mesmo o seguinte:

i. Sempre será passível de revogação;
ii. Nunca poderá ser considerado título translativo de propriedade;
iii. Não podendo ser considerado título translativo, a cobrança sempre será de procuração com valor econômico, por envolver negócios jurídicos;
iv. Não há que se falar em fiscalização do ITBI;

Passemos agora a tratar da famigerada procuração em causa própria, cuja análise exige mais cautela ante as consequências jurídicas dela advindas. A primeira premissa que precisa ser respondida é: A procuração é outorgada no exclusivo interesse do mandatário? Se a resposta for positiva, tratar-se-á, possivelmente, de uma procuração em causa própria e, incluem-se as peculiaridades do instituto.
 
Desta feita, justamente por ser outorgada no exclusivo interesse do mandatário, a procuração é irrevogável (artigos 684 e 685 do CC). Da parte final do artigo 685 criou-se o entendimento de que procuração poderá transferir para o outorgado bens imóveis, ocasião em que o instrumento de mandato consubstanciará em título translativo de propriedade, desde que sejam obedecidas todas as formalidades legais.
 
É justamente neste ponto que nasce a dúvida sobre a cobrança emolumentar e a exigência do recolhimento do imposto de transmissão.
 
Veja-se que o artigo 685 não determina que a procuração em causa própria necessariamente consubstancie o negócio jurídico que está no bojo de seu objeto, mas sim determina, por outro lado que: i) a revogação não gerará eficácia; ii) o outorgado não precisará prestar contas ao outorgante e, mais importante, in verbis, iii) podendo [o outorgado] transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais. Logo, não necessariamente a “procuração” será exercida em sua plenitude, ou seja, pode não se prestar a transferir os bens móveis ou imóveis que são objetos do negócio que consubstancia.
 
Diante desse raciocínio é possível dizer que se a “procuração” deixar expresso que o negócio jurídico não se consubstancia naquele ato e que será formalizado posteriormente uma escritura pública de (e.g.) compra e venda, esta procuração pública em causa própria deve ser cobrada como simples procuração com valor econômico e também não será exigida a fiscalização do recolhimento do imposto de transmissão. Por outro lado, caso reste claro que a “procuração” consubstancia em título translativo e reúna todas as formalidades legais, a tradução é que o negócio jurídico principal está se consumando naquela procuração pública e então a cobrança do ato notarial deve ser tal qual a daquele negócio jurídico e deve-se exigir a fiscalização do recolhimento do imposto de transmissão, tal como emanar a legislação da localização do imóvel.
 
Outros pontos importantes que devem ser observados são nos casos de procuração em causa própria para compra e venda, nos quais são utilizadas a legislação tributária do município onde se localiza o bem, pois, eventualmente, as leis municipais apontam a procuração em causa própria como fato gerador do ITBI, expressamente. Nota-se que, ainda assim, as leis acabam por ressalvar que apenas será tratado como ato de transmissão quando consubstanciarem o negócio jurídico. Veja-se, a título de exemplo os artigos 152 e 153 do Decreto 59.579/2020, Consolidação das Leis Tributárias do município de São Paulo, abaixo reproduzidos:
 
Art. 152. Estão compreendidos na incidência do imposto: (Art. 2° da Lei n° 11.154, de 30/12/91, com a redação da Lei n° 13.402, de 05/08/02, e da Lei n° 14.125, de 29/12/05)

IV – o mandato em causa própria ou com poderes equivalentes para a transmissão de bem imóvel e respectivo substabelecimento, ressalvado o disposto no artigo 153, inciso I;

Art. 153. O imposto não incide: (Art. 3° da Lei n° 11.154, de 30/12/91, com a redação da Lei n° 13.402, de 05/08/02)

I – no mandato em causa própria ou com poderes equivalentes e seu substabelecimento, quando outorgado para o mandatário receber a escritura definitiva do imóvel;
 
Conforme se verifica na lei exemplificativa acima colacionada, o ITBI não incide no mandato em causa própria quando condicionada à lavratura de escritura pública futura e definitiva do imóvel.
 
Assim, conclui-se que a procuração em causa própria não necessariamente é o suporte do negócio jurídico definitivo, a depender de eventual menção sobre futura formalização, o que ensejará ou não a cobrança pelo valor declarado, bem como da fiscalização do recolhimento do imposto de transmissão. Mas, sobretudo, o que mais importa para os atos em questão é verificar qual o propósito de sua utilização e em benefício de quem se apresenta.

*Rafael Depieri é assessor jurídico do CNB/SP. Advogado, é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas.

*Daniel Paes de Almeida é presidente do CNB/SP. 2° Tabelião de Notas de Ribeirão Preto aprovado no 7° Concurso Público para Cartórios, é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).