(Princípio da especialidade -Primeira parte)

Des. Ricardo Dip*

236.        Passemos a tratar agora do complexo princípio da especialidade registral −designação clássica, mas imprópria, pois, em verdade, antes se trata de um princípio apreensivo  e manifestativo da individuação de pessoas, fatos jurídicos e imóveis que constem das inscrições prediais.

               Essa denominação parece derivar da necessidade de corrigir os inconvenientes das hipotecas gerais, assim pode verificar-se da Lei francesa de 27 de junho de 1795 (ou Lei do IX Messidor do ano III da desordem estabelecida desde a revolução de 1789). Esta normativa visou, explicitamente, a combater a clandestinidade das hipotecas, por meio da publicidade, e a generalidade desta garantia real, mediante a expressão singular do imóvel afetado e a quantidade a que se estendesse a hipoteca (vidē Jerónimo González). Sendo o “especial” oposto do “geral” (isto já o apontara Quintiliano), adotou-se o nome “especialidade” hipotecária para designar um princípio que, diversamente, não enuncia a espécie, mas o indivíduo.

237.                 Parece relevante referir, à partida, um pouco da história da aplicação deste princípio no direito brasileiro.

               De larga data era, entre nós, tratar da especialidade da hipoteca: Affonso Fraga, por exemplo, ainda na primeira metade do século XX, versou-a com apoio na doutrina italiana (Pacifici-Mazzoni, Chironi, De Filipis) e francesa (Aubry et Rau, Paul Pont, Troplong), e Clóvis Beviláqua, por sua vez, em observação ao art. 761 do Código civil de 1916, apontara a limitação com que a especialidade se abarcava, algo que parecia circunscrito aos direitos reais de garantia e, neles, com um caráter solene cifrado à hipoteca.

               No âmbito dos registros públicos, a contar de uma pouco animada superação da linha estritamente hipotecária do tema chegou-se, enfim, a um parcial seu alargamento, para abranger, ao modo da legislação francesa, todos os imóveis objeto de direito real e todas as dívidas com garantia real (vidē, por muitos, Afrânio de Carvalho).

               Foi só no final da década de oitenta do século passado, entretanto, que a doutrina brasileira terminou por acudir a uma definição −assim me parece− mais rigorosa do objeto da especialização registral e também (opino deste modo) a uma sua melhor divisão. Isto acarretou mudanças de impacto na aplicação da especialidade registrária, sobretudo no que respeita aos parcelamentos prediais. Até essa altura, com efeito, controlavam-se as segregações imobiliárias, de comum, apenas pela quantidade do desfalque, passando-se à margem dos temas da qualidade e do lugar dos destaques de área.

               Pode mesmo dizer-se, sem nisto parecer pecar-se de excesso, que o alargamento da consideração do princípio da especialidade registrária (e sua aplicação prático-prática) deva contar-se entre três grandes afirmações paradigmáticas no direito registral imobiliário brasileiro, desde a vigência da Lei n. 6.015, de 1973 [as outras duas foram (i) o reconhecimento do caráter prudencial do saber próprio do ofício registrário (de que é corolário o atributo da independência jurídica do registrador), e (ii) a, de algum modo, consequente assertiva do direito e dever de qualificação registral de todos os títulos inscritíveis (incluídos os de origem judicial)].

               Daí a particular relevância em que estudemos com mais vagar o princípio da especialidade registral.

238.        Que se entende por especialidade?

               Este vocábulo −“especialidade”− exprime um termo logicamente abstrato que corresponde ao concreto “especial”, que é, de pronto, um adjetivo, mas que pode tomar-se por substantivo: é o “característico”, o “próprio”, o “exclusivo”, o “distinto”. Assim, “especialidade” é a qualidade que caracteriza algo, distingue-o, ou ainda: aquilo que se atribui ou se refere à espécie. E, neste sentido, vem a calhar a indicação etimológica: o vernáculo “especialidade” adveio, no trânsito da Antiguidade à Alta medieval, do latim tardio specialitas, specialitatis, que, por sua vez, derivou de species, speciei (vidē Ernout-Meillet).

               Assim, “especialidade” −ou ainda “especificidade” (há na língua latina o adjetivo specificus, a, um, vocábulo usado já por Boécio)− é o termo logicamente abstrato que também se aplica ao termo concreto espécie. De sua vez, a palavra species possuía, seguindo ainda aqui as doutas investigações de Ernout e Meillet, mais de uma acepção: (i) a de vista (visus, o que se vê ou se mostra); (ii) a de aspectus, o que aparenta ser (num primeiro momento, o spectrum, o que não é o real); logo, porém, adquire um sentido laudatório: species é a bela aparência, a beleza, o formosus vel speciosus; e, (iii) na linguagem filosófica, species é o que resulta da divisão do gênero (um dos cinco predicáveis).

               Parcialmente (secundum quid), estes sentidos todos de species consideram-se no domínio da especialidade registral.

239.        Que se compreende, para logo, nessa especialidade registrária?

               Primeiramente, observe-se que especializar, para o sistema registral, não é o mesmo que determinar o ente individuado (trate-se aqui de pessoas, fatos ou coisas).  Com efeito, é de todo possível determinar sem especializar: pode dizer-se que um dado imóvel se designe “Fazenda Carlos de Laet”; outro, “Chácara Imperador Felipe II”; e esses imóveis poderão estar determinados para o registro, suposto que sociologicamente se reconheçam de modo notório (com notoriedade quoad se). E, no entanto, podem não ter, no registro, medidas de contorno, indicação de superfície, lugar ubi, parâmetros referenciais, figura, etc. Ou seja, estão determinados, mas não estão especializados.

               Determinar é identificar; já especializar é individualizar de maneira característica, visando a distinguir, demarcar, estremar o ente individual, já que não é possível defini-lo (porque nenhum indivíduo é suscetível de definição; pode afirmar-se que o indivíduo é, em dado sentido, um inefável − ineffabilis é aquilo que não se pode exprimir; a razão desta impossibilidade é simples: toda definição deve perfazer-se por meio de um conceito universal, mas o indivíduo é sempre singular, de que segue não poder definir-se).

               Todavia, se impossível é definir o ente individual, já o mesmo não se passa com sua descrição. E descrevê-lo é exatamente indicar algo singular dentro de sua especialidade, enunciar aquilo que o torna indivíduo no âmbito da espécie, ou seja, aquilo que lhe dá uma natureza concreta indivídua.

240.        A especialidade registral, portanto, não aponta espécies (seja a do fato inscritível, seja a subjetiva, seja a do imóvel), mas descreve o indivíduo da espécie correspondente.

               Dessa maneira, o que a especialidade registrária busca é a descrição de entes singulares estremados dentro de uma espécie (um imóvel entre outros; esta ou aquela pessoa entre outras; este ou aquele usufruto entre outros usufrutos, etc.). E assim, a especialidade registral é, em rigor, como já ficou dito, um princípio ou fator apreensivo e expressivo de individuação.

               Em outras palavras, por meio da aplicação do versado princípio da especialidade distingue-se um indivíduo na multiplicidade de entes singulares que ostentam a mesma essência. Com a especialidade registral trata-se de apreender e exprimir, o quanto possível, uma essência indivídua ou natureza concreta, de maneira que se enuncie aquilo pelo qual um ente singular é singular.

241.        Vamos tratar aqui, por primeiro, da especialização registral objetiva, isto é, da individualização ou descrição do imóvel ad tabulam (vale dizer, da especialização imobiliária que interessa ao registro, porque seria possível enunciar de outros modos essa individuação: p.ex., para fins industriais, agrícolas, militares, estéticos, etc.).

               É pela captação e percepção −respectivamente, por meio dos sentidos externos e internos− de acidentes sensíveis (dimensão, cor, figura, lugar) que podemos distinguir, de modo apreensivo, um de outro ente individual.

               Esses acidentes existem em um substrato −uma substância. Calha que nós só podemos conhecer e, assim, descrever um indivíduo corpóreo (um imóvel) por seus acidentes e não, de modo direto, por sua substância indivídua.

               Alguns desses acidentes que conhecemos são determinações da própria substância (p.ex., a dimensão do imóvel). Diversamente, o lugar do prédio, entretanto, é um acidente que depende do entorno do imóvel, ou seja, um acidente que demanda relação com o circundante do prédio. Uns e outros, porém, são e manifestam o modo de ser de um ente individual.

242.                 Os acidentes de quantidade, qualidade e lugar nunca faltam nas substâncias corpóreas: todos os imóveis, v.g., têm dimensão, têm figura e ocupam um lugar.

               Por isto, são esses acidentes os três resultantes da divisão da especialidade registral-imobiliária: (i) especialidade quantitativa; (ii) especialidade qualitativa; e (iii) especialidade de lugar circunscritivo.

                 É disto que trataremos em nosso próximo artigo.