(Princípio da legalidade -Trigésima-segunda parte)
 
498. A fase judicial de processamento da dúvida, no direito brasileiro em vigor, tem início com o envio e recepção das peças correspondentes ao “juízo dos registros” (anote-se que a normativa de regência não prevê prazo para esta remessa): “remeter-se-ão ao juízo competente, mediante carga, as razões da dúvida, acompanhadas do título” (inc. IV do art. 198 da Lei n. 6.015/1973).
 
Dotado de competência constitucional originária para a fiscalização dos registros, esse juízo administrativo −o “juízo dos registros− é o que detém competência, em alguns Estados da Federação brasileira, para a Diretoria do Fórum; no Estado de São Paulo, é o da Corregedoria Permanente dos registros (na Capital, a 1ª Vara de Registros Públicos); nada impede que se exercite essa competência como atribuição da Corregedoria Geral, desde que se preserve uma instância recursória.
 
Essas “razões da dúvida” devem provir do registrador –ou de seu substituto, em exercício− e, suposto ordinariamente o requerimento de suscitação (exceções: vidē arts. 115 e, controversamente, 156, da Lei n. 6.015)−, elas não exigem assistência de advogado, porque essas razões têm seu momento propício na esfera extrajudicial. Além disto, o caráter administrativo do processo e o fato de a qualificação registrária do título ser ato pessoal do registrador favorecem o entendimento de que, na etapa antejudiciária do processo, não incida a regra do art. 103 do Código de processo civil de 2015: “A parte será representada em juízo por advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil”.
 
499. A esta apontada remessa de peças ao juízo competente, precede, ainda na etapa antejudicial, a cientificação dos fundamentos da dúvida ao solicitante do registro –“o oficial dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante”− e sua notificação para impugnar a qualificação negativa dentro no prazo de 15 dias, a contar dessa notificação (inc. III do art. 198 da Lei n. 6015).
 
A processualização da dúvida, de maneira própria, só emerge após a sentença de primeira instância (art. 202 da Lei de Registros), mas, indiretamente, cabe reconhecer algum influxo das normas do processo civil, na tramitação da dúvida antes da sentença, por subsídio ou por supletividade (art. 15 do Código de processo civil de 2015), e disto deriva que a impugnação deva ser subscrita por advogado (art. 103 do Cód. pr.civ./2015), ainda que, como se verá, o déficit deste requisito não interdite o julgamento da dúvida (é dizer, não há aí efeito substantivo de revelia).
 
500.Impugne-a ou não o apresentante, a dúvida tem sequência até decisão final (por sentença: art. 199, in fine, da Lei n. 6.015), sempre ouvido o Ministério público, na condição de custos legis (art. 200).
 
Assinale-se que uma compreensão demasiado literal da regra desse art. 200 da Lei de registros induziria a considerar que o Ministério público apenas em caso de a dúvida ser impugnada oficiaria nos autos: “Impugnada a dúvida com os documentos que o interessado apresentar, será ouvido o Ministério Público, no prazo de dez dias”.
 
Melhor parece, entretanto, estimar que o Parquet atue em todos os processos de dúvida, em razão do interesse público presente no dissídio, seja a dúvida impugnada ou não: inc. I do art. 178 do Código de processo civil de 2015. Não sendo a dúvida, porém, processo jurisdicional-contencioso, nela não cabe a intervenção das Curadorias de incapazes e de ausentes.
 
Normativa especial, a Lei n. 6.015 parece prevalecer no tocante com o prazo (de 10 dias) para a vertente manifestação do Ministério Público (art. 200), a despeito da previsão genérica de maior prazo estabelecida pelo Código processual civil de 2015 (caput do art. 178). Da mesma sorte, esse referido prazo de decêndio não se contará em dobro, por força do que dispõe o § 2º do art. 180 do Código de 2015 (“Não se aplica o benefício da contagem em dobro quando a lei estabelecer, de forma expressa, prazo próprio para o Ministério Público”).
 
A esses prazos –de impugnação e de manifestação da Promotoria pública− deve, contudo, aplicar-se a regra do art. 219 do Código de 2015: “Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis”.
 
501. A falta de intervenção do Ministério Público, em primeira instância, ainda que seja mácula processual, não acarreta, ipso facto, a nulidade do processo, sendo exigível, a tanto, indicação e prova de prejuízo em concreto de algum interessado.
 
A economia do processo −princípio maiúsculo que lhe dirige o itinerário− recomenda, com efeito, que se avive sua instrumentalidade, reconhecendo-se o remédio de que não há nulidade sem prejuízo: pas de nullité sans grief, suprindo-se o versado vício originário mediante a intervenção do Ministério Público em segundo grau (cf., neste sentido, brevitatis causa, no STJ, REsp 308.662, REsp 554.623, REsp 604.264, REsp 271.680, MC 10.651, REsp 604.264, REsp 549.707 −este último julgado advindo da relação do saudoso Ministro Domingos Franciulli Netto).
 
502. O processo de dúvida é, ordinariamente, um processo documentário, porque se põe em tela de discussão o registro de um título pré-constituído.
 
Dessa maneira, nele não se admite, de comum, a produção de provas −sejam, de logo, a pericial e a testemunhal, sejam ainda as documentárias, porque se estaria, com estas, a propiciar um prazo excessivo de saneamento, para além do trintídio previsto no art. 188 da Lei n. 6.015, com risco de moléstia ao interesse de terceiros (concorrentes ao registro).
 
Assim, as diligências a que se refere o art. 201 da Lei de Registros são apenas relativas a esclarecimentos sobre a matéria em debate, não se rendendo ao fim de complementação do título objeto da pretensão registral.
 
Há um caso, porém, em que se admite a dilação instrutória −e, quando propícias, até mesmo provas de caráter oral e técnico: trata-se aqui da dúvida assentada em uma impossibilidade de satisfação das exigências correspondentes (caput do art. 198 da Lei n. 6.015: “Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, etc.”). Sempre que essa impossibilidade não for mera difficultas præstandi, mas impedimento absoluto, é de admitir-lhe a correspondente confirmação probatória.
 
503.A sentença, no processo de dúvida, pode ser meramente extintiva (sem resolução de mérito: art. 485 do Cód.pr.civ.; p.ex., homologando-se desistência) ou ser de mérito (art. 487).
 
Nada obstante o caráter administrativo do processo, deve o juiz proferir sentença com observância de seus elementos essenciais, a saber, segundo o que prescreve o art. 489 do Código, enunciando relatório, fundamentos e dispositivo (ainda uma vez, neste passo, remete-se ao art. 15 do Código).
 
Hipótese de sentença extintiva simpliciter é a de prejuízo da dúvida, quando o apresentante (i) se conforma com as exigências registrais, no todo ou em parte, ou (ii) saneia as deficiências do título durante a tramitação processual. Neste quadro, não subsiste o dissídio ou, quando subsista em parte, o resultado do processo é já de antemão conhecido pela denegação do pleito de registro (e nisto consiste o pré juízo). Solução diversa levaria à dúvida meramente doutrinal (uma consulta, enfim) ou a permitir a sanação do título em período ampliado, com o risco de detrimento de interesses de terceiros concorrentes ao registro.
 
504. Proferida a sentença, dela cabem os recursos
 
(i)    de embargos de declaração (arts. 1.022 e 15 do Cód.pr.civ.), dentro no prazo de cinco dias (art. 1.023), interrompendo-se o prazo para a interposição de outro recurso (art. 1.026), e
 
(ii)   de apelação (art. 202 da Lei n. 6.015: “Da sentença, poderão interpor apelação, com os efeitos devolutivo e suspensivo, o interessado, o Ministério Público e o terceiro prejudicado”).
 
O procedimento da apelação deve ser o previsto no Código de processo civil: o recurso é de interposição perante o juiz de primeiro grau (art. 1.010), dentro no prazo de 15 dias (§ 5º do art. 1.003), e ao terceiro prejudicado apelante cabe “demonstrar a possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa discutir em juízo como substituto processual” (par.ún. do art. 996).
 
Duas questões avultam, neste ponto: (i) pode o registrador apelar da sentença de improcedência da dúvida? E (ii) de qual remédio processual pode valer-se o apelante se o juiz de primeiro grau inadmitir o recurso?