REGISTROS SOBRE REGISTROS (n. 63)
 
(Princípio da legalidade -Vigésima-segunda parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
441. O tema a que nos referimos, contudo, qual o da desaplicação administrativa da lei, sobremodo apoiada em inconstitucionalidade, abrange todo o espectro da qualificação registrária e, pois, ficará melhor em um capítulo geral mais adiante, quando se completar o tratamento correspondente às diversas espécies de títulos inscritíveis.
 
442. Passemos agora a um breve exame da qualificação registral dos títulos notariais.
À míngua, no Brasil (mas a queixa, neste ponto, é comum também na doutrina estrangeira), de melhores indicações legislativas explícitas acerca dos contornos da qualificação registrária dos títulos de origem notarial, tem-se que a jurisdição administrativa e algumas incursões doutrinárias se têm não raro nutrido da influência, ainda que nem sempre advertida, de meditações recolhidas de larga tradição, tanto prático-prática, quanto doutrinal.
 
Neste quadro, portanto, de estendida lacunaridade legal quanto a esse tema, cabe destacar, em contrário, uma interessante recomendação expedida, em novembro de 2006, pela Corregedora Geral de Justiça do Estado do Maranhão, Des. Anildes de Jesus Bernardes Chaves Cruz, alistando uma série de sugestões muito previdentes à atividade notarial, e, com isto, demarcando de maneira implícita uma trajetória para a qualificação registral correspondente. (Voltaremos, na exposição da próxima semana, a referir esta recomendação, n. 1/2016, da Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão).
 
443. Visitam-nos bastante −digamos ainda uma vez: por mais nem sempre se tenha consciência de que lhes damos recepção− doutrinas articuladas na Espanha sobre a qualificação dos títulos notariais. Tomem-se, à conta de exemplo, os estudos de Roca Sastre, Chico Ortiz e Martínez Santos. Parece autorizar-se o empréstimo desses estudos, na medida em que fruímos de um comum patrimônio hispânico notarial, registrário e até mesmo de civilização.
Nessa linha doutrinária, em três grandes pilares podem classificar-se os elementos notariais qualificáveis pelo registrador:
 
(i) o das formas extrínsecas,
 
(ii) o da capacidade dos outorgantes e
 
(iii) o da validez dos atos dispositivos.
Por formas extrínsecas deve compreender-se tanto a causa determinante ou individualizadora do título notarial em acepção substantiva (ou seja, título em sentido material), quanto a causa que o individua externamente (vale dizer, o título em sentido formal). Essas formas extrínsecas abrangem a questão da (i) competência material e territorial, (ii) os requisitos formais que as leis imponham, com caráter essencial, quer para a outorga dos atos notariais, quer para a expedição de suas cópias (certidões e traslados) e (iii) a representação dos outorgantes.
Também a capacidade dos outorgantes −a de direito e a de agir− é matéria que deve examinar-se pelo registrador, e, por fim, a validade dos atos dispositivos (conteúdo do ato ou negócio jurídico objeto do ato notarial).
 
444. Sequer na Espanha consta uma enumeração completa dos elementos notariais suscetíveis de atrair a qualificação do registrador de imóveis, mas é sólido o entendimento de que possa (ou melhor: deva) o registrador aferir, para logo, a competência material e territorial do notário.
 
A competência material do notário está, em indicação ampla, prevista no art. 7º da Lei n. 8.935/1994 (de 18-11) −abarcando a elaboração de escrituras, procurações e testamentos −sempre que públicos; a aprovação dos testamentos cerrados; a lavratura de atas notariais; o reconhecimento de firmas; a autenticação de cópias−, cabendo salientar que o testamento público é da competência privativa do próprio notário ou de seu substituto secundum legem, nos termos do que dispõe o Código Civil de 2002 (inc. I do art. 1.864), afastando-se, neste passo, a extensão de atribuições aos escreventes das notas (cf. § 3º do art. 20 da Lei n. 8.935).
 
Quanto à competência territorial, prevê o art. 9º da referida Lei n. 8.935, de 1994, que “o tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação”, certo, contudo, assim o indica o texto do art. 8º da mesma Lei ser “livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio”.
 
Ambos estes supostos competenciais devem ser objeto de qualificação do registrador, porque se trata aí de um capítulo ressonante na validade do ato, segundo a normativa posta, e o controle da legalidade −ou, se se quiser, “da segurança e eficácia dos atos jurídicos” (art. 1º da Lei n. 8.935, de 1994)− é dever tanto do tabelião, quanto do registrador.
 
445. Dentre outros requisitos de forma para a outorga e a emissão de cópias dos atos notariais (e aproveito o passo para mencionar que a Dra. Thais Luciana Morceli de Castello Branco, que é atualmente Registradora civil na cidade cearense de Trairi, está em vias de concluir um dedicado estudo sobre esses requisitos), repito: entre outros requisitos de forma para a outorga e a expedição de cópias dos atos notariais podem apontar-se −submetidos à qualificação registral− a determinação e a especialidade subjetiva dos intervenientes nos atos objeto, a determinação do imóvel de que se trate (nota bene: nem sempre sua especialização), a determinação do título em sentido material e a indicação do valor pecuniário do ato ou negócio.
Acentue-se, para insistir no ponto, que, estando determinado o imóvel objeto do ato notarial, não há necessidade de adotar-se uma exigência ritualística de repetir-se, no título, a descrição matricial (ou transcrita) desse imóvel. Essa necessidade, entretanto e diversamente, já se advertirá nas hipóteses de parcelamento imobiliário.
 
Consoante as diferentes normativas, podem ainda ser requisitos formais o uso de papel timbrado, o uso de selo, o idioma, a leitura do escrito, a subscrição testemunhal e via dicendo (cf., a título ilustrativo, os arts. 1864 a 1.875 do Código civil brasileiro de 2002).
 
446. A questão do controle registral da capacidade dos outorgantes é uma das que têm atraído alguma controvérsia.
A doutrina de Roca Sastre −abonada de modo mais recente pela de Martínez Santos− é no sentido de que seja a capacidade de direito, seja a de agir, devem ambas ser reapreciadas pelo registrador.
Parece-me bem este entendimento, por mais se admita estar longe de ser pacífico.
É que o juízo notarial acerca da capacidade dos outorgantes é de caráter jurídico e não factual, de que segue não estar chancelado pela fé pública notarial. Dir-se-á, é certo, que aquele juízo, o notarial, possui um valor indiciário de verossimilhança, talvez mesmo um grau de presunção iuris tantum de veracidade, mas, de não ser garantido pelo atributo da fides publica, esse juízo notarial não se imuniza do controle posterior a que deve lançar-se a qualificação registrária. Mas à falta de prova forte em contrário, há de prevalecer o juízo que se presume verdadeiro à raiz.
 
Em contrapartida, não custa lembrar que os fatos convocatórios da fé notarial estão imunes à qualificação na via administrativa (p.ex., a fé notarial de conhecimento não pode ser impugnada salvo em âmbito de jurisdição contenciosa).
 
(Peço licença para mencionar aqui −e isto eu o faço de modo particularmente saudoso− um episódio que ocorreu, na década de oitenta do século passado, quando se designou um oficial substituto para um cartório de registro de imóveis aqui de São Paulo. Advogados do substituto destituído impugnaram, na Corregedoria Geral da Justiça paulista, o ato notarial com que se recolhera a manifestação de vontade do registrador titular, e o Des. Marcos Nogueira Garcez, modelo de magistrado, afirmou que a presunção iuris tantum de veracidade do ato do notário  impedia um revolvimento administrativo difuso, perseguido sem  indício algum de irregularidade).
 
447. Por fim, no que diz respeito à validade dos atos dispositivos, há um estendido mundo de temas específicos a considerar, e temas muitas vezes conflituosos, de sorte que talvez aqui mais do que em outros terrenos ásperos da praxis registral bem parecem ajustar-se as célebres palavras que disse Dante, na Comedia, ter visto escritas ao alto de uma porta −vid’io scritte al sommo d’una porta−, a porta do inferno: lasciate ogni speranza voi ch’entrate.