Os embargos declaratórios foram um dos recursos que literalmente estiveram na berlinda quando se estabeleceram as primeiras discussões em torno de um projeto de novo Código de Processo Civil [1].
A continuidade de sua existência, com efeito, esteve sob risco: nos debates prévios à elaboração do Anteprojeto de Novo CPC apresentado ao Senado Federal pela Comissão de Juristas presidida pelo ministro Luiz Fux e que teve como relatora Teresa Arruda Alvim, professora da PUC-SP, chegou-se a cogitar a extinção dos embargos declaratórios como recurso cível, que seriam substituídos pelo que então se chamava de “pedido de esclarecimentos”.
Não obstante o risco de simplesmente desaparecerem do sistema jurídico processual civil brasileiro, aos menos com as feições que lhes dava o CPC/73, e serem substituídos por um tíbio pedido de esclarecimentos, a tradição de nosso direito processual acabou por fazer-se ouvir na evolução do processo legislativo que resultou no novo CPC e, enfim, os embargos de declaração remanesceram como recurso cível.
E mais: a manutenção dos embargos declaratórios no novo regime processual deu-se com a absorção expressa, pelo CPC/2015, de uma vocação que já havia sido aderida a tal recurso pela jurisprudência formada quando vigente o CPC/73, qual seja, a de servir ao pré-questionamento de matéria federal e constitucional justificadoras da interposição de recurso especial ou extraordinário.
O que era objeto de sedimentação jurisprudencial (embargos declaratórios “pré-questionadores”) passou, agora, com o advento do novo CPC, à condição de realidade legislativa expressa (artigo 1.025 do CPC/2015).
Há a consolidação legislativa, portanto, dos chamados embargos de declaração “pré-questionadores”.
Tal consolidação, contudo, vem acrescida de um interessante dispositivo: ao dispor que se considerará satisfeito o requisito do pré-questionamento desde que, ainda que as matérias federal ou constitucional não constem do acórdão recorrido, tenham estas sido abordadas nos embargos declaratórios opostos, o CPC/2015 produz uma potencialização dos declaratórios como viabilizadores do pré-questionamento.
De fato, se antes, quando vigorava o CPC/73, só haveria o pré-questionamento da matéria recursal excepcional se acolhidos os embargos declaratórios e, sanada a omissão neles apontada, houvesse expresso pronunciamento do órgão recorrido a respeito, com o advento do artigo 1.025 do CPC/2015 os próprios embargos de declaração por si só satisfarão o requisito do pré-questionamento, independentemente de serem providos pelo prolator do acórdão embargado.[2]
Se outrora (CPC/73) os declaratórios tinham eficácia pré-questionadora somente se providos (esta era, historicamente, a posição do Superior Tribunal de Justiça a respeito), doravante (CPC/2015) servirão ao pré-questionamento mesmo que rejeitados ou improvidos pelo tribunal a quo.
Para maior clareza do que ora afirmamos, reputamos conveniente a reprodução do artigo 1.025 em referência: “Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.”
Em face desta nova realidade dos embargos declaratórios, e aqui bate o ponto, poderíamos afirmar que o pré-questionamento, (i) de ato exclusivo do juízo, passou a, também, ser possivelmente ato exclusivo da parte, ou (ii) persiste como ato unicamente judicial?
A pergunta acima sugerida justifica-se porque, nos estertores da vigência do CPC/73, parece-nos haver sido estabelecida uniformidade jurisprudencial de que o pré-questionamento era ato do juízo (linha decisória tradicional do STJ, que se mostrou ultimamente absorvida pelo Supremo Tribunal Federal [3]), na medida em que sua satisfação, enquanto requisito inerente aos recursos excepcionais, era dependente de o órgão jurisdicional fazer constar, implícita ou explicitamente, o debate federal ou constitucional ensejadores do recurso especial ou extraordinário, não bastando a mera oposição dos embargos de declaração (o chamado “pré-questionamento ficto”).
Com o advento do novo CPC, mormente à vista de seu artigo 1.025, questiona-se se o cenário seria o mesmo ou teria sofrido alguma alteração.
Em nosso pensar, nem a primeira circunstância (ato exclusivo da parte) consumou-se, sequer podendo afirmar-se que a segunda (ato exclusivamente do juízo) teria persistido nos exatos moldes verificados anteriormente à entrada em vigor do CPC/2015.
O que houve, em realidade, foi uma espécie de requalificação do pré-questionamento em sua relação com os embargos declaratórios.
Explica-se.
Na vigência da codificação processual civil anterior, o ato de pré-questionar firmou-se induvidosamente como ato exclusivo do órgão jurisdicional, no sentido de que a este incumbia, em regime de exclusividade, fazer constar, ou não, o debate federal ou constitucional permissivos da interposição do recurso excepcional.
É certo que a parte poderia tentar viabilizar a ocorrência do pré-questionamento, no sentido de criar condições propícias para o seu acontecimento, principalmente opondo embargos declaratórios para tal mister (os chamados embargos declaratórios pré-questionadores).
Ao fim e ao cabo, contudo, sempre cabia ao órgão jurisdicional prolator da decisão a ser impugnada por recurso excepcional suprir o requisito do pré-questionamento, mediante provimento dos embargos declaratórios: se, por exemplo, os embargos declaratórios opostos pela parte fossem rejeitados ou inadmitidos, inapelavelmente não se implementaria a prévia constância da matéria excepcional na decisão e quedaria, dessarte, não atendido o requisito do pré-questionamento.
Com o surgimento do artigo 1.025 do CPC/2015, nos parece ter havido sutil, porém relevante, modificação da fisionomia do instituto do pré-questionamento no tocante à iniciativa para sua satisfação.
Diz precitado artigo do novo CPC que, mesmo rejeitados ou inadmitidos os embargos declaratórios, seu conteúdo será considerado integrado ao acórdão para fins de pré-questionamento caso o tribunal superior (destinatário do recurso excepcional) entenda que tais embargos deveriam ter sido acolhidos na instância a quo.
O fato de permitir-se que o recurso de embargos de declaração seja, por si só, visto como parte integrante do acórdão para efeitos de pré-questionamento revela, positivamente, uma sensível ampliação, comparativamente ao que notávamos quando vigente o CPC/73, da participação do jurisdicionado quanto à implementação de tão relevante requisito recursal excepcional.
Definir que a própria manifestação da parte seja tida como parcela integrante da decisão para fins de pré-questionamento é algo maiúsculo, significativo, especialmente porque revela projeção do artigo 6º do novo CPC, uma das normas fundamentais do processo civil respeitante à colaboração entre os sujeitos do processo, sobre o artigo 1025. Assoma, aqui, uma das mais frisantes mostras de que o CPC/2015 efetivamente levou a sério o princípio da colaboração entre os diversos sujeitos processuais como veículo para um processo civil mais eficiente.
Não obstante, pese signifique positiva mudança das feições dos embargos declaratórios pré-questionadores, e respondendo à indagação que nos motivou a desenvolver este singelo estudo, não nos parece correto afirmar que o CPC/2015 tornou o pré-questionamento ato também passível de implementação exclusivamente pela parte.
Deveras, e aqui reside o ponto relevante de nossa asserção, a parte final do artigo 1.025 do CPC/2015 é decisiva para a conclusão de que o pré-questionamento persiste como ato do órgão jurisdicional (apesar de ser, repitamos, mais ampla a participação do jurisdicionado, como afirmamos supra): ao dispor que os declaratórios serão tidos como integrados à decisão, para fins de pré-questionamento, “caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade”, estamos diante de algo que podemos considerar uma espécie de juízo postecipado de acolhimento dos embargos de declaração, desta feita pelo tribunal ad quem, para que se implemente o pré-questionamento.
Seria como houvesse, por parte do tribunal excepcional competente, um juízo, digamos, velado de acolhimento dos embargos declaratórios, como decidissem o STJ ou o STF algo assim: “os declaratórios foram inadmitidos ou rejeitados na origem, mas não deveriam havê-lo sido”.[4]
Nota-se, portanto, que a última palavra acerca da presença ou não do pré-questionamento permanece com o órgão jurisdicional, ainda que de modo dúplice (seja na origem, seja no juízo ad quem, a teor do artigo 1.025 do Novo CPC) e com muito maior atividade do jurisdicionado em sua estruturação.
Não podemos, pois, afirmar que, após o CPC/2015, pode o pré-questionamento ser tido como ato do juízo ou da parte: tal seria possível se, e somente se, os declaratórios fossem considerados pré-questionadores independentemente de qualquer juízo de valoração por parte do órgão ad quem, o que não é o caso.
A inovação atribuída aos embargos declaratórios pelo artigo 1.025 do Novo CPC de que acima nos ocupamos exige nova mirada também sobre um importante enunciado sumular que diz respeito a esta modalidade recursal.
Referimo-nos ao Enunciado 211 da Súmula do STJ, cujo teor diz o seguinte: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo”.
Como vimos, esta orientação, outrora prevalecente, não mais pode servir de baliza jurisprudencial com a entrada em vigor do CPC/2015.
De fato, bem sabemos que atualmente, e esta é a decorrência fundamental da parte final do artigo 1.025 do CPC/2015, o pré-questionamento conta com nova fisionomia: a despeito de persistir como ato do juízo, pois a este cabe enxergar, ou não, na decisão o debate autorizador do recurso excepcional, é fato que não estamos mais diante de cenário em que apenas ao juízo recorrido (a quo) cabe promover, ou não, a satisfação de tal requisito (provendo ou rejeitando os declaratórios pré-questionadores, ad exemplum).
Ao juízo ad quem cabe, também, considerar preenchido tal relevante requisito recursal excepcional em contraposição ao que decidiu o juízo recorrido, desde que repute merecedores de provimento os embargos declaratórios opostos pela parte com desiderato pré-questionador e que foram inadmitidos ou rejeitados na origem.
Portanto, o Enunciado 211 da Súmula do STJ, condicionador do pré-questionamento ao acolhimento, pelo juízo local, dos declaratórios opostos para tal finalidade, não mais deve ser observado, dado haver sido superado pelo CPC/2015, porque o pré-questionamento não é mais dependente, em regime de exclusividade, do pronunciamento do juízo a quo. Também o juízo ad quem toma parte na satisfação do pré-questionamento, como acima expusemos.[5]
Há perceptível mudança de paradigma — em sentido ampliativo e inclusivo — quanto à iniciativa jurisdicional para considerar pré-questionada a matéria recursal excepcional, agora duplicada (porque extensiva ao juízo ad quem dos recursos especial e extraordinário), e tal mudança é positiva, notadamente se considerarmos que o juízo a quo, justamente o prolator da decisão recorrida, no mais das vezes apresenta, como percebemos na práxis forense, forte resistência ao acolhimento dos declaratórios opostos em face da decisão que proferiu.
Nota-se, enfim, que o CPC/2015, no tocante aos declaratórios, ainda que não tenha promovido a possibilidade de o pré-questionamento ser, também, ato proveniente da parte em caráter exclusivo (o que teria ocorrido se a mera existência de embargos de declaração pré-questionadores fosse hábil à satisfação de tal requisito, a despeito de decisão judicial a seu respeito), acabou por tornar maior, mais larga a via para seu atingimento.
[1] O presente artigo é reflexo de discussões estabelecidas entre os membros do Grupo F – Recursos, do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados de Processo, presentes à reunião semestral realizada em dezembro de 2016: Rogerio Licastro Torres de Mello, Cristiane Druve, Izabel Cristina Pantaleão, Elton Possa e Anwar Mohamad Ali.
[2] Em passado recente, identificava-se a existência de divergência entre a jurisprudência do STJ e do STF no tocante à capacidade de os embargos de declaração servirem ao pré-questionamento. No âmbito do STJ, consolidou-se o entendimento de que os declaratórios apenas serviriam ao pré-questionamento das matérias federais e constitucionais se efetivamente providos pelo juízo a quo, existindo, portanto, a efetiva constância do debate jurídico excepcional na decisão. De conformidade com o entendimento do STF firmado até recentemente, apenas a oposição dos declaratórios pré-questionadores era bastante para que se consumasse a satisfação de tal requisito recursal excepcional, independentemente de seu provimento pelo órgão jurisdicional a quo. Era o que se chamava de “pré-questionamento ficto”. Houve, ultimamente (nos estertores da vigência do CPC/73), a adoção, em diversos julgados do STF, da mesma linha decisória do STJ a respeito do assunto, de modo que os declaratórios apenas teriam utilidade para fins pré-questionadores se efetivamente acolhidos. Oferece-nos o panorama ora noticiado MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil Moderno, Ed. RT, São Paulo, 2015, p. 2015.
[3] Neste sentido, confira-se, por exemplo, trecho da ementa do AI 739580 AgR / SP – SÃO PAULO, Rel. Ministra Rosa Weber:“Esta Corte não tem procedido à exegese a contrario sensu da Súmula STF 356 e, por consequência, somente considera prequestionada a questão constitucional quando tenha sido enfrentada, de modo expresso, pelo Tribunal de origem. A mera oposição de embargos declaratórios não basta para tanto.”
4 Teresa Arruda Alvim já detectara este fenômeno: “O órgão ad quem age como se estivesse dando provimento aos embargos, considerando que o embargante de declaração tem direito àquilo que pede (…). ARRUDA ALVIM, Teresa. Código de Processo Civil Anotado, coord. de José Rogerio Cruz e Tucci, Manoel Caetano Ferreira Filho, Ricardo de Carvalho Aprigliano, Rogéria Fagundes Dotti, Sando Gilbert Martins, GZ Editora, Rio de Janeiro, 2016, p. 1405.
5 Neste sentido, MAZZEI, Rodrigo Reis. Breves Comentários ao Novo CPC, coord. de Teresa Arruda Alvim, Fredie Didier Jr., Eduardo Talamini, Bruno Dantas, Ed. RT, São Paulo, 2015, p. 2283.
* Rogerio Licastro Torres de Mello é doutor e mestre em direito processual civil pela PUC/SP. Advogado em São Paulo. Professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado.