A parte jurídica de um momento tão delicado como o de perda de um familiar, além de ser demorada, envolve entrega de documentos, pagamento de impostos e outras despesas que, se planejadas, podem trazer menos dores de cabeça
Quantas vezes você já se questionou se existe vida após a morte? Esse é um exercício espiritual que nos faz pensar no falecimento de uma maneira menos dolorosa do que acontece quando, de fato, perdemos alguém importante. Lidar com o sentimento de falta decorrente de uma morte, o que infelizmente tem sido comum para dezenas de milhares de famílias nestes últimos meses de pandemia, nos deixa com uma sensação de vazio.
Nessas horas, em que a ausência de um ente querido parece dominar a nossa mente, dificilmente conseguimos pensar na parte burocrática. Apesar da situação delicada, sempre que possível é importante tentar agir de forma preventiva e racional, pois o custo financeiro de um inventário pode ser maior e inesperado se não for planejado.
A parte jurídica, além de ser demorada, envolve a entrega de documentos, o pagamento de impostos e outras despesas, como a do cartório e a dos honorários do advogado contratado para auxiliar na transferência da herança para os herdeiros.
Para que todas essas pendências possam ser resolvidas, é necessário dar entrada ao processo de inventário, que é o momento em que deve ser feita a identificação do patrimônio da pessoa falecida para dar continuidade à partilha de bens aos familiares próximos.
Documentos necessários para iniciar o inventário
O primeiro passo é comprovar o falecimento do familiar por meio da certidão de óbito, além dos vínculos deste com os herdeiros, podendo ser a certidão de casamento, caso haja algum cônjuge, e de nascimento dos filhos, se houver. Há, ainda, os documentos relacionados aos bens que serão partilhados. Como determina a lei, o prazo para dar início ao processo é de 60 dias, que começam a ser contados a partir da data do óbito, sob pena de multa em caso de atraso.
Mas, segundo o sócio e advogado tributário do escritório Bueno & Castro, Matheus Bueno, na prática, os inventários podem demorar meses e até anos para serem iniciados ou finalizados, ainda que comecem logo após o falecimento. “A verdade é que acaba não havendo um prazo, só que existe um custo por demorar muito para iniciar o processo. Isso porque, na hora de pagar o imposto, este último faz menção ao evento morte, então ele tem uma correção natural até o dia do recolhimento”, afirma.
Impostos
O imposto que incide sobre a herança é o ITCMD (Transmissão Causa Mortis e Doação), cuja alíquota e base de incidência varia de acordo com o estado em que o processo está acontecendo. É importante ter em mente a diferença entre o ITCMD e o ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis), que diz respeito ao imposto pago ao município quando ocorre a transferência de propriedade inter-vivos, ou seja, de pessoas em vida.
Além disso, a sócia fundadora e advogada do escritório Novotny Advogados, Renata Novotny, lembra que há regiões com algumas peculiaridades, como a questão da alíquota. Em São Paulo, por exemplo, o ITCMD tem uma alíquota única, de 4%, diferentemente do Rio de Janeiro. Confira na tabela abaixo como ocorre a cobrança no Rio:
Em alguns casos, a depender do valor da herança, há isenção do ITCMD. O advogado do escritório Bueno & Castro conta que, em São Paulo, o imposto não é cobrado quando o patrimônio é inferior a R$ 80 mil.
Bueno destaca ainda que, em situações na qual há valorização dos bens com o passar do tempo, pode existir a cobrança do Imposto de Renda (IR) sobre ganho de capital. “Imagine que os avós compraram um apartamento nos anos 1970 e o valor na declaração de IR é defasado, registrado por R$ 50 mil. Quando esse imóvel é transferido para os herdeiros, é considerado apenas o valor de mercado, que pode ser avaliado em R$ 500 mil (um ganho de R$ 450 mil), por exemplo. Na prática, o herdeiro paga apenas o ITCMD sobre os R$ 500 mil. Mas, no caso do falecido, é como se ele tivesse ficado R$ 450 mil mais rico, então o IR (espólio) deve ser pago em nome do morto”, esclarece.
Ou seja, na hora de fechar o inventário, o patrimônio deixado pelo falecido pode ter que ser usado para pagar o IR sobre a valorização do imóvel ao longo dos anos, e às vezes esse desembolso acaba ocorrendo antes de os herdeiros poderem vender ou acessar os bens. No caso dos imóveis com preços defasados, existe a possibilidade de se corrigir os valores antigos para diminuir a base de cálculo. A Receita Federal disponibiliza em seu site um programa específico para ajudar o contribuinte com essa conta.
Outros custos
Em suma, os gastos podem variar conforme a modalidade escolhida para a abertura do inventário, que pode ser judicial ou extrajudicial. Na primeira, a divisão acontece em juízo: os bens são analisados por um perito judicial para, posteriormente, serem partilhados de acordo com a avaliação, que é definida pelo juiz. O processo extrajudicial, por sua vez, é realizado diretamente no cartório, quando todos os herdeiros são maiores de idade e capazes, ou seja, têm controle das capacidades intelectuais, e estão de acordo com a divisão do patrimônio.
Além da cobrança do ITCMD, existem outras despesas de processo ou de cartório. “Se o falecido deixar algum imóvel, a decisão homologatória do inventário da partilha também deve ser atualizada e registrada no cartório do segmento, o que envolve alguns custos de transação”, comenta Bueno. E, assim como acontece com o ITCMD, pode haver diferença no valor cobrado pelos cartórios, pois cada Estado adota uma tabela diferente. “A pessoa paga o valor vigente da região onde está o empreendimento. Então, se o falecido era residente do Rio, mas tinha um imóvel em Brasília, a cobrança da tarifa vai ser realizada de acordo com os valores da tabela de Brasília”.
Honorários dos advogados
Os herdeiros também devem considerar os gastos com os honorários do advogado que vai acompanhar toda a etapa do processo de inventário. Segundo Renata, a OAB de cada estado tem uma tabela de referência, mas, a rigor, os valores são combinados diretamente entre o cliente e o profissional. Bueno complementa ao dizer que “a tabela funciona como um piso, mas, no fim das contas, o advogado chega a um consenso com a família. Há situações em que o valor do patrimônio é o que determina os custos dos honorários. Em outras, o custo pode ser definido pela própria complexidade do trabalho”.
Como é distribuída a herança?
De acordo com Bueno, existe uma primeira definição básica que é a parcela disponível e não disponível. “Quando o familiar morre, é necessário saber se há herdeiros necessários, pois estes têm que receber uma parcela da herança do falecido. Normalmente, metade do patrimônio da pessoa pode ser disposta como o morto desejava, inclusive com doação para alguém que não seja da família”, ressalta.
Já a outra parcela do recurso é direcionada para o cônjuge, filhos e até netos, por exemplo. “É raro, mas às vezes acontece da pessoa não ter mais herdeiros. Nesse caso, o patrimônio acaba indo para algum ente da organização do estado ou município”, finaliza.
O regime de casamento é fundamental para saber como fica a partilha dos bens. “Na comunhão parcial, o cônjuge que está vivo recebe o título de meeiro e tem direito à metade do patrimônio, enquanto a outra parte é dividida entre os filhos. Mas, se não houver comunhão alguma, o cônjuge é tratado como herdeiro, logo, divide toda a herança por 3 (esposo(a) e filhos)”, destaca Renata. Cada caso vai depender do regime de bens e da quantidade de herdeiros necessários.
Simulações
Veja, na situação hipotética abaixo (com dois cenários diferentes), como ficaria a divisão do patrimônio e o custo do ITCMD no caso de o falecido ter deixado um cônjuge e três filhos, além de um apartamento avaliado em R$ 1 milhão, um automóvel de R$ 85 mil e R$ 300 mil em aplicações:
No cenário acima, metade do valor da herança (R$ 692.500 equivalente a ½ do apartamento, ½ do carro e R$ 150.000 em aplicações financeiras) é, por direito, do cônjuge. Sobre esta parcela, portanto, não há transmissão e nem incidência de ITCMD. O imposto, de 4%, será devido apenas sobre a outra metade, que será distribuída entre os três herdeiros. Assim, cada filho deverá pagar R$ 9.233,33 de imposto pela sua parte da herança. Juntos, o valor chega a R$ 27.700, como mostra a tabela.
Vale lembrar que em nenhum dos casos foi simulada a cobrança do Imposto de Renda sobre a valorização do imóvel. Se na transmissão de bens do falecido aos herdeiros fosse utilizado um valor maior que o da declaração de IR do morto, incidiria uma alíquota mínima de 15%.
Outro ponto que se deve levar em consideração é que, hoje em dia, como é comum ter famílias com filhos de pais diferentes, pode haver um casal que, durante o evento da morte, tenha filhos de casamentos anteriores. Neste caso, o que pode acontecer é: dependendo da ordem do falecimento (se morre primeiro o marido ou a esposa), o patrimônio pode ser distribuído de forma desigual. “Para as pessoas que se enquadram neste exemplo, é importante avaliar antecipadamente. O testamento é super útil, apesar de ser um exercício um tanto quanto profundo”, aconselha Bueno.
Em caso de dívidas
A regra básica no registro brasileiro é que ninguém herda dívida. O máximo que pode acontecer é esta última deixada pelo falecido consumir todo o patrimônio dele e não sobrar nada para os herdeiros. Segundo Bueno, “a herança deixada pela pessoa que morreu é sempre o patrimônio líquido, ou seja, o total de direitos e ativos menos as dívidas e obrigações”. Além disso, os credores não têm direito de cobrar um valor superior ao da herança, apenas o equivalente às parcelas recebidas pelos herdeiros.
Investimentos
No que diz respeito aos investimentos em ativos financeiros deixados pelo falecido, durante o processo de inventário, a instituição financeira deve travar as aplicações e só liberar para quem for legalmente habilitado. Para isso, é necessário ter um documento que diga que o inventário foi processado ou a partilha foi concluída, em cartório ou em juízo, além de quanto cabe a cada um dos herdeiros.
Enquanto o processo não for finalizado, bens que estejam locados, ou aplicações que tenham juros e rendimentos, vão ficar bloqueados. Além disso, para fins de rentabilidade, o investimento segue como se a pessoa estivesse viva. “O banco continua depositando os dividendos, só que se o herdeiro quiser resgatar ou aplicar em outro produto, fica travado. Quanto mais tempo demorar o processo de inventário, mais exposto ele estará com relação às aplicações. E, nesse meio tempo, pode ser que o patrimônio seja afetado pela volatilidade do mercado”, explica Bueno.
Como evitar ser pego de surpresa?
Esse é um assunto delicado, mas é sempre bom planejar. Renata conta que é possível doar em vida e reservar o usufruto dos bens. “Por exemplo, o apartamento que a pessoa mora e quer deixar para os dois filhos. Ela doa os 50% para cada um e, ao mesmo tempo, reserva os direitos de usufruto para continuar morando ali. Ou, se precisar alugar, é ela quem fica com o valor do aluguel, mesmo que a propriedade já tenha sido doada para os herdeiros”.
A outra medida é fazer o testamento. Assim, a divisão dos bens e dos direitos já é estipulada com antecedência, o que facilita em algum grau, dependendo do tamanho do patrimônio da pessoa.