(Princípio da prioridade registral -Décima-segunda parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
Tal o vimos, com a prioridade no registro imobiliário brasileiro −a exemplo do que ocorre em outros países (e neles, em dados casos, com maior amplitude)− pode concorrer alguma influência externa, assim, como se verifica da regra do art. 192 da Lei n. 6.015, a da publicidade notarial, observados os supostos estritos dessa regra.
 
Esse possível concurso de prioridades resulta, assim o referimos, de um comportamento social que, pode dizer-se, acompanha a história da humanidade.
 
O fato de estabelecer-se e observar-se uma ordem de precedências na comunidade humana é um dado constante na vida dos povos. Bem por isso, um modo ou forma de definir precedências −ou seja, de definir um protocolo de condutas e uma ordem geral de precedências− é algo que vai muito além da esfera jurídica, trazendo consigo a finalidade de êxito em algo que diz respeito à integralidade das relações humanas, para que sejam o mais possível fundadas em pilares, quando não de concórdia, ao menos e sempre de cortesia. (Se bem a concórdia política deva antes provir, primeiro, da concórdia das inteligências e, na sequência, da concórdia das vontades, a cortesia tem o relevante papel de amainar paixões que, inimizando à partida os cidadãos, reduzem, quando não mesmo eliminam, uma boa prática dialógica).
 
Com efeito, ao largo da história, nas condutas correntes dos homens −actiones ordinariæ hominum−, adotaram-se frequentemente protocolos, como forma de ter sucesso nas atividades sociais, desde os mais pormenorizados capítulos da coroação de reis e da votação nos tribunais −a ponto de nestes sublinhar-se a importância simbólica e paideica de seus ritos e a da cortesia pública dos magistrados, exatamente para reverenciar o sentido civilizatório da justiça e dar exemplo de bons modais a todo o povo−, até comportamentos mais comezinhos e que hoje, acompanhados da acusação de “fobias & outros ismos”, parecem sair de moda: assim, v.g., a conduta de dar preferência de passagem e assento às mulheres, que, em vez da clássica e antiga cortesia cavalheiresca, é agora tido por testemunho de degradante exercício despótico da masculinidade.
 
Uma gráfica ilustração deste costume estendido na história humana, qual o de estabelecer normas ordinatórias de preferências, pode recolher-se no célebre Código de Hamurabi (c. 1.750 a.C.), no qual há uma expressiva ordenação protocolar para vida pública.
 
No Evangelho de S.João (XX-3 et sqq.) encontra-se um episódio característico da observância de precedência. Tendo o mesmo Apóstolo S.João corrido mais do que S.Pedro em direção ao sepulcro onde se depositara o corpo de Jesus Cristo, ali chegou João por primeiro. Mas aguardou a chegada de Pedro, dando-lhe a preferência, reverencial e muito simbólica, de ingresso no sepulcro.
 
Exemplo de ordem geral de precedências, este recrutado nos tempos presentes, é o que se encontra no Decreto brasileiro n. 70.274/1972 (de 9-3), que versa as normas do cerimonial público da União. E que o predicado da cortesia tenha parte nesta disciplina das precedências pode ler-se no parágrafo único do art. 20 da normativa anexa a esse Decreto: “Nas cerimônias em que se tenha de executar Hino Nacional estrangeiro, este precederá, em virtude do princípio de cortesia, o Hino Nacional Brasileiro” (a ênfase gráfica não é do original).
 
Em resumo, a ideia mais ampla e vulgarizada do protocolo é a de estabelecer um modo cortês e bem sucedido de convivência social. O protocolo geral regula, portanto, a vida em sociedade, ensinando o que podemos (ou não) agir, o que podemos (ou não) dizer ou escrever ou escutar sem protesto, e como o devemos fazer. A eficácia destas regulações sociais protocolares pode bem sumariar-se nestas palavras de Francisco de Quevedo: “Te reciben según te presentas. Te despiden según te comportas”.
 
Mas, se o protocolo regulador de uma ordem geral de preferências é algo que diz tão amplamente ao convívio social (e não só na esfera pública: p.ex., fala-se em “protocolo estatal” e em “protocolo diplomático”; senão que também num estendido âmbito privado: há, ad exempla, o protocolo das vestimentas, o das refeições a que somos convidados, outro para os velórios e os enterros, outro ainda para a cortesia no trânsito de automóveis, e a lista seria numerosa, a ponto de poder falar-se, na expressão de José Antonio de Urbina, em um extenso “protocolo cotidiano en el arco de la vida”), esse protocolo amplíssimo não pode ignorar-se pela ordem do direito.
 
Desta maneira, não caberia mesmo supor um monopólio em prol do exclusivo protocolo jurídico, e as preferências na ordem do direito devem conviver com as prelações sociais ditadas pelos usos e costumes.
 
Daí que, regressando agora ao tema do registro predial, dependa do direito posto em dado tempo o estabelecimento da maior ou menor rigidez do sistema tabular de prioridades em concurso com outros sistemas ordinatórios de preferências.
 
Ainda, com efeito, que possa debilitar-se esse sistema por meio de um concurso extrarregistral de prelações, não se pode negar, em linha de princípio, que o legislador escolha e gradue o modelo de sistematização formal para a segurança jurídico-imobiliária, tendo em conta variáveis circunstâncias de tempo e lugar. S.Isidoro de Sevilha, numa página das Etimologias, ao tratar de como deve ser a lei (qualis debeat fieri lex) ensina que, honesta, justa, possível, de acordo com a natureza (O tempore! O mores!), a lei deve moldar-se aos costumes da pátria −consuetudinem patriæ−, ao lugar e às circunstâncias temporais −loco temporique conveniens.
 
Deste modo, tanto pode a lei (ainda uma vez: em princípio) admitir um sistema de monopólio clausurado de prelações: só há prioridade a partir do acesso ao registro; o de um monopólio tendencial de preferências: a prioridade é, em geral, resultante desse acesso ao registro; ou ainda o de uma, com maior ou menor gradação, prioridade concursal: em que a preferência pode obter-se quer por meio do registro público em sentido estrito, quer por meio de cadastros ou de registros (latiore sensu) públicos ou privados.
 
Vem a propósito, para ilustrar este ponto, que, de quando em quando, ressurja à baila, entre nós, o tema da autorização do Banco Central para que algumas entidades particulares implantem um sistema de registro de operações de crédito cujo objeto garante sejam imóveis urbanos ou veículos automotores. Essa autorização do Banco Central, embora já referível a precedente medida do Conselho Monetário Nacional, veio à lume em março de 2017, e não será temerário opinar que ela se terá estimulado pela previsão normativa imediatamente anterior (a Medida Provisória n. 759, de 22-11-2016) que previu tarefas próprias do registro público por meio de uma pessoa de direito privado, o Operador Nacional do Registro. Está-se aí diante, pois, de uma convivência −e aqui suspendo juízo acerca da constitucionalidade desta convivência− do sistema constitucional dos registros públicos (art. 236 da Constituição federal brasileira de 1988) com um sistema informal de registração privada, remetido a almejados efeitos públicos.
 
Não custa acrescentar um episódio a mais no capítulo das “preferências”, porque, vigorando a Lei n. 13.465/2017 (de 11-7), com aposição de vetos relativos à constituição do aludido Operador Nacional do Registro (vidē art. 76), isto não impediu uma espécie concorrente de prioridade factual. Com efeito, foram vetados estes dispositivos:
 
– “Fica o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (Irib) autorizado a constituir o ONR, a elaborar o seu estatuto, no prazo de cento e oitenta dias, contado de 22 de dezembro de 2016, e a submetê-lo a aprovação por meio de ato da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.”
 
– “Ato da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça disporá sobre outras atribuições a serem exercidas pelo ONR.”
 
Sem embargo disto, nada obstante a Lei n. 13.465 não disciplinar quem poderá instituir o tal Operador Nacional do Registro, pôs-se em marcha −e ainda está em tramitação− a tentativa de aplicação das normas vetadas.
 
Suposto venha a admitir-se a instituição do Operador Nacional do Registro sobre os pilares destes preceitos que foram vetados por inconstitucionalidade, estaremos diante de um fenômeno de prioridade fática na constituição de uma entidade de direito privado com alguma sorte de atribuições concorrentes na área do registro público, a exemplo das competências autorizadas pelo Banco Central para outras entidades particulares.
 
Há uma lógica interna a extrair do mecanismo de concorrência entre, de um lado, o sistema constitucionalmente monopolítico de publicidade imobiliária, e, de outro, um sistema de cadastros e registros paralelos; lógica que a fraseologia popular sintetiza de maneira muito expressiva: porteira por onde passa um boi, passa uma boiada.
 
Referida, assim, a possibilidade de alguma preferência jurídica excepcionar a ordem de prioridade do sistema formal de prelações no registro imobiliário, passaremos a examinar, brevemente, (i) a retroprioridade endógena, (ii) a prioridade indireta, (iii) a permuta de prioridades, (iv) a reserva de prioridade, (v) a permuta de graus hipotecários e (vi) a hipoteca de proprietário.