(Princípio da prioridade registral -Primeira parte)
580. O tema da prioridade no registro de imóveis é mais complexo do que aparenta. Simplificá-lo com o enunciado gráfico prior in tempore, potior in iure (ou, na versão axiomática medieval: prior tempore, potior iure) −“o primeiro no tempo é o de melhor direito”− não significa poder utilizar uma varinha mágica para solucionar os intrincados casos de concurso de prioridades jurídicas (registral e extrarregistrais).
De resto, na própria e restrita esfera do registro predial, há muita matéria a considerar: a da contagem do tempo −pode interromper-se?, pode suspender-se?, quais seus termini a quo et ad quem?; a da reserva de prioridade; a da retroprioridade; a da prioridade indireta; a da permuta de lugar na ordem de prioridade; a da hipoteca de proprietário, cēt.
581. Quer-se, porém, apontar, neste capítulo, um tema clave que nem sempre se reconhece: o de uma quase naturalidade política da prioridade, que se põe ao modo de um gênero (prioridade sociológica) em relação à necessidade específica do registro em considerar, na expressão de Jerónimo González, “el riguroso orden cronológico de las presentaciones”.
Isto é particularmente visível com a prioridade costumeira revelada pela manifestação, pode dizer-se universal, do fenômeno das filas (aqui incluída sua versão por meio de senhas ou de critérios biológicos −etário, gestacional, patológico: a prioridade dos idosos, das crianças, das mulheres grávidas, dos enfermos−, quando não, ultimamente, ideológicos: os sistemas de cotas), porque, ao impor-se, por exigência lógica, um único livro de ingresso ou entrada (no Brasil, o Livro do Protocolo), o registro assegura a relação mútua entre anterioridade e superioridade: o anterior no tempo −indicativo de prudência, de diligência− é justificadamente superior na proteção, de sorte que da apresentação (rectius: da prenotação, tal o enuncia a lei brasileira) resultam já alguns efeitos.
582. Excursionemos um tanto por uma breve referência histórica acerca do conteúdo “primeiro no tempo, melhor no direito”, para compreendermos, enfim, que a prioridade no registro não é um elemento que ali se justifique de maneira autônoma, artificial, senão que é um resultante da própria vida política, do valor mesmo de uma prioridade como fenômeno social corrente.
Indicam alguns autores a manifestação medieval deste conceito na prioridade de uso dos moinhos públicos (o que me foi primeiro anunciado por uma investigação a que se lançou o Juiz Josué Modesto Passos, acerca do direito alemão). Encontrou ele este refrão germânico: Wer zuerst kommt, mahlt zuerst, que corresponde ao latim “qui primus venerit, primus molet” (aforismo este último recolhido por Erasmo de Roterdam em seu Adagiorum chiliades, 1536), e equivalendo aos, agora em desuso, português: quem primeiro chega, primeiro mói; castelhano: quien primero viene, primero muele; italiano: chi prima arriva, meglio macina −mais usada, porém, é a expressão paralela: chi tardi arriva, male alloggia; galego: na acea, primeiro moe o que primeiro chega.
583. Veja-se implícita nestes aforismos a ideia de “fila” −esta realidade costumeira−, ou ainda a curiosa facécia de Santiago Pelayo Hore a que, de preferência aos sacrossantos princípios hipotecários, maior importância deva dar-se ao encontro oportuno de um táxi.
A prioridade, pois, parece algo socialmente “natural” (i.e., um dado com natureza histórica), cuja chave é o aproveitamento adequado do tempo para o êxito dos interesses. Ou seja, a prioridade é o resultado de uma oportunidade, de um momento azado, o que os gregos designaram com o vocábulo καιρός (“tempo conveniente” −Isidro Pereira).
Luís da Câmara Cascudo lembrou, a propósito de uma expressão tradicional no Brasil (“pegar a ocasião pelo cabelo”), esta passagem da “Cena policiana” (ou “Auto de Estudante”) de Anrique Lopes (séc. XVI), em que fala a personagem Pinarte (serviçal do fidalgo Policiano, a quem último se remete o adjetivo do título da obra):
Se a ocasião bem pormete [promete]
tomai-a pelo topete
que é calva do toutuço [Toutiço: nuca; ou alto da cabeça].
Mas quem a deixa virar
não tendo de que pegar
chora com dor de perdido
magoado e rependido
tempo que leixou passar [deixou passar].
Assim, não estranha que a ideia de superioridade (o resultado melhor em função do aproveitamento do tempo) pareça, na origem latina de prior, prius, conjugar-se com a de anterioridade (com aquilo que precede, que vem primeiro).
Ernout e Meillet, nesta linha, registram que o plural latino priores equivale, poeticamente, a maiores; em Cicero, a prioridade (e o vocábulo português “prioridade” advém do latim prioritas, prioritatis), tanto sugere um prior locus, quanto um locus superior; S.Isidoro, nas Etimologias, diz que prior (est) quod primus sit ordine (sem distinguir uma ordem apenas temporal). Para Torrinha, o adjetivo prior (neutro: prius) quer significa o que está adiante, o precedente, o primeiro, quer significa o superior, o mais importante.
584. Desta maneira, sob um modo quase natural (rectius: de naturalidade política), o registro de imóveis recolhe o binômio anterioridade-superioridade como critério de reconhecimento de um direito (ao menos) in itinere.
Em resumo, quem chega primeiro ao registro, chega com presumida superioridade, ao menos, de um direito posicional, independentemente da idoneidade do título material ou do título formal (que atraem regular qualificação), salvo os casos manifestos de falta de competência material ou territorial (p.ex., uma solicitação de protesto de título de crédito ou de registro, em São Paulo, relativo a imóvel situado em Figueira da Foz).
Já isto o dissera González:
El Diario [que é o equivalente a nosso Livro do Protocolo], condensando las particularidades de la presentación, inicia la publicidad y concede un puesto a los presuntos derechos reales constituidos legalmente, aunque su efectividad resulte aplazada o condicionada, y hasta a los que resulten de títulos imperfectos por su fondo (…) o por la forma (…).
585. Dispõe o vigente Código civil brasileiro, em seu art. 1.246 ser o registro “eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo”, e a Lei nacional n. 6.015, de 1973, no art. 186: “O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente”, depois de enunciar no art. 182: “Todos os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação”.
O protocolo do registro de imóveis é seu Livro n. 1 (inc. I do art. 173 da Lei n. 6.015), e o vocábulo “protocolo” −que, diz Antônio Geraldo da Cunha, proveio do francês protocolaire, derivado este, proximamente, do latim protocollum, i− traz já em sua gênese mais remota, o grego πρωτόκολλον, a ideia de primeiro (πρωτός), e inúmeras palavras gregas prefixam-se tanto com πρo (assim, com ômicron −o), quanto com πρω (com ómega -ω), carregando em si, numa e noutra forma, os conceitos de “primeiro”, “primazia”, “precoce”, etc. (v.g., πρωτόγονος −primogênito; πρωτόπολις -o primeiro da cidade; πρό −ao princípio, prematuramente; cf. Isidro Pereira; os estudantes de grego são logo apresentados a esta expressão: πρώτον μάθημα).
Desta maneira, a ideia de protocolo reforça a de prioridade, o que também se anuncia com o uso, na normativa brasileira de regência, da palavra “prenotação”, que deriva do verbo latino prænoto (marcar previamente; predizer, designar antecipadamente −Francisco Torrinha).
586. O primeiro e notório efeito da prenotação é o de estabelecer, na ordem das inscrições em curso, uma posição para o título apresentado, com o direito posicional consequente, qual o de, iniciado compulsivamente o processo registrário −cujo fim é a inscrição desse título material apresentado e que se veicula por um título formal−, configurar-se (i) a prioridade da qualificação e (ii) o impedimento de inscrever-se, no interregno do processo registral, título algum oposto ao título de posição antecedente.