Os brasileiros têm muitas virtudes, entre elas a criatividade e a solidariedade. No entanto, não são fortes em planejamento. Possuem uma crença otimista de que tudo, ao final, dará certo. Se isto, por um lado, é bom, porque torna a vida mais leve, por outro, em determinadas situações, pode ser nocivo.
 
Basta olhar ao nosso redor para constatar como aspectos ligados ao seguro, previdência e saúde, são negligenciados. O amanhã interessa pouco à maioria e isto, muitas vezes, tem consequências dolorosas.
 
Se uma aposentadoria irrisória torna a vida na velhice difícil, com muito mais razão as situações de doenças incuráveis. Para estas, quase ninguém está preparado, do ponto de vista econômico, psicológico ou familiar. No entanto, elas existem e em expressiva quantidade.
 
Segundo Dadalto, Tupinambás e Greco, “as diretivas antecipadas de vontade (DAV) constituem um gênero de manifestação de vontade para tratamento médico, do qual são espécies o testamento vital e o mandato duradouro”.[i]O site Testamento Vital define, com clareza, o significado de ambos:
 
O testamento vital é um documento, redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas curativas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade.
 
O mandato duradouro é a nomeação de uma pessoa de confiança do outorgante que deverá ser consultado pelos médicos, quando for necessário tomar alguma decisão sobre os cuidados médicos ou esclarecer alguma dúvida sobre o testamento vital e o outorgante não puder mais manifestar sua vontade. O procurador de saúde decidirá tendo como base a vontade do paciente.
 
Portanto, as DAV consistem em uma declaração de vontade de qualquer pessoa em plena capacidade civil, sobre o tratamento a que pode ou deve ser submetida em caso de estado físico ou mental reconhecidamente incurável.
 
Não devem as DAV, denominadas de ortotanásia, ser confundidas com a eutanásia. Nesta, um médico abrevia o fim da vida do paciente, atendendo seu pedido. Permitida em alguns países, como a Holanda, é vedada no Brasil, onde tal prática pode configurar crime de homicídio. Naquelas, a pessoa deixa as suas orientações e estas serão seguidas, exceto se proibidas por lei.
 
O Brasil não possui lei para as diretivas antecipadas, fato que torna a aplicação mais complexa. Ao contrário, elas existem em diversos países, como os Estados Unidos, Uruguai e Itália, nesta pela recente Lei 2.801, de 14 de dezembro de 2017.
 
Mas frise-se que a falta de lei nacional não inviabiliza a declaração de vontade. Ela encontra apoio constitucional no art. 5º, inc. III, que proíbe o tratamento desumano ou degradante. Da mesma forma no Código Civil, que expressamente rejeita a imposição de tratamento médico contrariando a vontade do paciente.[ii] No âmbito dos estados, leis locais já permitem a recusa. É o caso de São Paulo, através da Lei 10.241, de 17 de março de 1999, e do Paraná, pela Lei 14.254, de 4 de dezembro de 2003.
 
No âmbito administrativo, a matéria é tratada na Resolução 1995, de 28 de novembro de 2012, do Conselho Federal de Medicina. Mais uma vez o Congresso não consegue acompanhar a dinâmica da vida contemporânea e matéria de importância é decidida por ato administrativo.
 
Referida resolução, além de conceituar as diretivas antecipadas, dá orientação sobre o procedimento dos médicos e estabelece que elas prevalecerão, inclusive, sobre o desejo dos familiares. [iii]
 
Em poucas palavras, o ser humano tem autonomia de vontade para recusar que sua vida seja prolongada, através de tratamento que o submete a inútil sofrimento e que o degrada como pessoa.
 
Dispensáveis exemplos, já que casos de pessoas mantidas em estado vegetativo ou de debilidade mental são de conhecimento geral.
 
As diretivas podem ensejar discussões de cunho religioso, já que na Bíblia Sagrada, que orienta a crença da maioria dos brasileiros, cabe a Deus dar-nos e tirar-nos a vida.[iv] No entanto, não se pode confundir a orientação de alguém em plena consciência, sobre como deseja ser tratado em situações extremas, com eutanásia. As diretivas limitam-se a recusar determinada espécie de tratamento que prolongue a vida inutilmente, contrariando o destino natural do ser humano.
 
Neste sentido, lembram Fábio Massaroli e Roni Edson Fabro que “A própria Igreja Católica, que é extremamente ortodoxa no que concerne ao direito à vida, reconheceu como legítima a ortotanásia com a promulgação da Encíclica Evangelium Vitae, ainda em 1995, pelo então Papa João Paulo ll, tendo rechaçado apenas a eutanásia e a distanásia”.[v]
 
Aspecto essencial nesse ato jurídico é a nomeação de uma pessoa da confiança do declarante, para que seja consultada pelos médicos quando for o momento de tomar a decisão extrema. É essencial que o procurador seja consultado previamente se aceita tal ônus e que seja pessoa suficientemente forte para tomar a difícil decisão.
 
Oportuno, também, que o procurador não seja herdeiro, a fim de ter a mais completa e absoluta isenção. Neste sentido a lição de Mariana Forbeck Cunha, para quem “a isenção do procurador é fundamental para afastar quaisquer conflitos sucessórios, bem como resguardar a aplicação da vontade do paciente”.[vi]
 
O instrumento pode ser público ou particular, escrito ou oral. Óbvio que a escritura pública traz mais segurança à manifestação de vontade. No entanto, ela pode dar-se por documento particular, hipótese em que se recomenda a firma reconhecida.
 
A forma oral também deve ser aceita. Filmagem em vídeo, por exemplo, atende perfeitamente o objetivo perseguido. Neste caso, recomenda-se que pelo menos duas testemunhas se encontrem ao lado do declarante, devidamente identificadas. Jussara Meirelles lembra, ainda, que a linguagem por sinais também deve ser aceita.[vii]
 
Questão de grande interesse é a do tempo de validade da manifestação de vontade. Supondo-se que as diretivas serão feitas, principalmente, por pessoas de idade avançada, pelo temor natural de verem-se presas a um leito por longo tempo, indaga-se se deve ser estabelecido um limite temporal para a vigência do ato.
 
Na minha opinião, não. Não há previsão no Código Civil para perda de validade de atos jurídicos como a declaração de vontade, pelo decurso do tempo. Portanto, só se a situação de fato revelar alteração na manifestação de vontade é que ela deverá ser declarada inválida.
 
Entretanto, há um aspecto relevante, qual seja, a alteração das formas de tratamento, tornando a preocupação do declarante destituída de razão. É dizer, o receio que ele tinha deixa de existir face à evolução da medicina. Neste caso, cabe ao médico recusar cumprimento, motivando sua decisão por escrito e comunicando ao procurador nomeado pelo declarante.
 
Finalmente, na hipótese de familiares ou médicos descumprirem a decisão externada nas diretivas, poderá o interessado ingressar em juízo, buscando a tutela jurisdicional para alcançar tal objetivo. A situação se tornará mais complexa se ele estiver parcial ou totalmente incapaz, hipótese em que deverá estar representado por seu curador.
 
O agente do Ministério Público intervirá no processo como fiscal da lei, face ao contido no art. 178, inc. I, do Código de Processo Civil. Eventualmente, como substituto processual, no polo ativo ou passivo.
 
Em suma, o assunto só agora começa a entrar na agenda dos profissionais de Direito. No entanto, considerando que a sociedade se torna a cada dia mais consciente de seus direitos e a longevidade dos brasileiros aumenta progressivamente, o tema está a merecer maior atenção.
 
[i] Dadalto Luciana, Tupinambás Unaí e Greco, Dirceu B. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n3/a11v21n3.pdf. Acesso 28/3/2018.
[ii] Código Civl, 2002: Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
[iii] Disponível em http://mundonotarial.org/blog/?p=2421. Acesso em 29/3/2018.
[iv] Bíblia Sagrada, Deuteronômio, 32:39 : “Vede, agora, que Eu Sou o único, Eu somente, e mais nenhum deus além de mim. Faço morrer e faço viver, faço adoecer e faço sarar, e ninguém há que seja capaz de livrar-se da minha mão”.
[v] Disponível em http://www.migalhas.com.br/arquivos/2017/4/art20170418-02.pdf, acesso em 28/3/2018.
[vi] Cunha, Mariana Forbeck. A tutela jurisdicional das diretivas antecipadas de vontade. Dissertação de mestrado defendida e aprovada pela banca na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 27/3/2018.
[vii] Meirelles, Jussara Diretivas antecipadas de vontade por pessoa com deficiência. In: MENEZES, Joycieane Bezerra (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas – Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 723.
 
*Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC/PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.