(Princípio da legitimação registral -Primeira parte)
Des. Ricardo Dip
557. Da inscrição imobiliária positiva redunda uma eficácia recognoscitiva direta de domínio ou de outro diverso direito inscrito. Principalmente, de domínio, porque os direitos reais menores são desdobramentos do direito de propriedade, e os pessoais inscritos são de notória anexidade. Já da inscrição negativa resultam reflexos indiretos de reconhecimento da propriedade e de doutros direitos, na medida em que da averbação de cancelamento emergem restaurações, retificações, recomposições de status, etc.
Do gênero dessa eficácia −que consiste, pois, num reconhecimento sumário e presumido− participam duas espécies: uma, a fé pública tabular, outra, a legitimação registral. Para logo, não se confunda a primeira, fé pública registral, com a fé pública do registrador, coisas diversas que são; aquela, uma presunção iuris et de iure relativa ao status objeto da inscrição; já a fé pública do registrador é seu testemunho qualificado referente ao conteúdo de documento constante de seus livros ou arquivos, atraindo o valor de uma presunção iuris tantum (a exemplo do que ocorre com a fé pública notarial, que é também ornada de presunção relativa, e que se diferencia da fé pública do registrador porque é testemunho fundado em imediata captação visual ou auditiva e correspondente percepção sensória de não importa quais fatos sensíveis).
558. A legitimação registral imobiliária pode, portanto, definir-se, presunção de domínio (ou de outro direito) emanada da inscrição predial.
A inscrição (registro ou averbamento) é uma causa emanante da legitimação registrária, porque nada se intercala entre o efeito legitimador e a causa de emanação. Com rigor terminológico, a inscrição não produz o efeito legitimador −não é sua causa eficiente stricto sensu−, mas isto sim, com só existir a inscrição, dela emana, por inferência jurídica imediata, a eficácia legitimadora. Assim, basta a existência do registro ou averbação para que o efeito emanado se reconheça, sem necessidade de ato intermédio de recognição (o que, ao revés, haverá de exigir-se em outra espécie de legitimação dominial, a que provém da posse)..
Ao lado da legitimação registral, que é uma legitimatio proprietatis secundum tabulam, tem-se ainda, como se aludiu acima, a legitimação oriunda da posse, que pode ser uma legitimatio proprietatis contra tabulam. Trata-se aqui de uma legitimação em certo sentido mais ampla do que a registrária, ao admitir-se que a possessão seja não só segundo o registro, mas também contra ele −secundum sed etiam contra tabulam. Noutro sentido, todavia, a legitimatio proprietatis derivada da posse sempre exige não somente a especificação de a possessio ser ut dominus −posse como se fosse de dono (com intenção ad dominium ou ad usucapionem −posse para adquirir, posse para ser dono), senão que também um ato formal de recognição (no caso brasileiro, ato judicial ou extrajudicial; vidē art. 216-A da Lei n. 6.015/1973, de 31-12). Paradoxalmente, a legitimatio proprietatis possessiōne −legitimação dominial pela posse−, embora possa ser destrutiva da legitimação constante do registro predial, visa exatamente a ser uma nova legitimação tabular (ou seja, pretende-se, no fim e ao cabo, a inscrição do domínio adquirido mediante a posse ad usucapionem).
A legitimação possessória −por isto que a posse é, numa enunciação consagrada, a visibilidade do domínio− deriva sempre da apreensão física do imóvel, de sua tenência (este vocábulo deriva do verbo latino teneo, infinitivo tenere, que tem, entre muitos sentidos, o de ter, segurar, ocupar, conservar, reter, manter). Embora ao verbo teneo não falte uma dada acepção imaterial (a de compreender, ter em mente, lembrar, saber, perceber), a ideia de posse −como tenência− é a de uma relação apreensiva material entre um sujeito e uma coisa: a posse é uma aprehensio materialis rei). E se a legitimação registral, no expressivo dizer de Alvarez Caperochipi, está “organizada a imagen y semejanza de la legitimación posesoria”, calha que a tenência material (aprehensio materialis rei) substitui-se pela inscrição, “espiritualiza-se” por meio de uma inscriptio incorporalis rei −a inscrição imaterial da coisa, a inscrição significativa e substituinte da posse do imóvel.
559. A legitimação registral, como já se adiantou, é uma presunção de propriedade (ou de outros direitos) emanada da só inscrição no registro.
Falar em presunção é falar em dispensa correspondente da prova do que se presume. Desta maneira, a legitimação registral dispensa a prova da transmissão, porque faz presumir o domínio −o que implicita a da titulação hábil a constituí-lo. Neste ponto, a legitimação registral, por ser efeito emanado da inscrição, reitere-se, dispensa atos intermédios, diversamente do que se passa com a legitimação dominial resultante da posse, que exige prova da intentio ou animus domini, do tempo da possessão, de seu caráter pacífico e não clandestino.
Mas de que presunção se trata com a legitimação registral?
Por um critério de divisão, umas há que são presunções claustrais, clausuradas a toda em prova contrário, a toda prova que negue aquilo que se presume (presunções iuris et de iure, absolutas); outras são relativas, iuris tantum, convivendo com a admissibilidade de provas que as adversem, que infirmem o caráter presuntivo de seu conteúdo.
Ainda mais, por outro critério de classificação, algumas presunções são de fato, outras de direito (præsumptiones iuris), abarcando, estas últimas, a configuração jurídica dos fatos implicados na presunção, ao passo que as primeiras (præsumptiones facti) apenas dispensam a prova dos fatos, mas permitem a livre interpretação do correspondente status jurídico. Tal o disse Kuttner (apud Lacruz Berdejo), as præsumptiones iuris avessam o princípio clássico narra mihi factum, dabo tibi ius, porque cerram a interpretação do status pela só referência ao fato de sua constituição.
Por outro aspecto, a legitimação registral, além de ser uma presunção iuris tantum de domínio, é também uma præsumptio iuris, porque a publicidade registrária é do status do direito e não do fato ou título aquisitivo. A inscrição predial refere a constituição do estado jurídico e, mercê de sua eficácia de presunção de direito, inibe a tarefa de submeter o fato constitutivo ou causa à norma, porque isto já se cumpre pela mesma inscrição.
Assim, a inscrição imobiliária, porque tem efeito de presunção relativa, afastando embora a necessidade de prova da titulação constitutiva, pode ser, contudo, alvejada, tanto pelo ataque indireto −contra o título−, quanto pelo direto (p.ex., um erro registral), bem como pelo fato superveniente de uma usucapião −em que prevalece a legitimatio proprietatis contra tabulam. Mas, porque a inscrição frui também da eficácia de uma presunção de direito, só pode ser controvertida quanto ao status publicado, na medida em que isto se faça em virtude do caráter relativo da presunção: o status não pode submeter-se a controvérsia autônoma, i.e., sem prova de vício na titulação ou no registro, ou ainda sem provar-se a usucapião.
A presunção iuris tantum pode ser graduada: o direito posto brasileiro vigente protege-a em gradação emérita, tal como se lê no art. 252 da Lei n. 6015: “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”. Ou seja, a legitimação registral prevalecerá, juridicamente, ainda que haja prova adversa extratabular, enquanto essa prova não ingressar no registro, de maneira que a legitimação registral só se interdita plenamente, em seus efeitos, por outra legitimação registral.
560. A legitimação tabular apresenta duas vertentes de presunção: uma, a de exatidão do assento registrário; outra, a de sua integralidade. Equivale a dizer, presume-se que as inscrições imobiliárias sejam não apenas exatas, corretas, conformes à realidade das coisas, mas também que essas inscrições sejam integrais, plenárias, completas.
Presume-se exata a inscrição, ou seja, que ela não contém erros positivos. Presume-se integral a inscrição, scl., que ela não é deficiente por erros negativos, por omissões do que nela haveria de conter-se. Em síntese: a inscrição é não só presumidamente verdadeira −corresponde à realidade das coisas−, mas presumidamente nada omite do que deveria referir.
A exatidão e a integralidade das inscrições possuem, sobretudo, um referencial transcendente, de maneira que se almeja especialmente sua correspondência com uma realidade exterior. Mas, e isto não é de todo raro, essas exatidão e integralidade podem padecer de um conflito imanente (que se solve por meio de retificações prontamente averbáveis: p.ex., meros lapsos de escrita). Sempre que o erro e sua correção forem ambos evidentes −com evidência quoad se− podem ser retificados por ato oficial do registrador (é dizer, independente de rogação ou de intervenção judiciária). Outrora, lia-se, a propósito, no § 1º do art. 213 da Lei brasileira dos Registros Públicos: “A retificação será feita mediante despacho judicial, salvo no caso de erro evidente, o qual o oficial, desde logo, corrigirá, com a devida cautela”. Esta regra foi revogada com a nova redação ditada pela Lei n. 10.931/2004 (de 2-8), mas não parece que se deva afastar a possibilidade dessa retificação propter officium, ao menos por força do costume −que é fonte do direito, do administrativo inclusive.