Decisão que torna o companheiro herdeiro necessário impacta a atividade notarial em diversos pontos
 
No dia 11 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu inconstitucional o Artigo 1.790 do Código Civil, que determinava regras diferentes para a herança no caso de união estável. A conclusão do Tribunal foi de que não existe elemento de discriminação que justifique o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro estabelecido pelo Código Civil, estendendo esses efeitos independentemente de orientação sexual.
 
De acordo com a tese estabelecida nos julgamentos, elaborada pelo ministro Luís Roberto Barroso, “no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002”. Sendo assim, mesmo que não seja casado no papel, o companheiro que provar a união estável terá direito à metade da herança do falecido, sendo o restante dividido entre os filhos ou pais, se houver. Se não houver descendentes ou ascendentes, a herança é integralmente do companheiro (veja mais detalhes em tabela da p. 13).
 
O doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil pela PUC/SP e titular do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do Paço, na cidade de Salvador (BA), Christiano Cassettari, explica que antes do julgamento, o artigo 1.790 do Código Civil trazia a regra do companheiro e o 1.829, a regra do cônjuge. “O cônjuge concorre com o descendente e com o ascendente. O companheiro já concorria com ascendente, descendente e colateral. O companheiro só tinha direito a participar dos bens adquiridos na constância da união estável, o cônjuge concorria em tudo. O companheiro não era herdeiro necessário, o cônjuge é. Essas diferenças todas trouxeram uma briga e um pedido de declaração de inconstitucionalidade”, pontuou.
 
Para a advogada e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito e Família (Ibdfam), Maria Berenice Dias, o impacto gerado no Direito de Concorrência Sucessória, na qual o companheiro passa a ter direito aos bens particulares, causa desconforto. “Isso pode gerar algum tipo de atrito na família, pois tira a herança dos filhos em relação aos bens anteriores dessa família. É mais congruente a base de cálculo na união estável, que independia do regime de casamento. O quinhão relativo à concorrência sucessória era concedido sobre os bens adquiridos onerosamente durante a união, bens que foram construídos e adquiridos com esforço comum – tirando doações e heranças”, explicou.
 
Já para a 29ª Tabeliã de Notas de São Paulo, Priscila Agapito, era problemático os companheiros não serem tidos como herdeiros necessários (herdando integralmente apenas se não houvesse outro parente sucessível). “Era uma dicotomia inaceitável, um retrocesso no tratamento que era dado pelo Código Civil anterior e era dificílimo de explicar às partes uma situação e outra”, expôs. “Hoje também o companheiro é herdeiro necessário e não pode ser excluído por testamento da herança, devendo ser-lhe resguardada a legítima”.
 
Na prática, Agapito afirma que a equiparação do regime sucessório no casamento e na união estável afeta os notários em muitos pontos e, justamente por isso, o titular precisa estar sempre atento a todas essas mudanças jurisprudenciais para poder treinar a sua equipe a orientar corretamente o usuário. “Agora não é mais uma questão de entendimento pessoal do tabelião, há uma regra objetiva a ser seguida. Logicamente muitas discussões paralelas advieram dessa decisão, mas o principal restou definido”, aclara.
 
Dentre algumas das mais importantes alterações, são elas:
 
a) na lavratura de inventários: conforme a decisão do STF, essa regra se aplica a todos os casos de inventários ainda não lavrados. Sendo assim, esse entendimento deve prevalecer em toda e qualquer escritura que seja feita doravante.
 
b) na lavratura de testamentos: o companheiro não pode ser mais excluído totalmente da herança, devendo lhe ser resguardada a legítima.
 
c) nos pactos antenupciais e nas escrituras de união estável: é importante que o tabelião, por meio de seus prepostos, oriente as partes sobre as consequências post mortem da escolha de um ou outro regime.
 
O professor Cassettari teme que a novidade possa gerar uma confusão quanto ao entendimento das diferenças entre união estável e casamento. No entanto, esclarece as particularidades de cada modalidade. “Na verdade, a união estável não substitui o casamento porque o casamento, por ter um ato solene e registral, traz a certeza de data. Na união estável, como as partes dizem para o notário qual é a data de início da união, o Judiciário não reconhece com valor jurídico. Foi uma mera declaração feita com as partes que podem mentir”, afirmou. Ele explicou que o notário não tem poder de investigação para verificar se aquela data é certa ou errada. “No caso do notário, só daria para certificar que houve união estável da data da escritura para frente, o efeito retroativo é duvidoso”.
 
De acordo com ele, como ainda não foi publicado o Acórdão referente aos Recursos Extraordinários 878.694 e 646.721 (que trataram da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/02), os notários ainda não devem aplicar a decisão aos inventários lavrados após a data do julgamento. “Por enquanto, não podem aplicar o julgamento pois ele não foi publicado. É a publicação dele que o torna eficaz”, defende. Já para a advogada Maria Berenice Dias, não há nenhum óbice não só aos notários como também aos juízes. “Só falta uma formalização do que foi proferido”.
 
Cada especialista segue uma linha de pensamento sobre a decisão do STF. Para Christiano Cassettari, não há justificativa para manter no sistema dois relacionamentos com nomes distintos e as mesmas características. “Só se justifica colocar no ordenamento duas formas de constituição de família se elas tiverem regras, consequências e efeitos diferentes. Se for para colocar o mesmo efeito, então é melhor revogar a união estável e todo mundo casar”, defende.
 
Maria Berenice Dias é favorável à decisão, mas acredita que a equiparação não deveria ser pelo casamento, mas pela união estável. Ela também crê que a novidade pode trazer um enorme prejuízo à questão do estado civil, já que no casamento o estado civil é o de casado; na união estável, o de solteiro. “Como um solteiro pode vender um bem no nome de outra pessoa? Eu acho que precisava se adotar a base de cálculo da concorrência sucessória da união estável, mas de resto, acho favorável”.
 
A notária Priscila Agapito está satisfeita com a mudança pois observou que a sociedade clamava por um parâmetro. “O que não era admissível era o fato de existirem várias correntes sobre um mesmo assunto, cada juiz decidindo de uma maneira, vários doutrinadores divergindo sobre a questão e a insegurança jurídica que pairava sobre as pessoas”, explicou.
 
A despeito da publicação do Acórdão, o voto do ministro relator Luís Roberto Barroso se encontra disponível no site do STF. Os votos dos ministros se encontram em fase de revisão para que a redação final seja em breve publicada.