(Princípio da rogação ou instância -Quinta parte)
546. Perguntar se é possível, juridicamente, postular uma inscrição predial em favor de terceiro, sem prova de mandato, é, no fim e ao cabo, sindicar acerca da legitimação postulatória no registro (legitimatio ad tabulam vel ad rogationem)
Pode estender-se essa pergunta, até ao ponto de verificar se é admissível pleitear uma inscrição contra a vontade do favorecido −rogatio invite accipiente.
547. O problema é, em grande medida, norteado pela determinação legislativa. Nada impede, em princípio, que se preveja uma restrita legitimatio ad rogationem inscriptionis (p.ex., só a autorizando quando o favorecido, segundo o título, seja o solicitante da inscrição).
A exigência de participação direta dos legitimados em dada aquisição, sem admitir que terceiros −até mesmo procuradores− pudessem substituí-los, não é de todo rara na história do direito. Tomemos um exemplo, a este propósito, com a Ley de Partidas, que, ao regular a stipulatio (que, nas Espanhas, tinha o nome de promissión), impôs que a outorga −consensus− que haviam de fazer “los omes” −inter contrahentes−, não apenas se exprimisse por palavras (verbis expressis), senão que também contasse com a presença dos contratantes (inter præsentes) −cf., brevitatis studio, Rafael Núñez Lagos, no fundamental Hechos y documentos en el derecho público.
548. O direito normativo brasileiro atual, já o temos dito, acolhe um largo espectro de legitimados à rogação, como se lê nos arts. 13 e 217 da Lei n. 6.015, de 1973:
Art. 13. Salvo as anotações e as averbações obrigatórias, os atos do registro serão praticados:
I – por ordem judicial;
II – a requerimento verbal ou escrito dos interessados;
III – a requerimento do Ministério Público, quando a lei autorizar.
Art. 217. O registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas.
A leitura isolada da norma do inciso II desse referido art. 13 poderia induzir à admissão de que se comprovasse o interesse na inscrição e, de conseguinte, competisse ao registrador aferir esse interesse em cada caso.
Em contrário, a enunciação do art. 217 da Lei brasileira n. 6.015 levaria a admitir uma onímoda legitimação ad tabulam, ou seja, tal ali se anuncia, o registro e o averbamento podem ser “provocados por qualquer pessoa”.
A conjugação destes dois dispositivos parece dar razão bastante a Afrânio de Carvalho, quando acentua ser caso de elencar os legitimados ad rogationem, mas tal se verá, ao arrolar, entre os alistados, os mandatários tácitos, vale dizer, os meros portadores dos títulos formais para o registro, este valioso eminente jurista acaba por admitir uma largueza subjetiva que, praticamente, corresponde ao conceito “qualquer pessoa”.
Relaciona Afrânio de Carvalho por legitimados ad tabulam:
(i) os partícipes da estipulação do negócio jurídico objeto do registro (disponente e adquirente);
(ii) o representante legal ou negocial desses partícipes (pai, mãe, tutor, curador, inventariante, síndico, gerente, administrador de uma sociedade, procurador);
(iii) “o mandatário tácito de qualquer das partes, entendendo-se como tal o portador dos títulos ao registro para a inscrição”;
(iv) o terceiro interessado em inscrever, tanto positivamente, quanto negativamente (cancelamento).
549. Em resumo, podem solicitar a inscrição imobiliária −vale por dizer, têm legitimidade ad rogationem inscriptionis− os adquirentes de imóveis ou de direitos menores sobre estes, os disponentes da propriedade predial ou de direitos menores relativos a ela, os que tenham interesse em assegurar os direitos aludidos, os que tenham mandato de qualquer destes legitimados −mas, entre estes últimos, parece devam considerar-se também os que meramente sejam portadores dos títulos: “El Registrador no puede (…) exigir que el presentante acredite su poder o facultad representativa…” (Roca Sastre, à luz da Ley Hipotecaria espanhola), embora cumpra referir as exceções a que remete Roca, apoiando-se em decisões administrativas, quais a do “presentante” do título que se afirme simples gestor oficioso dos interessados ou “que ha encontrado el título en la calle”.
As normas relativas ao mandato estão, entre nós, previstas no Código Civil de 2002 (arts. 653 et sqq.), prevendo-se o mandato tácito (art. 656): semper qui non prohibet pro se intervenire mandare creditur −aquele que não proíbe que se intervenha em seu nome, considera-se que manda (Ulpiano). Está, porém, esse mandato sujeito às regras de capacidade e incompatibilidades, matéria que deve ser considerada pelo registrador.
Tem-se, pois, de maneira manifesta, que o ato de rogação registral não é personalíssimo, podendo resultar da atuação de mandatário expresso ou tácito, este, contanto que satisfeitas as exigências de capacidade e compatibilidade, não se afirme gestor propter officium ou a mera achada do título, sem outro liame com os favorecidos em seu registro.
Deste modo, em princípio, não compete ao registrador exigir prova alguma de mandato daquele que postule a inscrição em benefício de terceiro (mandante).
550. Tampouco é de negar a possibilidade de que um terceiro interessado promova a inscrição contra a vontade do adquirente. Vamos a um exemplo: Tício solicita o registro de uma aquisição imobiliária em favor de Semprônia, sua devedora, que se recusa a postular a inscrição.
Na prática, apresentado o título formal (em nosso exemplo, uma escritura tabelioa), aparentará que o solicitante seja mandatário tácito. Mas, em rigor, será terceiro interessado, porque Semprônia não poderá impugnar o registro por falta ou excesso de mandato.
Cabe aqui realçar uma distinção: uma coisa é o pedido de registro, a declaração de vontade que inaugura o processo de inscrição imobiliária; outra, o fato material da apresentação do título, da qual apresentação pode extrair-se quer a existência de mandato tácito, quer, quando o caso, a de pretensão de terceiro interessado. Ora, desde que, de algum modo e eventualmente, o apresentante do título indique sua condição de terceiro interessado, sua legitimidade deverá ser confirmada pelo registrador.
551. Num sistema de inscrição obrigatória (tal o caso brasileiro atual: vidē art. 169 da Lei n. 6.015/2973), a rogação registrária tende a perder sentido, o que acarreta a extensão dos possíveis legitimados a promover a inscrição predial, bem como o alargamento das hipóteses de registro propter officium (cf., a propósito, Alvarez Caperochipi).
Isto explica a razão pela qual, na prática, sejam poucas as situações excepcionais −embora as haja− em que as postulações de registro não possam ser realizadas por mandatários aparentes, sem que se aparelhe uma preocupação com a higidez do sistema.
Alvarez Caperochipi diz acertadamente que o princípio da rogação, em sua plenitude, só tem sentido em um sistema de registros voluntários, não, porém, num sistema em que as inscrições sejam compulsivas.