A morte é vida intensa demais para quem fica1, e ela, em um certo dia de 2003, cindiu sem cerimônia um casal de catarinenses. Ainda em luto, Sebastião foi ao INSS solicitar sua pensão. Ao final de um tempo, entretanto, seu pleito foi rejeitado, porque no registro do óbito, e por consequência na certidão a partir dele tirada, o sobrenome de sua falecida esposa estava lamentavelmente errado. Se a morte, especialmente para quem ama, já é uma ofensa, um dano irreversível, um erro alheio é sempre capaz de piorar as coisas.

 

Na época, chegando ao cartório, o viúvo soube que somente o juiz poderia reparar o erro. E assim se fez. O sobrenome foi retificado, porém não antes de três longos anos. Nesse período, Sebastião ficou sem a pensão. Indignado, mais uma vez bateu à porta do Poder Judiciário, desta vez querendo, em face do Estado de Santa Catarina, a indenização do seu prejuízo.

 

O Estado resistiu, isentando-se de culpa instância após instância, até que a história chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do RE 842.846. O Ministro Luiz Fux, percebendo que a pendenga extrapolava, até com folga, a perda individual do viúvo, afetou o julgamento ao sistema da repercussão geral, criando-se o Tema 777. O que fosse ali decidido repercutiria nos quatro cantos do país, servindo de regra, dali em diante, para os demais casos semelhantes, e vinculando as futuras decisões judiciais.

 

Historicamente, em situações assim, os donos de cartório, mesmo quando não tinham culpa, muitas vezes viravam réus, e precisavam enfrentar duas correntes adversas que lhe atribuíam responsabilidade objetiva perante o usuário:

 

(i) Uma primeira corrente defendia existir relação de consumo, fazendo incidir o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor2, o que não soa correto, já que os emolumentos têm natureza tributária (taxa), e os usuários são contribuintes, e não consumidores; e

 

(ii) A segunda corrente baseia-se no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal3: sendo prestadores de serviço público, os titulares de cartórios, em nome da coerência do sistema, devem respondem objetivamente. Esta não parece ser a melhor interpretação, ante a literalidade do texto constitucional, que utiliza a expressão “pessoas jurídicas”. Ora, os delegatários são pessoas naturais, que prestaram concurso público (art. 236, parágrafo 3º, da Constituição Federal4), e pagam seus impostos nesta condição. Tal dispositivo, assim, aplica-se ao Estado (pessoa jurídica de direito público), mas não aos cartórios.

 

Claramente este era um cenário de insegurança jurídica e ineficácia judicial que demandava uma solução. Então, em 2019, tantos anos depois, o julgamento do RE 842.846 finalmente aconteceu. Como a unanimidade em assuntos polêmicos é algo mesmo raro, os Ministros se dividiram em três correntes:

 

– para os Ministros Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, o Estado, mesmo sem culpa, responde objetiva e diretamente pelo erro do delegatário, desde que demonstrados o dano e o nexo de causalidade;

 

– os Ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso, a seu turno, concordaram que a responsabilidade do Estado é objetiva, porém subsidiária; ou seja, primeiro responde o titular do cartório que errou, também independentemente de culpa, e somente então, se este não tiver bens penhoráveis, o Estado vira o alvo, devendo cobrir o prejuízo;

 

– finalmente, o Ministro Marco Aurélio Mello isentou o Estado de qualquer responsabilidade, cabendo esta unicamente ao delegatário.

 

Com oito votos, a primeira corrente foi a vencedora, sendo criada a tese segundo a qual “O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”.

 

Em outras palavras, desde então, de forma vinculante, no país inteiro, a pessoa que sofreu o dano não precisa acionar o cartório; ela pode simplesmente demandar o Estado, sem precisar provar sua culpa, tendo apenas que provar a ocorrência do erro, o dano sofrido e o nexo causal entre o erro e o prejuízo.

 

Ainda conforme a tese, o Estado, se condenado, tem não só o direito, mas o dever, sob pena de improbidade administrativa, de exigir o reembolso do titular do cartório, sempre que, e somente se, constatar a existência de dolo ou culpa.

 

Tal suprema decisão, na prática, tirou os cartórios da linha de fogo a que sempre foram arrastados. Como visto, quando algo se passava, mesmo sem culpa da serventia, a tendência era sua inclusão no polo passivo da ação judicial. Só uma minoria, como Sebastião, se aventurava a mirar o Estado, enfrentando os riscos do dissenso jurisprudencial.

 

A nova tese, contudo, chacoalhou a antiga equação de risco-benefício. Desde então, o que se vê nos tribunais estaduais foram decisões em sintonia, como ilustram os acórdãos a seguir, proferidos em sete Estados diferentes:

 

Mato Grosso: “Ação de retificação de registro civil e indenização por dano moral. Transtornos causados pela serventia e pelo tabelião … Tema 777 do STF… A serventia e os tabeliães não têm responsabilidade civil pelos atos praticados no exercício de sua função pública que causem prejuízo a terceiros, e são delegatários do Estado. Portanto, este é que deve figurar no polo passivo da demanda em que se discute o dano moral, e tem assegurado o direito de ajuizar ação regressiva”.5

 

Mato Grosso do Sul: “O Supremo Tribunal Federal, ao… reconhecer a responsabilidade civil objetiva do Estado para reparar danos causados a terceiros pelo tabeliães, assegurando o dever de regresso contra o responsável, consignou que a responsabilidade do Estado, é direta, primária e solidária, premissa que permitia concluir que, além da já reconhecida possibilidade de questionamento da responsabilidade subjetiva do delegatório, a responsabilidade objetiva do Estado incidiria na modalidade solidária”, sendo “indiscutível a legitimidade do Estado para figurar no polo passivo da lide”.6

 

Paraná: “Extravio de registro de nascimento em cartório. Falha na prestação do serviço. Responsabilidade objetiva do Estado… Tema 777 do STF”.7

 

Santa Catarina: “Entendimento em divergência com a tese jurídica firmada no Tema 777 do STF, tão somente quanto à fundamentação, para fazer constar o dever de regresso contra o responsável, em homenagem ao tema 777 do STF”.8

 

Rio Grande do Sul: “Recorre o estado sustentando que foi incluído no polo passivo da demanda unicamente em vista da responsabilização solidária por ato do Tabelionato de notas. Destaca que os oficiais de registro não estão submetidos ao regime jurídico disciplinado pelo artigo 37 da Constituição Federal. … delineando que os oficiais de registro são responsáveis pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros. Entretanto, no julgamento do tema 777 o STF (RE 842.846) fixou a tese de que o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”.9

 

São Paulo: (i) “Nulidade de escritura pública de venda e compra de imóvel… Reconhecimento judicial de falsidade da procuração apresentada, porque o outorgante já era falecido ao tempo da lavratura desse ato notarial… O Estado responde pelos danos decorrentes de ato dos delegatários de serviço público, quando praticados no exercício da função. Tema 777 do STF”10; (ii) “Conforme restou decidido no julgamento do RE nº 842.846/SC, a responsabilidade do Estado é objetiva, sendo cabível o direito de regresso nos casos em que a conduta tiver sido praticada com culpa ou dolo. Reforma da r. sentença para afastar a condenação solidária do tabelião (e seus herdeiros), de modo a se restringir a condenação apenas em face da Fazenda do Estado de São Paulo”11; e (iii) “O tabelião interino não deve responder solidariamente, apenas resguardado à Fazenda possibilidade de regresso em face do tabelião interino à época dos fatos. … recurso da Fazenda Pública não provido, com observação quanto à aplicação do Tema 777, do E. STF ao feito, caracterizando a responsabilidade objetiva da Fazenda e, portanto, excluindo a responsabilidade solidária do corréu”.12

 

Rio de Janeiro: “Responsabilidade objetiva e solidária do ente público em relação aos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções delegadas, causem danos a terceiros. Incidência do Tema 777 do STF”.13

 

Como se vê, a antiga discussão acima está ficando no passado. Desde 2019 não há mais dúvida: em regra é melhor acionar o Estado, sem ter que provar culpa ou dolo, do que correr o risco numa ação contra o tabelião ou registrador, cuja responsabilidade é subjetiva.

 

O sistema ficou mais coerente e justo, afinal. Pois não custa sublinhar, um imenso conjunto de delegatários em todo o país é formado por verdadeiros heróis da resiliência, que lutam diariamente para não terminarem o mês no vermelho, sem estrutura, com um caminhão crescente de regras e procedimentos a seguir, e com a espada da Corregedoria Geral de Justiça do Estado sobre as suas cabeças. Acionar tais pessoas significa correr um grande risco, mesmo em caso de sentença favorável, de não encontrar patrimônio penhorável. Assim, sendo mais difícil ganhar; e mesmo ganhando, sendo arriscado não levar, porque acionar o delegatário?

 

Daí que a tendência, com a estabilização da jurisprudência, é que as ações futuras passem a ser dirigidas contra o Estado, e este, nas ações de regresso, quando ajuizadas, terá o ônus da prova contra o delegatário14, pois a Tese 777 é explícita em restringir a responsabilidade destes “aos casos de dolo ou culpa”.

 

O tempo revelará se a alvissareira decisão do STF será, em definitivo, motivo de alívio para notários e registradores.

 

Fonte: Migalhas

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