Impulsionados pela crescente influência das tecnologias e seus impactos sociais, o legislador tem se dedicado a estabelecer diretrizes para assegurar a proteção dos usuários no ambiente digital. Nesse contexto, o ano de 2024 se destacou como um marco de debates intensos e iniciativas voltadas à regulação das plataformas digitais no Brasil, com atenção especial à segurança e ao bem-estar de crianças e adolescentes.

Endossando esse esforço regulatório, no final de novembro, o Projeto de Lei (PL) nº 2.628/22 foi aprovado pelo Senado seguindo agora para tramitação na Câmara dos Deputados. Em discussão desde 2022, o PL tem como objetivo promover a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, por meio de medidas voltadas à segurança no uso da internet e respeito à autonomia e ao desenvolvimento progressivo do indivíduo.

A iniciativa é uma tentativa de regulamentar o uso de tecnologias por crianças e adolescentes e, segundo o texto, suas disposições são aplicáveis a redes sociais, aplicativos, sites, jogos eletrônicos, softwares, produtos e serviços virtuais.

Contudo, apesar de bem-intencionado, o PL apresenta lacunas estruturais significativas, especialmente no que se refere à ausência de definições claras e critérios objetivos para suas disposições. O texto frequentemente recorre a conceitos amplos e vagos, como “estritamente necessário”, “mecanismos de controle parental efetivos” e “conteúdo que atraia crianças”, sem fornecer parâmetros concretos para a compreensão dessas definições, abrindo, assim, espaço para interpretações divergentes.

Além disso, o projeto impõe obrigações que excedem aquelas previstas em legislações já existentes, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18 – LGPD). Um exemplo é a exigência de elaboração de Relatórios de Impacto à Proteção de Dados Pessoais (RIPDs) sempre que os dados pessoais dos usuários forem tratados “para finalidades que extrapolem a operação básica do produto ou serviço”. Essa previsão vai além do previsto da LGPD, que restringe tal obrigatoriedade aos tratamentos de dados pessoais com potencial de gerar riscos significativos às liberdades civis e aos direitos fundamentais dos titulares.

Sem mencionar, ainda, a previsão de obrigações custosas aos entes regulados, como é o caso da necessidade de elaboração de relatórios com informações detalhadas sobre denúncias e moderação de conteúdo, os quais deverão ser semestralmente encaminhados ao Poder Executivo. O que, certamente, implicará em desafios técnicos e operacionais significativos, especialmente para plataformas globais que operam em múltiplos mercados, com grande número de usuários e complexidade operacional.

Até aqui, no entanto, não há surpresa. Essa abordagem tem sido recorrente nas regulações voltadas às tecnologias emergentes no Brasil: o medo e a imposição de obrigações onerosas, baseadas em conceitos mal definidos e pouco objetivos, causando desequilibro regulatório.

Visão limitada

Nota-se uma ânsia em resolver problemas complexos por meio de restrições e soluções superficiais, como se normas genéricas e abstratas fossem suficientes para pôr fim às dúvidas e preocupações que surgem junto com as novas tecnologias e sua utilização por menores. Como resultado, as previsões acabam apenas desincentivando o desenvolvimento de aplicações em decorrência do aumento da carga regulatória que desconsidera a realidade operacional das empresas reguladas. Por isso, críticas que classificam tais normativas como vagas e dispendiosas têm se tornado frequentes e, da análise das disposições, o PL nº 2.828/22 não foge à regra.

Os temas objeto de discussão são, inegavelmente relevantes e merecedores de atenção. No entanto, a abordagem adotada acaba por ofuscar o problema central: a ausência de uma visão propositiva sobre como a regulação poderia incentivar o uso responsável e inovador das tecnologias para gerar benefícios concretos às crianças e adolescentes no ambiente digital.

Essa constatação é evidenciada nos dispositivos do PL, que veda a utilização de técnicas como perfilamento, análise emocional, realidade aumentada, realidade virtual ou realidade estendida para o direcionamento de publicidade a crianças e adolescentes.

Adicionalmente, é proibida a criação de perfis comportamentais desses usuários, inclusive nos processos de verificação de idade ou em dados grupais e coletivos, para fins de direcionamento de publicidade. Quanto aos dados coletados para a verificação de idade dos usuários, eles não poderão ser utilizados para finalidades distintas.

Se por um lado essas proibições podem ser interpretadas como medidas protecionistas para promoção da segurança dos usuários infantojuvenis, por outro, elas revelam uma visão simplista e limitada do potencial dessas tecnologias e ignoram debates relevantes, em especial, sobre como as inovações tecnológicas podem ser aplicadas de forma ética e positiva para beneficiar as crianças e adolescentes.

A proibição da utilização de ferramentas como perfilamento, análise emocional e realidade virtual em publicidade, falha em considerar que técnicas de segmentação publicitária podem ser aplicadas para oferecer materiais ou experiências adequadas ao público-alvo. A restrição de criação de perfis comportamentais ignora o seu potencial uso para personalizar experiências educativas, identificar comportamentos de risco ou promover conteúdos seguros e adequados ao desenvolvimento de menores.

Já a vedação ao uso de dados coletados para verificação de idade para qualquer outra finalidade pode limitar funcionalidades importantes, como melhorias de segurança e ajustes de interface baseados em grupos etários.

Essas limitações evidenciam uma postura predominantemente proibitiva, concentrada em restringir o uso de tecnologias sem diferenciar usos inadequados de aplicações legítimas e inovadoras. Embora tais medidas coíbam utilizações prejudiciais, seria mais eficaz regulamentar o uso dessas ferramentas, permitindo que sejam aplicadas de forma ética e em benefício dos usuários.

Nesse sentido, limitar-se a classificar as legislações recentes como vagas ou desproporcionais não é mais suficiente para enfrentar os desafios do ambiente digital contemporâneo. O problema vai além: as regulações falham em reconhecer as tecnologias emergentes como ferramentas capazes de promover o desenvolvimento digital de crianças e adolescentes e perdem a oportunidade de construir uma regulação que forneça às novas gerações os meios para navegar com segurança, autonomia e responsabilidade no ambiente digital.

O excesso de regulação, a falta de clareza e a postura proibitiva criam um cenário preocupante, marcado pela limitação da inovação e insegurança jurídica e que pode produzir um efeito contrário – reduzir o incentivo à criação de ferramentas voltadas à segurança infantil, limitar investimentos em inovação e levar crianças e adolescentes a migrarem para plataformas menos reguladas, onde os riscos são maiores.

A realidade é que normas como o PL nº 2.628/22 estão cada vez mais desalinhadas com as tecnologias e as demandas do presente. O questionamento que deve ser feito é se estamos dispostos a continuar legislando a partir de um modelo reativo e simplista ou se vamos adotar uma abordagem proativa, que reconheça o papel transformador das novas tecnologias e seu potencial para proteger crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que promove seu desenvolvimento e autonomia no ambiente digital.

O que se espera, portanto, do desenvolvimento da regulação do PL é uma postura propositiva e integrada com os players do mercado, que permita o uso de tecnologias com salvaguardas adequadas. Além disso, é fundamental que a regulação incentive a alfabetização digital, estimulando o desenvolvimento de ferramentas que promovam o uso consciente e seguro das tecnologias, tanto para crianças quanto para seus responsáveis.

A regulação, por fim, deve fomentar a colaboração entre os setores público e privado, promovendo uma articulação conjunta que envolva empresas, reguladores e especialistas, a fim de definir diretrizes que harmonizem proteção e inovação, ao mesmo tempo em que atendem às necessidades e garantem benefícios concretos às crianças e adolescentes no ambiente digital.

Fonte: Conjur

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