Des. Ricardo Dip
 
525. “Rogar” é pedir com instância, com insistência, de modo incessante, é suplicar, “pedir por favor” (Laudelino), vocábulo que provém do verbo latino rogo (infinitivo rogare), mas que tem parentesco com o verbo rego (infinitivo regere), “dirigir-se a”, “demandar”, “interrogar” (Ernout-Meillet). Seu derivado rogatio significa “demanda”, “questão”, “oração”, e com os prefixos ab e de leva ao sentido de supressão (abrogatio, derogatio), ao passo em que a prefixação ad lhe induz a ideia de acréscimo ou associação (adrogatio), “demanda adicional”. O vernáculo masculino “rogador” significava, nos séculos XIV e XV, “advogada, medianeira, intercessora” (de um documento viseense de 1356 consta a expressão “Santa Maria, Rogador dos pecadores” −cf. Viterbo).
 
A rogação registral também se designa instância: do latim instantia, æ, que tem, neste quadro, as acepções de “constância”, “persistência”, “perseverança”, “veemência”, ou seja: corresponde a pedido insistente, forte, assíduo, e Jerónimo González usa ainda, por sinônimo de “rogação”, o termo voluntariedade.
 
526. Corresponde o princípio da rogação registral à ideia clave de disposição, vale dizer que o processo registrário se inicia à instância do interessado, é um processo sujeito ao dispositivo (Lacruz), categoria antinômica do princípio do inquisitivo −em que se procede propter officium, situação sempre excepcional (p.ex., a abertura de matrícula −cf. Nussbaum; quando haja reflexo de um registro sobre outro −Afrânio de Carvalho; quando se der a caducidade de uma inscrição −v.g., a perempção da hipoteca, na linha do que solidou a jurisprudência registral do Estado de São Paulo).
 
527. A voluntariedade na demanda do registro de um título exige, pois, à partida, um pedido de inscrição, que se destina ao registrador, mas o que parece de logo muito claro e simples, esconde algumas questões interessantes. Tratemos de algumas delas.
 
(i) A obrigatoriedade dos registros harmoniza-se com sua voluntariedade?
 
(ii) Essa voluntariedade da demanda registrária é meramente inaugural?
 
(iii) A manifestação do princípio dispositivo corresponde, de modo exauriente, ao pedido explícito de registro, ou, além disto, abrange a documentação oferecida?
 
(iv) A rogação há de ser necessariamente vocal?
 
(v) Sendo manifestação de vontade, a rogação está sujeita a vícios e, pois, a eventuais nulidade ou anulabilidade?
 
(vi) Os efeitos da rogação estendem-se a lançamentos tabulares acessórios?
 
(vii) Atuando o apresentante o título em favor da pessoa diretamente interessada no registro, exige-se prova de mandato?
 
(viii) Ainda em caso de o solicitante do registro ser diverso do interessado na inscrição, deve o registrador, em algum caso, controlar o consentimento desse interessado?
 
(ix) Admite-se a convenção de não registrar-se um título?
 
528. Vamos, pois, ao primeiro tema: a obrigatoriedade dos registros harmoniza-se com sua voluntariedade? Por que os atos de registração se revestem de obrigatoriedade?
Lê-se na lei brasileira de registros públicos, a Lei n. 6.015, de 1973, que os atos de registro e averbação nela previstos (no art. 167) são obrigatórios (art. 169). Durante algum tempo, entendeu-se, na jurisprudência administrativa paulista, que não haveria propriamente obrigação na prática desses atos, mas simples ônus. Essa orientação perdeu sua força, sobretudo à luz de que a ordenação da propriedade privada imobiliária −e dos direitos reais menores sobre imóveis− não pode ficar à mercê da livre disposição dos adquirentes. Com efeito, sendo o registro imobiliário uma instituição pública, é de todo razoável exigir que a ela acedam os títulos que possam afetar essa ordenação.
Assim, reconhecida a obrigatoriedade da inscrição predial, o problema que se põe é o de sua convivência com a voluntariedade ou consentimento no acesso registrário (art. 13 da Lei n. 6.015). O problema envolve, de um lado, o já referido caráter público da instituição registral, mas, de outro, a circunstância de que, ainda haja interesse comunitário acerca das inscrições prediais, o interesse imediato nos registros é dos particulares (ou, quando o caso, das entidades públicas que adquiram propriedade ou outros direitos sobre imóveis) e não da comunidade. Por isto, a ideia de voluntariedade empolgada pelo princípio da rogação registral não vai ao ponto de equivaler à facultatividade da inscrição, mas, isto sim, alça-se ao plano de eventual responsabilidade civil do interessado, sem impor, de toda a sorte, a atividade oficiosa do registrador (cf., a propósito, Roca Sastre).
 
529. Julgado de uma das Câmaras da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo apreciou e decidiu um caso em que o interessado não registrara uma servidão administrativa.
Depois de lembrar que a Lei brasileira de Registros Públicos preceitua que os atos elencados em seu art. 167 são obrigatórios (art. 169), e que, entre esses atos, está o do registro das “servidões em geral” (n. 6 do inc. I do referido art. 167), o julgado sob exame invocou a doutrina de Hely Lopes Meirelles, para quem        , “como todo ônus real, a servidão administrativa só se efetiva com o registro competente, para conhecimento e validade erga omnes …” (esta é, por igual, a orientação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro e de José Carlos de Moraes Salles, bem como, na jurisprudência pretoriana, o que consta de decisões do Superior Tribunal de Justiça −REsp 953.910− e do Conselho Superior da Magistratura paulista: p.ex., AC’s 288.824, 288.866, 284.589, 60, 136, 353, 745, 867 e 943).
E prossegue o julgado:
 
“O sistema do registro de imóvel brasileiro é servil ao princípio da instância ou rogação, de sorte que, ressalvadas as hipóteses de ordem judicial, requerimento do Ministério Público (quando a lei autorize) e algumas poucas exceções de atuação oficial do próprio registrador (p.ex., n. 13, inc. II, art. 167, Lei n. 6.015, de 1973), os atos de registro e averbação efetuam-se «a requerimento verbal ou escrito dos interessados» (inc. II, art. 13, Lei cit.).
 
Lê-se, todavia, no art. 217 da Lei n. 6.015, que «o registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas».
 
(…)
 
Mas, se qualquer pessoa pode provocar esse registro, não se vê fundamento para supor, de modo singular, a situação moratória ex re de uma só delas. Por isso, entende-se o motivo de a normativa de regência não assinar prazo para «qualquer pessoa» promover o registro.
 
Está-se diante de obrigações sem prazo, em que a mora só se pode reconhecer com a atividade do credor que diligencie o adimplemento obrigacional (cf. Enneccerus …). Era assim no Código Civil de 1916 (segunda parte do art. 960); é assim no Código Civil em vigor (: «Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial» -par.ún., art. 397). A mora, nas obrigações carentes de prazo certo, depende, pois, da «reclamação do cumprimento imediato feito pelo credor» (Antunes Varela…), porque «em tais casos, a obrigação não se vence pelo decurso do tempo, por mais longo que ele seja» (Agostinho Alvim…). Até, porém, que o devedor se constituísse em mora, não se poderia cogitar de ilicitude em seu comportamento, uma vez que «o ato ilícito consiste em o devedor deixar de efetuar oportunamente a prestação» (Galvão Telles…).
 
Ora, tanto se verifica destes autos, a interpelação (…), em ordem ao cumprimento da obrigação em registrar a servidão administrativa, apenas se deu com a citação para responder a esta demanda.
 
Logo, os danos patrimoniais e lesões morais apontados pelos autores, tanto que referentes a período anterior à constituição em mora, forram-se dos efeitos que poderiam somente provir da ilicitude da conduta do devedor moroso: «A ausência de estipulação de prazo, em obrigações de fazer, caracteriza a mora ex persona. Necessidade de prévia constituição em mora do devedor» (REsp 487.614 −Min. Nancy Andrighi)”.
 
Desta maneira, a obrigatoriedade da inscrição imobiliária convive com a exigência comum de sua rogação −ne procedat tabularius ex officio−, mas a correspondente responsabilidade civil do interessado omisso, seja a por danos materiais ou a por lesões morais, sempre supõe a regular constituição em mora.