(Princípio da legalidade -Trigésima-quinta parte)
 
515. A dúvida registral é, essencialmente, um processo documentário, com prova preconstituída perante o registrador: não se trata apenas do título apresentado à prenotação, mas, além dele, de eventuais documentos oferecidos dentro no tempo de sanação de deficiências (arg. dos arts. 188 e 198 da Lei n. 6.015, de 1973).
 
De dois modos deve compreender-se o tema do “processo documentário”. Pelo primeiro, positivo, tem-se que o processo documentário é o que ostenta forma literária, prova sinalizada em texto. No segundo modo, pelo aspecto negativo, o processo documentário é alheio a outros meios de prova que não sejam o documento (p.ex., depoimentos pessoais, testemunhos, perícias, etc.).
 
Além disto, o processo de dúvida registral apoia-se em prova preconstituída, quer dizer, um documento produzido antes do processo, pois, de não ser assim, (i) a apreciação judicial não seria revisora do decidido pelo registrador, senão que inovaria na qualificação; e (ii) o tempo de saneamento dos títulos estender-se-ia para além do trintídio (art. 188), em prejuízo de eventuais concorrentes no direito posicional do protocolo, acaso com títulos já bem formados.
 
  A previsão de “diligências” no curso do processo de dúvida (art. 201), segundo o entendimento prevalecente, diz respeito a aclarações do próprio registro (p.ex., inscrições anteriores ou que, doutro modo, possam interessar ao caso) e não abriga uma via inventionis de complementação do título apresentado.
 
O complemento documental extemporâneo −tanto que se entenda útil a seu desfecho− inibe a apreciação e a decisão da dúvida, que, portanto, há de julgar-se prejudicada (porque, em rigor, com a complementação, o apresentante admite a deficiência do título preconstituído). Se, diversamente, o complemento for irrelevante, nada impede, à evidência, que se conheça e julgue a dúvida, “com base nos elementos [úteis] constantes dos autos” (art. 201 da Lei n. 6.015: utile per inutile non vitiatur).
 
516. Ao tempo do Código de processo civil de 1973, teve preponderância o entendimento de que não precludiam as decisões interlocutórias no processo de dúvida, salvo as posteriores à prolação da sentença. Isto porque as regras do Código só se aplicariam, excepcionalmente, ao processo administrativo, não se prevendo, quanto à dúvida registral, o manejo de recursos incidentais.
 
No campo das exceções, as decisões incidentais pósteras à sentença (p.ex. a não admissibilidade de recurso; a negativa do beneficio da gratuidade) não poderiam ficar isentas de preclusão, porque, fora assim, não haveria modo de devolvê-las à apreciação do Tribunal.
 
Coisa diversa ocorria com as decisões anteriores à sentença (p.ex. o indeferimento da intervenção de terceiro; a rejeição de um pedido de diligências), que poderiam sempre revolver-se à maneira de preliminar da apelação (cf. o § 1º do art. 1.009 do Cód.pr.civ. de 2015)..
 
Faltava ao Código de processo civil de 73 uma regra expressa que prescrevesse a aplicação estendida da normativa processual a todo o âmbito do processo administrativo.
 
Pois bem, o Código de 2015 instituiu esta regra. Lê-se em seu art. 15: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
 
Disto segue a adoção do sistema recursal codificado no processamento da dúvida registrária, admitindo-se, pois, a interposição de recurso de agravo contra suas decisões incidentais (vidē inc. II do art. 942 do Cód.pr.civ.), quer posteriores, quer anteriores à sentença, desde que se trate de hipóteses de sua admissibilidade no Código.
 
Com efeito, o novo Código restringiu as hipóteses deste recurso incidental; assim, dispõe seu art. 1.015, entre outras hipóteses, caber agravo de instrumento “contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
 
I-  tutelas provisórias [é pouco provável que se expeça tutela provisória em processo de dúvida, mas em São Paulo houve já um caso];
 
II-  mérito do processo [também neste capítulo, de ocorrência muitíssimo rara, tome-se por exemplo simultaneus processus de uma dúvida sobre mais de um título, com o julgamento do mérito parcial de procedência ou improcedência quanto a um dos títulos, pendendo perante o juiz dos registros a apreciação e decisão quanto a outro];
 
(…)
 
V-    rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação [vidē ainda o art. 101 do Código: “Contra a decisão que indeferir a gratuidade ou a que acolher pedido de sua revogação caberá agravo de instrumento, exceto quando a questão for resolvida na sentença, contra a qual caberá apelação”];
 
VI-   exibição ou posse de documento ou coisa;
 
VII- exclusão de litisconsorte;
 
VIII- rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio;
 
IX- admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros;
 
(…)
 
XIII- outros casos expressamente referidos em lei.”
 
517. Sublinhe-se ainda a admissão de agravo interno (inc. III do art. 994) contra decisão monocrática ditada no Tribunal (é dizer, decisão proferida pelo relator: art. 1.021; p.ex., agravo interno contra decisão unipessoal que julgue a dúvida prejudicada ou que intempestivo o recurso de apelação), admitido o julgamento monocrático pelo relator (inc. I do art. 1.011) quando este
 
(i)    decidir sobre tutela provisória;
 
(ii) “não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;
 
(iii) negar provimento a recurso que for contrário a (a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; (b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; (c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
 
(iv) depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a (a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; (b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; (c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência” (copiado, com aglutinação, do art. 932 do Cód.pr.civ.).
 
518. Deve admitir-se a intervenção o amicus curiæ no processo de dúvida?
 
Símile fundamento ao que se agitou acima calcado na regra do art. 15 do Código de processo civil de 2015 parece autorizar intervenha o amicus curiæ nos feitos de dúvida registral.
 
Dispõe o art. 138 do Código de processo civil vigente que o juiz ou o relator, considerando
 
(i)     a relevância da matéria,
 
(ii)    a especificidade do tema objeto da demanda ou
 
(iii)   a repercussão social da controvérsia,
 
“poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação” (caput).
 
Admite em abstrato o Código, pois, sejam amici curiæ não só pessoas jurídicas (p.ex., a Ordem dos Advogados do Brasil, o Instituto dos Advogados do Brasil, a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo -Arisp, a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo -Arpen-SP, o Colégio Notarial do Brasil, a Associação dos Notários e Registradores -Anoreg, a Academia Notarial Brasileira etc.), mas também pessoas físicas (v.g., notários e registradores).
 
No Estado de São Paulo, seu código de normas judiciais do extrajudicial previu (embora se trate de regra de processo) o auxílio do notário com o status de amicus curiæ, nos processos de dúvida, mas é muito raro que se observe esta intervenção