STF julga se incide IRPF sobre ganho de capital em doações a herdeiros com valor de mercado. Tema 1.391 confronta princípios da legalidade, capacidade contributiva e segurança jurídica

Em 25/4/25, o STF, ao apreciar o RE 1.522.312, reconheceu a repercussão geral do Tema 1.391 e, por conseguinte, alçou ao cerne da discussão a constitucionalidade da exigência de IRPF – Imposto de Renda da Pessoa Física sobre o suposto “ganho de capital” que emergiria quando o doador, em adiantamento de legítima, atribui aos bens transferidos o seu valor venal. A mera admissão de que a controvérsia suplanta o interesse subjetivo das partes já denota que se está diante de questão de elevada densidade principiológica, com reflexos diretos sobre o planejamento sucessório, a autonomia patrimonial e a coerência do próprio sistema tributário nacional.

A moldura constitucional do IRPF – alicerçada no art. 153, III, da CF/88 – exige, nos termos do art. 145, § 1º, a estrita observância do princípio da capacidade contributiva. Desde o RE 611.586/RS, relatado pelo ministro Dias Toffoli, o STF reiterou que o fato gerador do imposto pressupõe acréscimo patrimonial real, disponível e economicamente mensurável. Em outras palavras, não basta uma variação meramente contábil: é imprescindível que se cogite de riqueza nova, traduzida em efetiva disponibilidade econômica ou jurídica de renda.

É justamente nesse ponto que a interpretação fiscal encontra resistência. Na doação a título de adiantamento de legítima, o CC (art. 544) reconhece um negócio jurídico gratuito, pelo qual o proprietário antecipa aos herdeiros necessários parcela de seu patrimônio, adiantando, por liberalidade, aquilo que, de todo modo, integrará a futura herança. A operação, conquanto realizada por escritura pública com declaração do “valor de mercado”, não gera liquidez ao alienante nem lhe confere qualquer contraprestação: trata-se de mera reorganização do acervo familiar, sem a noção clássica de onerosidade.

Apesar disso, a Receita Federal entende, com amparo na solução de consulta COSIT 183/17, que a diferença entre o valor histórico de aquisição do bem e o valor de mercado atribuído na escritura enseja ganho de capital tributável. O fisco sustenta que haveria realização implícita de mais-valia, a despeito de a doação permanecer, paralelamente, sujeita ao ITCMD – Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação. Tal construção hermenêutica – tributando simultaneamente o doador (via IRPF) e o donatário (via imposto estadual) – afronta, segundo vasta doutrina, o princípio da legalidade estrita, o postulado da vedação ao confisco e a própria lógica da não-bitributação federativa.

A crítica acadêmica, capitaneada por autores como Eduardo Sabbag, recorda que “doação não gera renda, mas redução patrimonial do doador”. A incidência pretendida transformaria mera expectativa contábil em pretenso acréscimo patrimonial, subvertendo a ratio decidendi firmada pelo Tribunal no Tema 842 (lucro inflacionário) ao penalizar eventos desprovidos de liquidez. Ademais, ao se qualificar o adiantamento de legítima como se fosse alienação onerosa, esvazia-se a natureza sucessória do instituto e impõe-se ônus tributário que, em última análise, inviabiliza práticas de planejamento patrimonial estimuladas pela própria codificação civil. É imperioso ressaltar que a autonomia na organização patrimonial é um direito fundamental, e a imposição de tributos que a restrinjam deve ser vista com extrema cautela.

No plano jurisdicional, o TRF-4 – Tribunal Regional Federal da 4ª região afastou a cobrança, reconhecendo inexistir renda nova no patrimônio do alienante; já a PGFN – Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ao recorrer, defendeu que a tributação recai sobre o ganho de capital – diferença entre custo de aquisição e valor de mercado -, e não sobre a doação propriamente dita. O embate, portanto, chega ao Supremo com nítido conflito entre segurança jurídica e apetência arrecadatória, exigindo ponderação criteriosa entre competência tributária da União e direito sucessório disciplinado pelos Estados. A prevalência da segurança jurídica é essencial para a estabilidade das relações sociais e econômicas, e a tributação não pode ser utilizada como instrumento de confisco ou de desestímulo a práticas legítimas de planejamento patrimonial.

A relatoria do ministro Gilmar Mendes terá de enfrentar, de um lado, a alegação de que o art. 43 do CTN reclama efetiva disponibilidade de renda e, de outro, o argumento fazendário de que a conversão de valor histórico em valor de mercado representaria hipótese legal de realização. A questão adquire maior relevo quando se aprecia a eficácia horizontal do princípio da não-confiscatoriedade (art. 150, IV) e os limites ao poder de tributar impostos pessoais sobre renda potencial, sobretudo em operações que não geram fluxo de caixa capaz de suportar a exação.

Nesse contexto, o STF tem a oportunidade de reafirmar seu compromisso histórico com a ideia de que o IRPF não deve incidir sobre riqueza meramente virtual. A jurisprudência consolidada no Tema 808 – que afastou a tributação de juros de mora de cadernetas de poupança – ilustra essa linha interpretativa: tributável é o acréscimo patrimonial efetivo, não a recomposição ou deslocamento interno de patrimônio. Se essa coerência hermenêutica prevalecer, o Tribunal deverá repelir a cobrança, preservando a racionalidade do sistema e assegurando que a política fiscal não se converta em obstáculo à liberdade de organização patrimonial das famílias. A coerência e a racionalidade do sistema tributário são pilares da justiça fiscal, e a tributação deve ser aplicada de forma a não onerar excessivamente os contribuintes, preservando sua capacidade de acumulação e investimento.

Em síntese, o Tema 1.391 transcende o debate fazendário e dialoga com valores constitucionais de estatura elevada – legalidade, capacidade contributiva, segurança jurídica e vedação ao confisco. Ao julgar o mérito, a Corte terá de escolher entre legitimar uma construção legal-formal que desconsidera a ausência de riqueza nova, ou consolidar a noção de que a tributação sobre renda só se justifica quando existir efetivo benefício econômico para o contribuinte. Sob pena de fragilizar o sistema, a expectativa que se impõe é pela prevalência da segunda via: o IRPF deve gravar renda realizada, jamais atos gratuitos que apenas projetam a sucessão futura. A decisão do STF terá um impacto significativo na vida de milhares de famílias brasileiras, e a expectativa é que a Corte reafirme seu compromisso com a justiça fiscal e a proteção dos direitos dos contribuintes.

Fonte: Migalhas

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