Cássia Eller um dia cantou: “mudaram as estações, nada mudou. Mas eu sei que alguma coisa aconteceu. Tá tudo assim, tão diferente.” Música à parte, a letra reflete um pouco do que vem acontecendo com a interpretação da figura da fraude à execução no novo Código de Processo Civil. Alguma coisa aconteceu, mas será que nada mudou?
 
O CPC/2015 deu nova estrutura ao instituto, que está assim regulamentado no art. 792:
 
Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V – nos demais casos expressos em lei.
§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.
§ 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
§ 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.
 
Vê-se, de antemão, que, diferentemente do código anterior, que tratava da fraude à execução no art. 593, com três incisos, o novo código inseriu cinco incisos no art. 792 e mais quatro parágrafos, aprofundando a disciplina do instituto.
 
O tema sempre foi objeto de acalorados debates nos Tribunais, sobretudo no Superior Tribunal de Justiça, que editou a conhecida súmula 375, em 2009: “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.”
 
A questão, pois, que se instala é saber se a referida súmula permanece íntegra com o novo código ou deveria ela ser modificada. Alguns tribunais estaduais parecem entender que o novo código não alterou a essência da fraude à execução, razão pela qual a súmula mantém-se intacta: 
 
“Conforme súmula 375, do STJ: O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. (Súmula 375, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/03/2009, DJe 30/03/2009). Nessa esteira, inclusive, o Novo Código de Processo Civil passou a exigir que a pendência do processo precisa ser averbada. Senão, vejamos. “Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver.” No caso dos autos, a execução promovida pelo credor não fora averbada junto ao Detran, órgão corriqueiramente consultado antes da celebração de negócios envolvendo veículos. Portanto, inexistindo a comunicação ao Detran sobre a existência da presente demanda, em sede de cognição sumária, não restou demonstrada a ciência do terceiro adquirente acerca da situação de insolvência do alienante e, por conseguinte, não caracterizada a alegada fraude à execução. Por outro lado, é necessário resguardar a execução, devendo permanecer a restrição de transferência do bem, a fim de se evitar nova venda e futura alegação de aquisição por boa-fé. Recurso parcialmente provido. (TJRJ, 0043472-90.2016.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO, Des(a). RENATA MACHADO COTTA – Julgamento: 14/12/2016 – TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)
 
“1. Nos termos do enunciado 375 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
A fraude à execução não se presume com a ocorrência da transferência da propriedade após a citação do alienante, na ação de execução, ou após a intimação, no caso de cumprimento de sentença.
Em harmonia com o entendimento sumulado (enunciado 375 da Súmula do STJ), o novo Código de Processo Civil, em seu artigo 792, ampliou e aperfeiçoou a redação anteriormente prevista no estatuto processual (art. 593 do CPC/73), exigindo, em seu inciso II, a prévia averbação do processo ou da constrição judicial que recai sobre o bem alienado para o reconhecimento da fraude à execução. Não se desincumbindo o credor de tal ônus, a fraude à execução somente poderá ficar caracterizada se houver prova de que o terceiro tinha conhecimento da ação ou da constrição.
Agravo de instrumento conhecido e não provido.” (TJDF, 20160020093533AGI, Relator: SIMONE LUCINDO 1ª TURMA CÍVEL, Publicado no DJE: 23/09/2016)
Extrai-se de ambos os julgados que para eles a súmula 375 permanece integralmente aplicável aos casos de fraude à execução.
 
Aqui o ponto deste artigo: será que nada mudou em relação à fraude à execução a ponto de a súmula manter-se íntegra?
 
De pronto, verifica-se que a edição do Código de Processo Civil de 2015 trouxe um novo paradigma para o tratamento dessa figura, pois modificou-se em certa forma as hipóteses de sua configuração e o ônus da prova para a sua caracterização, além de instituir um mini procedimento para a decisão sobre a referida fraude.
 
Verifica-se que a disciplina da matéria foi intensificada pelo legislador, que deu novos delineamentos tanto para as hipóteses de configuração da fraude, como em relação à forma de o instituto ser tratado no curso do processo.
 
A primeira importante inovação do código é ter deixado expresso que a alienação é ineficaz em relação ao exequente, questão essa que já era pacificada na doutrina, mas não tinha previsão expressa no texto legal anterior.
 
Ademais, o código criou um mini procedimento para a verificação da fraude durante o processo, que correrá nos próprios autos, e não dependerá de suspensão da tramitação do feito principal.
 
Nesse passo, a teor do § 4º do art. 792, antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.
 
O código não regula, mas é certo que se forem opostos embargos de terceiro, o credor terá prazo para responder esses embargos. Em atenção à paridade de armas, e aplicando-se analogicamente o art. 679 do NCPC, pode se dizer que os embargos poderão ser contestados no prazo de 15 (quinze) dias.
Todavia, uma ressalva é imperiosa e demonstra uma aparente contradição do diploma processual: o prazo dos embargos de terceiro, quando tratados de forma genérica, em capítulo próprio, é de 5 dias a partir da adjudicação, por outro lado, quando regulado no caso de fraude de execução, esse prazo se estende para 15 dias, conforme visto acima.
 
No tocante à caracterização da fraude, foram incluídas novas hipóteses (requisitos objetivos) para a sua ocorrência. Como se observa, as situações reguladas na parte final do inciso I e nos incisos II e III do art. 792 são novidades em relação ao CPC/73, na medida em que tratam da caracterização de fraude quando houver efetiva anotação da existência do processo, seja pelo procedimento comum ou de execução, no registro do bem alienado ou onerado.
Ademais, o inciso I passou a ter redação mais aprimorada em relação ao inciso I do art. 593 do CPC/73, incluindo a expressão “ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver”. Dessa forma, fica claro que nesse caso (ações reais ou reipersecutórias) a inscrição da ação no registro de bens é requisito para se configurar a fraude.
 
Portanto, temos que a mudança realizada pelo novo CPC pode ser resumida, no tocante à norma insculpida no código, da seguinte forma:
“As três primeiras versam casos de presunção absoluta de fraude à execução, amparadas na oponibilidade erga omnes do conteúdo dos registros públicos. A quarta hipótese é idêntica àquela hoje constante do artigo 593, II, do CPC, e a quinta compreende todos os demais casos previstos em lei.”[1]
Todavia, uma das mudanças trazidas no Código, que entendemos que trará reflexos no posicionamento da doutrina e, sobretudo, da jurisprudência (e na súmula 375/STJ), é a regra estabelecida no art. 792, § 2º, do CPC/15:
§ 2º – No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
 
Pela dicção do artigo, pelo menos em parte, o entendimento deverá ser modificado, pois a partir de agora o ônus de provar a inexistência de má-fé, em casos de fraude à execução, quando não há registro de bens, passa a ser do terceiro, e não mais do credor.
 
Para dar completude ao que dispõe, o novo CPC determina, ainda, que o terceiro adquirente deve ser intimado para se defender, antes de ser decidida a suposta fraude, momento em que poderá exercer o ônus de provar que agiu de boa-fé.
 
A partir da leitura do parágrafo 2º acima citado, o Superior Tribunal de Justiça terá que se debruçar sobre a nova norma para rever sua jurisprudência, seja modificando a súmula 375, seja superando (overruling) o entendimento lançado no Resp 956.943/PR, que, interpretando a o enunciado sumular, pacificou a questão, afirmando que “inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda”[2].
 
Na primeira hipótese, caberá ao STJ rever ou modificar a súmula[3] para fazer constar que a prova da má-fé do terceiro adquirente na verdade é uma prova de boa-fé desse mesmo terceiro adquirente, na medida em que cabe a ele demonstrar agora que agiu de boa-fé. Destarte, ou o Tribunal suprime a parte final da súmula ou a modifica para fazer constar que, para a não configuração da fraude à execução, é necessária a prova de que o terceiro agiu de boa-fé[4].
Nesse sentido, confira-se as observações feitas por Teresa Wambier e outros:
 
“Como se vê, diante no NCPC o entendimento jurisprudencial que impõe ao exequente provar a má-fé do adquirente deve necessariamente ser alterado. Há, por força de lei, inversão do ônus desta prova, cabendo ao terceiro-adquirente fazer prova da sua boa-fé e não o contrário. A Súmula 375/STJ deve ser, na sua segunda parte, revogada, só se justificando a sua manutenção quanto à exigência da citação.”[5]
 
Além disso, deve ainda a Corte Superior reformar o entendimento lançado no Resp 956.943/PR, julgado pela Corte Especial, em recurso especial repetitivo, na medida em que está ele explicitamente contra legem. Veja-se que o acórdão estabeleceu que para o reconhecimento da fraude à execução “é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência”. Todavia, com o novo CPC, o art. 792, § 6º, passa a regulamentar a questão de forma diversa, consignando que “o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”. Portanto, não há mais como subsistir o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
 
Destarte, é imperiosa a análise do STJ para a revisão do posicionamento, no tocante ao ônus da prova para a configuração da fraude à execução, nas hipóteses em que não se possa objetivamente afirmar que houve tal fraude, notadamente nos casos de bens não sujeito a registro[6].
 
Cabe, ainda, uma observação em relação à Súmula 375/STJ, no que se refere à primeira parte de seu texto, que assim dispõe: “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado”.
 
É que esse trecho se justificava, porquanto o art. 593 do CPC/73, que tratava da fraude à execução, não regulamentava em seu texto nada em relação ao requisito do registro da penhora, daí porque coube aos Tribunais, sobretudo o STJ, delimitar que o registro da penhora do bem era uma das condições para se confirmar a ocorrência da fraude à execução.
 
Contudo, com o novo CPC, o art. 792 passa a estabelecer expressamente hipótese de fraude à execução, condicionando o requisito do registro da penhora do bem para a configuração dessa hipótese. Veja-se:
 
Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; (destaque do autor)
 
Assim, passou a ser desnecessária a primeira parte da Súmula 375/STJ, sobretudo porque a partir do CPC/15 ela passará a regular aquilo que dispõe a lei, de modo que não se mostra razoável a edição ou manutenção de uma súmula que disponha a mesma coisa que estabelece uma norma.
 
Com essas considerações, pode-se afirmar que a Súmula 375/STJ deve ser completamente revista, seja para ser cancelada, porque a primeira parte passa a reproduzir expressa disposição legal, enquanto a segunda parte contraria a mesma lei, seja para ser modificada de forma a ser adaptada à realidade do art. 792, § 6º, que dispõe sobre o ônus da prova na fraude à execução. 
 
Portanto, com o CPC/2015, tem-se novas hipóteses de fraude à execução (requisito objetivo), além de ser necessário, no tocante ao requisito subjetivo, prova da boa-fé do adquirente, prova essa que, em não havendo registro de bem, deve ser efetuada pelo terceiro. Não há mais, agora, a prova negativa da má-fé pelo credor.
 
Conclama-se, aqui, que os Tribunais de Justiça revejam seus julgados, para que a música de Cássia Eller não mais seja aplicada à realidade da fraude à execução.
 
Mudaram as estações, e a fraude à execução também mudou.
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[1] SOUZA, Maria Helena Rau de. Anotações ao art. 792 in Novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: OAB/RS, 2015, p. 516.
[2] REsp 956.943/PR, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, DJe 01/12/2014.
[3] Antonio Adonias Aguiar Bastos, apesar de não deixar expresso, parece ter posição contrária, entendendo que a Súmula 375/STJ se coaduna com a ideia de prova de boa-fé do terceiro adquirente in Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Coordenação Antônio do Passo Cabral, Ronaldo Cramer. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1143-1144.
[4] Essa mesma advertência já era feita, ainda antes de aprovado o novo CPC, por ANDRIGHI, Fátima Nancy e GUARIENTO, Daniel Bittencourt. Ob. cit, p. 363.
[5] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim [et. al]. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1146/1147.
[6] No mesmo sentido: ALVIM, Rafael. Fraude à execução: Enunciado nº 375 da Súmula do STJ e NCPC in http://www.cpcnovo.com.br/blog/2015/10/06/fraude-a-execucao-enunciado-no-375-da-sumula-do-stj-e-ncpc/, acesso em 21/02/2016.
 
* Rodrigo Becker – Advogado da União. Mestre em Direito pela UnB. Ex-Procurador-Geral da União. Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB/DF. Professor da Pós-Graduação do IDP e da ENA. Membro da ABDPro (Associação Brasileira de Direito Processual). Membro-fundador da ABPC (Associação Brasiliense de Direito Processual Civil).
 
* Victor Trigueiro – Advogado da União, Diretor do Departamento de Acompanhamento Estratégico da Secretaria-Geral de Contencioso da Advocacia-Geral da União, Mestre em Direito pela UnB, Professor da Especialização em Processo Civil do IDP, IBG e Unyleya. Membro-fundador da ABPC (Associação Brasiliense de Direito Processual Civil). Ex Subprocurador-Geral da União.