Entenda como o procedimento de due dilligences e as recentíssimas alterações à lei 13.097/15 podem proteger os adquirentes de bens imóveis contra a fraude a execução
As due diligences são o alicerce da segurança em transações imobiliárias, especialmente nas de grande porte. Por meio deste estudo, é possível analisar a situação jurídica, financeira e física do imóvel em contraposição à capacidade econômica do vendedor, em um processo que abrange a obtenção de certidões negativas de ações judiciais, verificação de ônus reais, levantamento de débitos fiscais e a confirmação da titularidade do imóvel junto aos registros competentes.
Bem por isso, o comprador não pode olvidar da importância da due diligence quando da aquisição de imóveis, especialmente se almeja evitar surpresas indesejadas que possam surgir após a conclusão do negócio, decorrentes de riscos diversos inerentes à operação.
À exemplo destes riscos, destaca-se a pendência de processos judiciais contra o vendedor capazes de reduzir-lhe à insolvência. Nessa hipótese, poderá restar caracterizada a fraude à execução, resultando na ineficácia do negócio jurídico, nos moldes do art. 792, inc. IV, do CPC.1
Ocorre que, se contra o vendedor penderem ações judiciais em outros Estados que não o da sua residência, o comprador, mesmo que de boa-fé, pode ser surpreendido com a existência desses processos ainda que adotadas todas as precauções necessárias no procedimento de due diligence.
Poderíamos nos deparar, por exemplo, com a seguinte situação: um comprador emitiu todas as certidões de ações necessárias na compra do imóvel, incluindo as certidões negativas de ações judiciais no Estado de residência do vendedor e no Estado da localização do imóvel. No entanto, vem a tomar conhecimento de processos movidos contra o vendedor em outros Estados, diversos da localização do imóvel ou da residência do vendedor. Indaga-se: há risco de que a negociação seja considerada ineficaz por “fraude à execução”?
Ilustremos com um caso hipotético: Mélvio adquiriu o imóvel em que Tício residia, situado em um município do Estado de Santa Catarina. Previamente à celebração do negócio, Mélvio realizou uma due diligence, emitindo a matrícula atualizada do imóvel e diversas certidões, incluindo a certidão negativa de ônus e ações no Registro de Imóveis e as certidões negativas de ações judiciais de Tício no Estado de Santa Catarina. Mesmo adotando todas essas precauções, após a aquisição, Mélvio foi surpreendido pela existência de uma ação de cifras milionárias contra Tício, ajuizada pelo seu credor, Caio, no Estado de São Paulo. Caio busca a invalidação da transação. Razão lhe assiste?
Para o STJ, não.
Em março de 2009, o STJ editou a súmula 375, endossando a seguinte tese: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”2. A primeira parte da Súmula já deixava claro: ausente o registro de penhora ou arresto efetuado sobre o imóvel perante o Registro de Imóveis competente, não se pode supor que o adquirente do imóvel (Mélvio) agiu em conluio com Tício para fraudar a execução.
No dia 20 de agosto de 2014, o Tribunal reiterou esse entendimento ao solidificar que a boa-fé se presume; a má-fé se prova, no julgamento REsp 956.943/PR (Tema Repetitivo 243)3. Na decisão, o Tribunal estabeleceu que a configuração da fraude à execução depende da citação válida do executado na ação judicial ou da alienação/oneração de bens efetuada após a averbação/registro da penhora.
Portanto, o registro ou a averbação da constrição judicial às margens da matrícula do bem imóvel gera presunção absoluta de conhecimento de terceiros.
E não poderia ser diferente. Com o advento da lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos)4, a matrícula se tornou a base do sistema registral imobiliário brasileiro, permitindo a centralização de todas as informações pertinentes a um imóvel em um único documento. Daí porque não é incomum ouvir que a matrícula é a “certidão de nascimento” do imóvel.
O art. 54 da lei 13.097/155, por sua vez, consubstancia o princípio da concentração dos atos na matrícula, preceituando a centralização de todas as informações relevantes sobre o imóvel em um único documento. Esse princípio vem para garantir que negócios jurídicos que envolvem a constituição, transferência ou modificação de direitos reais sobre imóveis sejam eficazes apenas se os atos jurídicos precedentes estiverem devidamente registrados ou averbados na matrícula.
Nessa linha, o §2º do art. em comento, incluído pela lei 14.382, de 27/6/226, já especificava que a demonstração da boa-fé do terceiro adquirente na transferência de bens imóveis não pressupunha a apresentação de certidões negativas de ações judiciais, justamente porque, se inexiste registro ou averbação, é de se concluir pela conformidade das informações constantes na matrícula do bem.
Ademais, com a finalidade de garantir ainda mais segurança jurídica ao terceiro adquirente, destaca-se que houve a inclusão do seguinte dispositivo na lei 13.097/15 por intermédio da recentíssima lei 14.825, de 20/3/247:
Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: […]
V – averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária.
A lei 14.825/24 vem para ratificar o que há anos era pacificado na jurisprudência do STJ: o reconhecimento da fraude à execução depende da averbação de qualquer constrição judicial no bem alienado.
Dada a maior vinculatividade da legislação em detrimento dos precedentes, obrigando todos os juízes e tribunais (inclusive o STJ), podemos concluir que as novas alterações à lei 13.097/15 constituem um marco paradigmático para o direito brasileiro no tocante à proteção aos terceiros de boa-fé.
Essa alteração legislativa, contudo, não retira a relevância de se apurar as certidões no procedimento de due dilligences. Isso porque, ainda que haja a presunção de boa-fé do terceiro adquirente, o art. 792, inc. IV, do CPC não exige a averbação da existência de processo com potencial de insolvência para a caracterização da fraude8, sobretudo por se tratar de um conceito jurídico indeterminado, que deve ser aferido casuisticamente pelo juiz. Esse cenário traz insegurança jurídica, pois há uma brecha legislativa para a materialização de fraude à execução em cada caso concreto.
De mais a mais, a jurisprudência nacional tem considerado como sinal de boa-fé do terceiro adquirente a solicitação de certidões dos alienantes nos distribuidores judiciais antes da aquisição.9
Assim, para não sofrer os efeitos da fraude de execução, o terceiro adquirente precisa estar preparado para demonstrar que não tinha, na data da aquisição do imóvel, conhecimento das demandas judiciais capazes de levar o devedor à insolvência, ou, pelo menos, que tomou as precauções necessárias para atestar essa circunstância.
Isso não significa dizer que o terceiro adquirente precise consultar todos os distribuidores judiciais do Brasil para viabilizar a aquisição do imóvel. É necessário bom senso. Aqui, vale menção a pertinente trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi, mencionado no julgamento do REsp 956.94310:
Por outro lado, convém ressalvar que, dada a multiplicidade de comarcas existentes em nosso país, nem sempre ao comprador é possível – nem viável – a identificação de todas as ações ajuizadas contra o devedor. Tomando por base o comportamento do homem médio, zeloso e diligente no trato dos seus negócios, bem como a praxe na celebração de contratos de venda e compra de imóveis, é de se esperar que o adquirente efetue, no mínimo, pesquisa nos distribuidores das comarcas de localização do bem e de residência do alienante. […]. Ciente dessa circunstância, não se está aqui sugerindo o estabelecimento de uma presunção absoluta contra o terceiro adquirente, mas de lhe impor o ônus de demonstrar a existência de um cenário fático a partir do qual seja razoável inferir que não havia como ter conhecimento da insolvência do alienante ou da existência de ações contra ele ajuizadas.
Portanto, é imprescindível que o terceiro adquirente demonstre ter cumprido seu dever de cautela, obtendo, pelo menos, certidões nas comarcas de localização do bem e de residência do alienante.
Ciente disso, agora Mélvio pode respirar aliviado, certo de que suas diligências não foram em vão e que a nova legislação protege seus investimentos, evitando surpresas judiciais desagradáveis. Afinal, como nos ensinou Cícero, “Salus populi suprema lex esto” (a segurança do povo deve ser a lei suprema), e com a segurança jurídica reforçada, os bons negócios devem prevalecer.
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1 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 19 jul. 2024.
2 STJ. Súmula nº 375. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2013_33_capSumula375.pdf. Acesso em: 19 jul. 2024.
3 STJ. Tema Repetitivo 243. https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=243&cod_tema_final=243. Acesso em: 19 jul. 2024.
4 BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm. Acesso em: 22 jul. 2024.
5 BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13097.htm. Acesso em: 22 jul. 2024.
6 BRASIL. Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14382.htm. Acesso em: 22 jul. 2024.
7 BRASIL. Lei nº 14.825, de 20 de março de 2024. Altera a Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015, para garantir a eficácia dos negócios jurídicos relativos a imóveis em cuja matrícula inexista averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14825.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2014.825%2C%20DE%2020,qualquer%20tipo%20de%20constri%C3%A7%C3%A3o%20judicial. Acesso em: 22 jul. 2024.
8 Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: [.]; IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência [.].
9 Confira, por exemplo: TJSP, Apelação Cível 1000222-91.2018.8.26.0301; Relator (a): José Aparício Coelho Prado Neto; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jarinu – Vara Única; Data do Julgamento: 31/08/2023; Data de Registro: 31/08/2023.
10 STJ, REsp: 956943 PR 2007/0124251-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 20/08/2014, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 01/12/2014.
Fonte: Migalhas
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