A história da professora que aos 60 anos tomou a extraordinária decisão de não se submeter a nenhum tipo de tratamento para enfrentar um câncer terminal
Era setembro de 2016. A professora gaúcha Ana Beatriz Cerisara fora internada para reverter uma colostomia, procedimento usado para a eliminação de fezes em uma bolsa. Ana Bea, como é carinhosamente conhecida, queria livrar-se do incômodo saco de plástico que trazia no corpo havia nove meses. Ao acordar da cirurgia, ouviu do médico que teria de continuar com o dispositivo, mas esse seria o menor de seus problemas. Incapaz de dizer as palavras certas, o cirurgião preferiu então lhe entregar um pedacinho de papel, onde se lia o seguinte: “Três lesões invasivas no intestino”. Ele havia detectado durante a operação três cânceres no intestino, uma quantidade raríssima de aparecer no mesmo órgão. Quimioterapia, radioterapia ou medicamentos pouco adiantariam. Uma cirurgia seria o tratamento possível, mas poderia resultar na retirada quase total do intestino. Nesse caso, Ana Bea passaria a se alimentar por via artificial pelo resto da vida.
Foi quando ela tomou a decisão que mudaria tudo: resolveu, ali mesmo, que não se submeteria a nenhuma cirurgia e deixaria a vida continuar seu curso natural. Ana Bea estava com 60 anos. Saiu do hospital de luto pela própria morte, mas reconfortada. “A decisão de abrir mão da cirurgia me deu calma”, conta ela, que conseguiu enxergar sua finitude com serenidade. “Estou pronta para morrer. Não estou desistindo. Apenas não quero ficar viva a qualquer preço.” Naquele setembro de 2016, Ana Bea ouviu dos médicos que, sem tratamento, teria até dois anos de sobrevida. Depois de saber disso, ela deixou o hospital sem dores nem cansaço. O cabelo brilhava, a pele estava viçosa. Convivia com a contradição de ter um corpo vigoroso, mas silenciosamente tomado por um câncer brutal.
Sua primeira providência foi cercar-se de informações sobre casos de pessoas que recusam tratamentos. Só encontrou algo semelhante em doentes já no leito de morte. Matriculou-se, então, em um curso que chegara à cidade em que mora, Florianópolis, com orientações sobre como lidar com a dor da perda de pessoas próximas, o Conversas sobre a Morte, do Humana Palavra. Nos minutos iniciais da primeira aula, os alunos tinham de explicar o motivo que os levara até ali. “A morte de um filho? Do pai, da mãe, de um amigo?” Ao chegar sua vez, Ana Bea disse: “Preciso aprender a morrer”. Os trinta alunos presentes emudeceram diante da frase inusitada. A criadora do curso, a geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, médica da Casa do Cuidar, respondeu: “Há um aspecto muito especial em sua situação. É na percepção da morte que temos a real oportunidade de ser o que de fato gostaríamos de ter sido”.
Ana Bea não fez coisas extraordinárias, como uma viagem exótica para um país distante. Nos primeiros meses pós-diagnóstico, ficou em sua casa, em cujo terreno, nos fundos, moram seu filho, Cauê, de 36 anos, sua nora, Ana Carolina, e sua neta Clara, de 6 anos, para quem “a vovó vai virar uma estrelinha no céu”. Ana Bea cuidou do jardim e mudou de ares: renovou o que pôde, coloriu, enfeitou. Espalhou orquídeas pela sala. Encapou o sofá com um tecido roxo, que lhe pareceu alegre. Pintou de verde as paredes do escritório. Encheu três caixas com livros e os doou. Arrumou o material de costura em potes. Usou as economias para realizar um sonho sempre adiado, ter um carro zero-quilômetro. Passou a comprar à vista ou, no máximo, em três prestações, não mais do que isso. Reformou os armários tomados por cupins. A casa cou bonita, com tudo no lugar. “Precisava ter a sensação de vida organizada. Não fiz isso pelos outros, mas para agradar a mim mesma”, diz. Embora possa parecer banal, é disto que as pessoas mais se arrependem quando recebem a notícia de uma doença incurável: ter feito tudo para agradar aos outros, e não a si mesmas, como relata o livro Antes de Partir, da enfermeira australiana Bronnie Ware.
Formada em pedagogia, Ana Bea deu aula na Universidade Federal de Santa Catarina durante 25 anos. Trabalhava, em média, dez horas por dia, inclusive em muitos fins de semana. Conviveu pouco com o filho único, mas a doença a fez mudar nesse campo também. Pediu aposentadoria, livrando-se das pressões do mundo acadêmico, e tornou-se terapeuta de uma linha chamada constelação familiar, ferramenta que se vale da árvore genealógica para descobrir a causa de algum ponto frágil na vida e, assim, abrir caminhos para solucionar problemas de relacionamentos. Aproximou-se do filho. Voltou a falar com o ex-marido. Abandonou a dieta e passou a comer tudo de que tem vontade, sobretudo pizza, seu prato predileto.
Em meio a essas mudanças, Ana Bea começou a receber cuidados paliativos, área da medicina que trata de pacientes terminais para minimizar o sofrimento de uma doença incurável. O tratamento pretende reduzir as dores e os desconfortos físicos e emocionais. É uma tendência crescente, destinada a evitar o prolongamento da vida a qualquer custo. Em 2006, havia apenas treze centros de saúde que ofereciam tratamento paliativo no Brasil. Hoje, já existem pelo menos 120 centros desse tipo, de acordo com a Academia Nacional de Cuidados Paliativos. A depender do estado do paciente, essa forma de atenção pode evitar que os últimos momentos de vida se passem sob uma sucessão de procedimentos que apenas adiam uma morte inevitável, às vezes à custa de muito sofrimento. Permite, inclusive, planejar a morte.
Ana Bea planejou a sua. Recentemente, pagou a própria cerimônia de remação. O velório será numa igrejinha localizada perto de sua casa. Ela também decidiu que não quer morrer em casa. Quando não conseguir se manter independente, irá para um hospital, acompanhada apenas de pessoas muito próximas. “A última coisa que quero é ser aquelas mortas que dão trabalho”, diz, gargalhando gostosamente. E nada de ser ligada a aparelhos para adiar artificialmente o fim. “Não quero morrer sentindo os sintomas que a doença acarretará nos últimos dias, como dores fortes no corpo ou falta de ar. Para isso, sei que estarei mais bem assistida no ambiente hospitalar.”
As causas mais comuns de morte associadas aos cânceres de Ana Bea são oclusão intestinal, falência hepática por metástase e anemia incontrolada. Sabendo disso, há um mês ela decidiu fazer seu testamento vital. É um documento que qualquer pessoa pode fazer e no qual registra o tipo de tratamento que deseja receber quando estiver no leito de morte, e talvez não possa mais tomar decisões. Para aumentar a legitimidade do documento, o testamento vital deve ser validado por um médico e ter registro em cartório.
A decisão de Ana Bea é extraordinária porque ocorre em pleno século XXI, na era em que a ciência médica atingiu o trunfo de prolongar a vida de modo impensável há apenas algumas décadas, e não esconde sua morte. Ao contrário, ela a expõe. Na história da humanidade, a morte já foi um espetáculo público. Todos queriam ver o cadáver. O quarto do moribundo era como uma praça pública, na clássica definição do francês Philippe Ariès (1914-1984), autor do livro História da Morte no Ocidente, um relato de como o fim e o sofrimento eram exibidos sem pudores. As casas eram sempre abertas para a entrada dos vizinhos, dos amigos. Morria-se na sala de jantar, com crianças em volta. Mas, na cultura ocidental do século XX, o fim deixou de ser um momento coletivo. O lugar da morte agora não é mais a casa — é o hospital, de preferência às escondidas. As cerimônias encolheram, e as emoções deixaram de ser extravasadas. O sofrimento público virou algo inadequado. Quando saiu dos lares e ingressou nos hospitais, a morte adquiriu contornos mais dramáticos, como se sua chegada fosse o resultado de um fracasso, e não decorrência inevitável da vida.
A evolução da ciência a que se assistiu nas duas últimas décadas tornou ainda mais difícil lidar com o desfecho que pode ser, se assim quisermos, adiado por um bom tempo à base de cuidados médicos. Remédios cada vez mais precisos e exames sofisticados zeram o ser humano viver mais, mesmo muito doente. Tome-se como exemplo o paciente com câncer de cólon metastático, uma doença agressiva. Há dez anos, a sobrevida era de dez meses. Hoje, é quatro vezes maior. As armas da medicina tentam manter a vida a qualquer custo, ainda que, muitas vezes, passando por cima do bem-estar do doente. Morrer na UTI passou a ser o símbolo de uma luta incansável até o fim. O abuso das intervenções criou aberrações, como aquele destinado a manter viva, em ambientes fechados, a vítima de enfermidade cuja cura e recuperação estão além dos limites conhecidos. Ana Bea não quer morrer em casa, como antigamente, mas renunciou aos derradeiros recursos da ciência e passou a encarar a própria morte de modo incomumente leve. Sorri quando fala do assunto.
Um ano e três meses se passaram depois do diagnóstico dos seus três cânceres. A sentença não a fez apenas abrir mão da cirurgia ao longo desse tempo, mas também de qualquer tipo de técnica para tratamentos e diagnósticos, como biópsias e testes de imagem. Até agora, ela recebeu uma transfusão de sangue para aplacar uma anemia severa, efeito dos tumores. A falta de ferro deixa-a cansada mais rapidamente e tira-lhe o fôlego algumas vezes. Como estava se sentindo bem, animada, em algum momento lhe passou pela cabeça ir um pouquinho mais fundo, para entender o estado dos cânceres. Quis saber se estavam estagnados, se haviam crescido ou atingido outros órgãos. Em 16 de novembro, marcou um exame para rastrear o intestino internamente, por meio de uma colonoscopia. Dois dias antes, ela o cancelou. “De que adiantaria a minha curiosidade, afinal? Com essa decisão, estou abrindo mão denitivamente do meu desejo de ter controle sobre o incontrolável, e sigo a vida pelo tempo que meu corpo permitir”, diz ela.
Ao ser questionado sobre como está lidando com a decisão materna, o filho, Cauê, responde: “Respeito a escolha de minha mãe. Ela mudou nesse período, está mais tranquila, mais próxima. Tudo melhorou. Mas não estou preparado para a morte. Não sou forte como ela”. Ana Bea é apaixonada por Game of Thrones. Criou um grupo no WhatsApp para comentar cada m de episódio com as amigas. Quando soube da doença, lembrou a data do início da sétima temporada, em julho deste ano. Angustiou-se profundamente com a possibilidade de não chegar lá. Uma semana antes, ao perceber que estaria bem no dia, organizou uma festa para que assistissem todas juntas à estreia. A oitava temporada está prevista para 2019. “Está tudo certo, já tive muito mais do que esperava”, conclui.
No primeiro m de semana de dezembro, fez o que sempre desejou: um passeio de stand-up na Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Dias antes, participara da festa de encerramento das atividades de seu grupo de terapia. Emocionados, os 25 integrantes comemoraram o fato de Ana Bea estar entre eles. E brindaram ao ano que virá. Ecoavam um raciocínio de Michel de Montaigne (1533-1592): “Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade”.
Uma nova chance de vida
Ana Claudia Quintana Arantes, uma das médicas mais experientes nos cuidados paliativos no país, fala sobre a beleza que pode existir na finitude
Seu trabalho é transformar o diagnóstico terminal em algo bom. Como isso é possível? Digo que a dor de quem recebe essa notícia é semelhante à sensação de afogamento em mar aberto. Os familiares também sofrem, mas estão em uma piscina infantil — se levantarem, sobrevivem. Perceber-se mortal, no entanto, é algo que pode fazer bem para o doente e para os que o cercam. É uma nova chance de vida. Para isso, claro, a pessoa precisa estar sem os sintomas da dor física e emocional da doença — e é isso que os cuidados paliativos fazem.
Alguém morre em paz? Vejo no meu dia a dia alguns pontos em comum entre os que conseguem ter paz nesse momento. Aqueles que consideram ter tido uma vida feliz terão um fim menos sofrido. O ateu costuma lidar melhor com a morte. Ele não culpa ninguém, não terceiriza as decisões. O sagrado para ele é a vida em si. Os que seguem uma religião podem querer barganhar com seu deus na hora H.