O casamento, inicialmente religioso, tornou-se uma instituição contratual e fundamental protegida pelo Estado, incluindo uniões homoafetivas desde decisões do STF em 2011

 

Há muito tempo o casamento deixou de ser uma prática meramente religiosa e consolidou-se como a instituição de uma relação contratual, com relevantes desdobramentos e efetiva proteção do Estado. No Brasil, o casamento passou a ter natureza jurídica com a promulgação do decreto 181/1890.

 

Para além do aspecto contratual, o casamento constitui um Direito Fundamental, de modo que a CF/88 o assegura e protege; além de ser uma expressividade da dignidade humana também prevista no texto constitucional. Nesse aspecto, só há efetividade dessa garantia se a aplicação se estender a todos os formatos de configuração familiar, ressalvados os impedimentos de capacidade civil e as vedações expressas na lei.

 

Nos últimos anos, a união estável passou a ter o mesmo valor legal que o casamento, não sendo, portanto, permitida a distinção entre as duas formas de constituição de família.

 

Com isso, se faz imperioso admitir que o casamento e a união entre pessoas do mesmo sexo têm pleno amparo no texto constitucional. É assim que vem admitindo a jurisprudência.

 

Contudo, legalmente, a discussão acerca da possibilidade do casamento e união entre pessoas do mesmo sexo ainda caminha a passos curtos, e, como diversos outros direitos fundamentais, apresenta avanços e descontinuidades.

 

Nesse contexto, em maio de 2011, o STF decidiu por unanimidade, ao julgar conjuntamente a ADIn 4.277 e a ADPF 132, que o conceito de família expresso pela CF/88 não emprega um sentido ortodoxo, mas sim uma categoria sociocultural, sendo, portanto, um direito de todos constituir família, sem limitação à casais heteroafetivos. A partir disso, o CNJ editou a Resolução 175/13, a qual impede que todos os cartórios do país se recusem a celebrar o casamento e converter a união estável entre pessoas LGBTQIAP+. Desde então, o casamento e a união entre pessoas do mesmo sexo se assentaram como uma instituição jurídica plenamente possível.

 

Por outro lado, tramita no Congresso Nacional diversos projetos de leis com objetivo de alterar o Código Civil. O PL 580/07, apresentado pelo então deputado Clodovil Hernandes (SP), dispõe sobre a inclusão da possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo no CC/2002. Entretanto, em 2009, o PL 5167/09, de autoria do ex-deputado Capitão Assumção (ES), foi apensado ao PL 580/07, proibindo expressamente que as relações entre pessoas do mesmo sexo possam ser equiparadas ao casamento ou entidade familiar.

 

Em 2023, o deputado Pastor Eurico (PL-PE) relatou a proposição na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, ocasião em que apresentou parecer pela rejeição do PL apresentado em 2007, de autoria do ex-deputado Clodovil, e a aprovação do PL apresentado pelo ex-deputado Assumção. Na ocasião, o parecer foi aprovado, com doze votos a favor e cinco contrários, cercado de polêmicas, o que representou um grande retrocesso ao movimento LGBTQIAP+.

 

O PL 580/07, agora na CDHM – Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados, teve a parlamentar Erika Hilton (PSOL-SP), primeira deputada federal negra e trans eleita na história do Brasil, designada como relatora. A deputada já apresentou Parecer de sua relatoria, reconhecendo a omissão do Parlamento brasileiro frente às demandas da população LGBTQIAPN+ por igualdade e liberdade. Na ocasião, o Parecer concluiu pela aprovação do PL de autoria do deputado Clodovil, com a adoção de substituto; e pela rejeição do PL 5.167/2009 e seus apensados.

 

Após a votação na CDHM, o PL deve seguir para a CCJ e em seguida para o Plenário da Câmara. Dada a configuração atual do Congresso, é possível que a deputada encontre dificuldades em avançar com a sua relatoria.

 

Em contrapartida, a reforma do CC/02 prevê uma significativa alteração no Livro de Família, em especial no conceito de família, casamento e união entre duas pessoas. O art. 1.514 passa a expressar que “o casamento se realiza quando duas pessoas livres e desimpedidas manifestam, perante o celebrante, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal”, e não mais “no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal”. Diversas outras alterações com o mesmo sentido foram incluídas ao longo do texto.

 

A sugestão de alteração legislativa traz um importante avanço social. Além de dialogar com a jurisprudência sobre o tema, a disposição expressa traz maior segurança jurídica ao assunto.

 

O anteprojeto que altera o CC/02 ainda deve passar por inúmeras discussões, sendo que a parte que possibilita o casamento e a união entre duas pessoas será, sem dúvidas, um ponto amplamente debatido e controverso, pois a atual composição do Congresso, altamente conservadora, não se sabe o que esperar dessas discussões, tampouco quando se dará seu efetivo vigor.

 

O primeiro país do mundo a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi a Holanda, em 2001. Na América Latina, o primeiro país a garantir esse direito foi a Argentina, por meio da mudança em seu Código Civil em 2010. Recentemente, a Tailândia se tornou o primeiro país do sudeste asiático a garantir tal feito.

 

Depreende-se, portanto, que o casamento, independente de sua configuração, trata-se, para além das previsões contratuais previstas pelo Código Civil, da expressão de um direito fundamental, conforme preceitua a CF/88. Logo, não se justifica, que tal garantia esteja limitada aos casais heterossexuais, sob pena de violação à própria dignidade da pessoa humana.

 

Como todo processo histórico de luta por conquista de direitos, esse tema apresenta avanços, rupturas e retrocessos. A descontinuidade das garantias se possibilita pelas tensões e debates políticos apresentados pelo avanço de ideias radicais, de modo que nenhum direito social está plenamente salvaguardado.

 

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Fonte: Migalhas

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