(Princípio da legalidade -Trigésima-quarta parte)
510. Vejamos agora alguns temas relativos ao recurso judicial interposto das sentenças no processo de dúvida.
Proferida a sentença −assinado legalmente o prazo de 15 dias para sua prolação (art. 201 da Lei n. 6.015, de 1973)− rende-se ensejo a recurso de apelação, dotado de efeitos tanto devolutivo, quanto suspensivo (art. 202), recurso a que se legitimam, como visto, “o interessado, o Ministério Público e o terceiro prejudicado”.
511. De par com o vacilante acolhimento da legitimação recursória do registrador suscitante da dúvida (e de seu substituto legal: “Os substitutos poderão, simultaneamente com o notário ou o oficial de registro, praticar todos os atos que lhe sejam próprios exceto, nos tabelionatos de notas, lavrar testamentos” −§4º do art. 20 da Lei n. 8.935/1994), discute-se a compreensão do conceito de interessado, tal ele é referido no art. 202 da Lei n. 6.015, isto é, se, dando-se o caso, caiba distinguir, de um lado, o mero apresentante do título a registro (rogator simplex), e, de outro, aquele que, de maneira substantiva, seja o titular do interesse na inscrição perseguida.
É que a legitimação de instância registrária, ao menos em uma aproximação textual da lei, é onímoda [art. 217 da Lei n. 6.015: “o registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa (…)”], e não compete ao registrador aferir o interesse registral do apresentante do título (é, de fato, ao “apresentante” que se referem inc. III do art. 175 e o caput e o inc. III do art. 198 dessa mesma Lei, trate-se, não importa, de alguém titular de algum interesse jurídico substantivo na inscrição ou, diversamente, de mero nuntius).
Todavia, já no que diz respeito ao processamento da dúvida, a mesma normativa de regência remete-se à noção de interessado (arts. 199, 200 e 202) e não de apresentante.
Não faltaria razoabilidade em que se entendessem ambos os termos −“apresentante” e “interessado”− equivalentes no sistema da vigente lei registrária, até porque o inciso II do art. 203 dessa regulativa prevê que, sendo julgada a dúvida improcedente, “o interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença (…)”. Mas, convenha-se, não menos razoável, em princípio, é considerar que a alteração de designações −ora “apresentante”, ora “interessado”− seja de todo sugestiva de uma intenção diferencial. Se, de uma parte, é certo que o próprio alargamento do conceito de “terceiro prejudicado” pode albergar sempre e comodamente a legitimação recursal do “interessado” no registro, persiste de fato controversa, de outra parte, a possibilidade de que o mero apresentante, sem interesse registral próprio, possua legitimidade para apelar da sentença no processo de dúvida. Qual solução preferir?
Inclino-me a recusar a possibilidade de o simples solicitante do registro apelar da sentença no processo de dúvida. Cabe invocar, na fase judicial do processamento, a aplicação da regra do art. 15 do Código de processo civil e, com isto, do disposto em seus arts. 17 −“Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”− e 18: “Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”. Sublinhe-se que não se trata aqui do fenômeno da representação −art. 75 do Cód.pr.civ.−, mas, isto sim, de recusar haja amparo legal em que que o mero apresentante do título detenha legitimação extraordinária para atuar com o status de substituto processual do interessado no registro.
Compete ao relator, originariamente, apreciar e decidir sobre a admissibilidade do recurso (inc. III do art. 932 do Cód.pr.civ.), o que abarca a aferição da legitimidade e do interesse recursais, e de sua eventual decisão unipessoal de não conhecimento do apelo cabe o recurso de agravo interno para o colegiado competente (art. 1.021).
512. Nos termos do que enuncia o referido art. 15 do vigente Código brasileiro de processo civil, as disposições desse Código devem aplicar-se, supletiva e subsidiariamente, a, entre outros processos, o de natureza administrativa.
Assim, prevendo o art. 202 da Lei n. 6.015, de 1973, o cabimento de recurso de apelação contra a sentença da dúvida, sem acrescentar regra alguma para o processamento recursório correspondente, deve adotar-se o ritual indicado no Código de processo civil. Ao tempo do Código processual civil anterior, era da mesma sorte ele, e não o modelo do Código de processo penal −que também versa acerca de “apelação”: arts. 593 et sqq.−, que se adotava, de maneira analógica, por figurino do processamento recursal da dúvida do registro.
513. Avulta, neste passo, considerar o que dispõe o § 2º do art. 941 do Código de processo civil de 2015: “No julgamento de apelação ou de agravo de instrumento, a decisão será tomada, no órgão colegiado, pelo voto de 3 (três) juízes”.
Nada obstante regra similar já houvesse no Código processual civil de 1973 (caput do art. 555), o fato é que nem sempre se tem observado esta competência recursal no processo de dúvida, tal o que, ainda agora, ocorre no Estado de São Paulo, em que a apelação da sentença de dúvida tem sido julgada em colegiado composto por sete juízes (o Conselho Superior da Magistratura paulista, integrado pelo presidente do Tribunal de Justiça e seus vice-presidente, corregedor geral, decano e presidentes das Seções de Direito Criminal, de Direito Privado e de Direito Público).
Saliente-se ser também de aplicar ao processamento da apelação contra a sentença da dúvida o que dispõe o art. 942 do Código processual civil, tal que, havendo julgamento não unânime do colegiado inaugural (é dizer, o integrado por três juízes: § 2º do art. 941), expanda-se a apreciação e a decisão recursória com o acréscimo de novos julgadores (cujo número mínimo é o que baste “para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial”; vale dizer, ao menos devem agregar-se dois novos juízes). Trata-se do que se tem designado de “extensão”, “alargamento” ou “expansão” do julgamento recursal, com função substituinte do recurso de embargos infringentes (há mesmo quem, de fato, estime que se esteja diante de embargos infringentes oficiosos).
514. A mencionada colegialidade recursória −prevista no § 2º do art. 941 do Código de processo civil de 2015− não impede, contudo, que se aprecie e decida a apelação por meio de decisão monocrática, preservada, ainda que diferida, a potencialidade colegial.
Já a regra inscrita no art. 557 do antigo Código brasileiro de processo civil ensejava a possibilidade de, nos tribunais, o relator, em decisão monocrática, negar seguimento a recurso manifestamente infundado, ou improcedente, ou avesso quer ao direito sumular, quer ao entendimento pacificado pela jurisprudência do tribunal do recurso ou de cortes superiores, bem como a dar provimento à impugnação recursória se a decisão alvejada enfrentasse manifestamente súmula da jurisprudência dominante nos tribunais superiores.
Com isto, assim, ao tempo desse Código de 1973, ensinou precedente do Superior Tribunal de Justiça, rendia-se homenagem à economia e à celeridade processuais (REsp 638.366, recurso de que foi relator meu amigo o saudoso Ministro Domingos Franciulli Netto), e consolidava-se, ao mesmo tempo, a importância do antecedente judiciário como tópico jurisprudencial e desafogo das pautas de julgamento.
Com efeito, o caráter monocrático da decisão recursória não ofende a colegialidade, até porque a previsão subconstitucional de decisões monocráticas não aflige a possibilidade de juízo colegiado, ainda que com diferimento e sempre conformado a uma ulterior provocação formal de quem tenha interesse no recurso.
O novo Código processual restringiu as hipóteses de cabimento de decisão monocrática (vidē incs. III a V do art. 932), mas é preciso observar que a metódica mesma das irresignações contra a decisão unipessoal dos recursos supre eventual déficit de legalidade, porquanto remete o caso, com a interposição de agravo interno (art. 1.021), à apreciação e julgamento pelo colegiado. De maneira que, se o vício da decisão monocrática estava em ladear o colegiado, esse vício se supera com o só julgamento do agravo interno (cf. art. 277: “Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”).
De sorte que uma eventual infringência da restrição regulativa ao proferimento de julgado monocrático não subsiste com a posterior apreciação da matéria pelo órgão colegiado competente.