No dia dos namorados, a campanha publicitária de uma marca de roupas masculinas recebeu duras críticas por veicular um vídeo trazendo a sintonia de um casal formado por dois homens. A resposta da marca às críticas foi: “Preconceito? Não trabalhamos com isso. Abraço!”.[1]
Pois bem. Em tempos em que propagandas e campanhas que buscam estimular o respeito à diversidade são elas próprias alvos de preconceito, o assunto das famílias plurais assume especial relevância.
“Sentimentos não são dogmáticos. Não é possível reduzir formas de sentir, relacionamentos sociais firmados e projetos de compartilhamento de vidas a um rol exaustivo, a fórmulas preestabelecidas e entendidas como dogma (…)”.[2]
A partir desta constatação, o convencional modelo de família, formado por um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos, dá lugar ao pluralismo das relações familiares, “(…) indicando que seu elemento formador precípuo é, antes mesmo do que qualquer fator genético, o afeto. Hoje o afeto dá os contornos do que seja uma família.”[3]
No contexto do mundo atual, ante as mudanças sociais e comportamentais, influenciadas pelas revoluções políticas, econômicas e tecnológicas, o casamento deixou de ser modelo único de organização familiar, exigindo o reconhecimento jurídico de outras formas de constituição de família.[4] “Os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo voltaram-se à proteção da pessoa humana. A família adquiriu função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes”.[5]
Assim, atenta à nova realidade social, a Constituição Federal de 1988 reconheceu a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento, conferindo proteção especial à união estável e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes, a chamada família monoparental. Rastreando os fatos da vida, a Carta Magna consagrou um novo conceito de família baseado no vínculo de afeto, um conceito abrangente e aberto, na medida em que “(…) os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargos de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput.”[6]
Desta forma, não podem ser excluídos da proteção constitucional outros tipos de relacionamentos cujo vínculo afetivo “(…) une as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo”[7] e formando uma família, tais quais as uniões homoafetivas, as famílias paralelas e as uniões poliafetivas.
Não reconhecer uma relação afetiva entre sujeitos em razão de sua orientação sexual ou em razão de questões religiosas, ou mesmo porque não se enquadra nos padrões puramente morais de uma sociedade, mostra-se inconstitucional, pois contraria a dignidade da pessoa humana, centro da tábua axiológica de nossa Carta Magna.
Com efeito, a supremacia da dignidade da pessoa humana no sistema constitucional brasileiro está lastreada nos princípios da igualdade e da liberdade e “(…) constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo”.[8] Ou seja, o valor da pessoa humana informa cada um exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo, e a sexualidade representa uma fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, pois partilhar a cotidianidade da vida em parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da experiência humana.[9] Em última análise, “a dignidade humana constitucionalmente consagrada garante a todos o direito a felicidade”[10].
Isto é, “a dignidade na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim, ser considerado e respeitado pela sua condição humana”.[11] Assim, “a proibição de instrumentalização do ser humano compõe o núcleo do princípio”[12] da dignidade da pessoa humana, pois “ninguém pode ser funcionalizado, instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio, ainda mais quando fundado na visão coletiva preconceituosa ou em leitura de textos religiosos”.[13]
Fica, pois, evidente, que o princípio da dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a liberdade de viver suas relações de afeto de acordo com suas convicções íntimas, a liberdade de escolher com quem quer partilhar sua vida, sem ter que estar preso a dogmas sociais e religiosos. Diante disso, é possível concluir que ao conferir supremacia ao princípio da dignidade da pessoa humana, elegendo-o como um dos pilares da República (artigo 1º, inciso III)[14], a Constituição Federal brasileira passou a dar mais importância ao amor, aos laços fraternos, à solidariedade e à felicidade, em detrimento da antiga visão patrimonialista de nossa legislação anterior, em que a entidade familiar era voltada exclusivamente para a transmissão patrimonial e para a procriação, mesmo se isso importasse no prejuízo da realização pessoal de cada um.
Ou seja, “o texto constitucional consagrou expressamente a mudança do conceito de família, tendo em vista ter considerado o amor como o elemento central na sua formação”[15]. Agora, “a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar”.[16] Assim, o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da afetividade, da pluralidade e da felicidade, “(…) abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação”.[17]
Esse justamente o desafio dos dias atuais: encontrar o elemento que identifique uma relação interpessoal como família. Na lição de Maria Berenice Dias, “é o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias”, ou seja, de acordo com a autora, “(…) os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito de família é o afeto”.[18]
Aliás, o conceito moderno de família, formado por pluralidade de formas familiares e baseado no afeto, foi trazido por uma lei infraconstitucional, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que apesar de ser um diploma legal voltado a criar formas de prevenção e punição da violação doméstica e familiar, representou um marco legislativo ao conceituar a família como relação de afeto (artigo 5º, incisos II e III).[19] E ainda que o objetivo da Lei fosse estabelecer a violência como doméstica, acabou por delinear expressamente os contornos do âmbito de abrangência das entidades familiares.
Neste sentido, vale transcrever os ensinamentos de Paulo Roberto Vecchiati, para quem a Lei Maria da Penha, ao enunciar que a família compreende a comunidade formada por indivíduos que se consideram aparentados por vontade expressa (inc. II) ou por relações de afeto (inc. III) e que as relações enunciadas no dispositivo independem de orientação sexual (parágrafo único), reconheceu o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas.[20] Mais que isso, reconheceu o status jurídico-familiar das uniões permeadas pelo afeto.
Assim, a Lei Maria da Penha, juntamente com a Constituição Federal, consagraram um novo conceito de família no direito brasileiro, baseado no vínculo de afeto, no pluralismo e na felicidade, onde o elemento chave reside na dignidade do indivíduo e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a família.
Com o pluralismo das relações familiares, rompe-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento e permite-se o desenvolvimento das mais diversas formas de entidades familiares, tais quais a união homoafetiva, a família paralela e a união poliafetiva.
Há, atualmente, em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 470/2013, de autoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que cria o Estatuto das Famílias e consagra, em definitivo, o afeto como elemento central da família, prevendo que, independentemente de sua configuração, todas as famílias merecem igual apoio e proteção.
Esperamos que tal Projeto obtenha logo aprovação e se converta em lei, garantindo a todos os indivíduos o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais, garantindo a todos os indivíduos, em última análise, o direito a felicidade!
[1] http://www.huffpostbrasil.com/2017/05/27/alguns-heteros-nao-gostaram-da-nova-campanha-da-reserva-e-a-mar_a_22112668/
[2] MEDEIROS, JORGE LUIZ RIBEIRO DE. Estado Democrático de Direito, Igualdade e Inclusão: a Constitucionalidade do Casamento Homossexual. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. v. 5. Porto Alegre: Magister, ago-set, 2008, p. 75.
[3] LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In:DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 269.
[4] TEIXEIRA, Daniele Chaves e MOREIRA, Luana Maniero. O conceito de família na Lei Maria da Penha. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 279.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 40.
[6] NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Apud LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 269.
[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.
[8] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Apud FACHIN, Luiz Edson e FACHIN, Melina Girardi. A proteção dos direitos humanos e a vedação à discriminação por orientação sexual. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 119.
[9] MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Perspectiva civil-constitucional. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 129.
[10] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 122.
[11] GRIMM, Dieter. Apud VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 134.
[12] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 132 e ADI 4.277. Julgado em: 05.05.2011. Publicado em: 14.10.2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em: 27.06.2017.
[13] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 132 e ADI 4.277. Julgado em: 05.05.2011. Publicado em: 14.10.2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em: 27.06.2017.
[14] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[15] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 177.
[16] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.
[17] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.
[18] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.
[19] Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
[20] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 219.