(Princípio da prioridade registral -Décima-quarta parte)
 
623. Não se prevê, no direito brasileiro vigente, retroprioridade extrarregistral ou exógena.
 
O fato de a lei nacional n. 6.015 conceder pontual prevalência às escrituras públicas (relativamente) simultâneas −quais sejam, as de mesma data, com indicação de hora da lavratura, apresentadas no registro imobiliário em um mesmo dia e referíveis a um mesmo imóvel (art. 192)−, se bem implica o reconhecimento de alguma eficácia registrária de prioridade notarial ou cartular (assim a designa, p.ex., García Coni), não induz concluir na existência de um efeito retroprioritário externo, porque, neste quadro da Lei n. 6.015, sempre o terminus a quo da prioridade registral será o ditado pelo protocolo do registro, não retrocedendo a tempo anterior.
 
Não parece mesmo convir, num sistema de aquisição predial predominantemente constitutivo (tal o é o brasileiro), estabelecer, note-se bem: no âmbito dos efeitos substantivos, uma retroprioridade exógena, porque ela acarretaria, com rigor, a ficção de um direito real imobiliário constituído antes do registro do título, sob a molde de um “direito real de expectativa de outro direito real”.
 
Ainda que não se negue aos títulos notariais, no direito registral brasileiro, alguma pequena sorte de proteção jurídica in itinere −contanto que o caso trate de títulos lavrados em mesma data, com menção da hora em que elaborados, e, ao fim, apresentados ao registro num mesmo dia−, forçoso é admitir que essa proteção, além de ser notoriamente limitada ao exclusivo campo de uma espécie de “antonímia tabular” (uma oposição estreita entre dois ou mais títulos contemporâneos nos processos registrais), é até mesmo fenomenicamente escassa na prática do registro imobiliário brasileiro.
 
624. O instituto da reserva de prioridade −também denominada: reserva de posto, reserva de direito posicional, reserva de preferência, reserva de lugar registral− é o instrumento que, prima fronte, apresenta a vantagem de garantir melhor a gênese e, depois, o trânsito dos títulos registráveis, enquanto se gestem eles e trafeguem fora do registro.
 
Essa reserva de prioridade foi, ao que parece, instituída positivamente, pela primeira vez, no direito argentino. Todavia, assim o afirmou Francisco Fontbona, não com isto se introduziu uma novidade no saber registral. Cuida-se ali de, por meio de uma certificação, acompanhada de anotação preventiva, paralisar, ao largo de prazos variáveis (com um máximo de 45 dias), a prática de inscrições relativas a um determinado imóvel, em prol de uma identificada expectativa de conclusão de um direito real. Essa certificação, enuncia-a a Lei argentina n. 17.801/1968, dizendo que “producirá los efectos de anotación preventiva a favor de quien requiera, en el plazo legal, la inscripción del documento para cuyo otorgamiento se hubiere solicitado” (art. 25, segunda parte).
 
Em palavras de Miguel Norberto Falbo, tal certificação deve anotar-se “en el folio que corresponde al inmueble (…) y lo inmoviliza durante el prazo legal correspondente”, de maneira que, assim o observou Raúl García Coni, a reserva de prioridade, com os efeitos anexos de prenotação, protege o título inscritível não só desde seu nascimento documental e até que chegue ao cartório de registro (o que configura uma proteção in trānsitū), mas também no tempo de sua concepção e produção escritural: trata-se, neste passo, de uma proteção in sēmine que, por meio de uma prioridade registral antecipada (Durán Corsanego), emana uma preferência antes mesmo de que o título se forme.
 
Ou seja: admitida a reserva de prioridade, mediante certificação imobilizadora do registro, tem-se uma preferência sem título, um direito posicional sem documento, reserva cuja finalidade é a de eliminar os perigos presentes ao largo do inevitável decurso de tempo exigível para a negociação e a elaboração da escritura pública (proteção in genere), bem como para o acesso do título ao protocolo tabular (proteção in itinere), produzindo um bloqueio ou congelamento de inscrições quanto ao imóvel correspondente − de maneira a evitar, são estas palavras de Francisco Fontbona, que o registro seja “utilizado solamente por valientes”.
 
Esta reserva anotada, no mais, projeta-se de publicidade ampla para o fim de eventual proteção do interesse de terceiros. A este propósito, emblemático é o título de um artigo escrito por Raúl García Coni: “Advertencia registral sobre negocios inminentes”. De fato, cuida-se da proteção de negociações propínquas ou já em curso, alargando-se, com a reserva de sua prioridade, não só a garantia do adquirente, mas também a de outros possíveis interessados −terceiros−, suscetíveis de prejudicar-se com os ajustes planejados ou em via de celebração.
 
625. Diz ainda García Coni que a maneira argentina de reserva de prioridade (tanto que a designa reserva de prioridade indireta) apenas diz respeito às hipóteses de registro com caráter declarativo, estimando que, tratando-se, diversamente, de inscrições de natureza constitutiva, a proteção correspondente deva ser a própria da prioridade direta ou endógena, e o autor ilustra o ponto com a situação, na Argentina, dos registros de veículos automotores e de cavalos de corrida.
 
Esta restrição −relativa à natureza do registro, qual a declarativa− tange com a eficácia substantiva que se conceda à prioridade antecipada, mas não impede que, ainda num sistema de inscrições constitutivas (tal o que prevalece no Brasil), os efeitos prioritários formais possam antecipar-se, ainda que a substantivação da eficácia substantivos só emane da prioridade correspondente ao protocolo do documento que cause a constituição do direito real.
 
626. Um outro fator −de caráter prudencial− parece repercutir desfavoravelmente quanto à adoção de reserva de prioridade no sistema jurídico brasileiro em vigor.
 
Está em que, admitindo o direito nacional vigente o registro amparado em títulos de origem particular −é dizer, instrumentos privados−, evidente é o risco de abusividade na versada reserva.
 
Dita, a propósito, García Coni estas prudentes linhas: “si bien la preanotación (anotación preventiva) permite −dentro del campo de los derechos personales− proteger a un futuro derecho real, la experiencia de su aplicación no ha sido convincente y, entre nosotros, se la circunscribe a operaciones en que intervienen instituciones oficiales, insospechadas de parcialidad, ya que el instituto se presta a muchos abusos”.
 
Calha dizer, porém, que distinguir entre instrumentos públicos e instrumentos privados para admitir só quanto aos primeiros a reserva de prioridade tem o manifesto incômodo de robustecer as críticas que parte da doutrina tem dirigido contra a instituição mesma dessa reserva, acusando-a de ofensiva da equidade (vidē, p.ex., o resumo de Fontbona, que, entretanto, rebate as acusações).
 
627. Cabe agora, ainda que muito concisamente, indagar se seria possível e também se conviria adotar, no Brasil, o instituto da reserva de prioridade, suposta, em nosso caso, a preservação do predominante sistema constitutivo de aquisição imobiliária.
 
Para logo, a instituição deve observar a reserva de lei, respeitando-se a repartição de competências legísticas prevista na Constituição federal de 1988. Não é legítimo instituir direitos subjetivos por meio de simples regulações administrativas.
 
Não parece que se devam forrar os instrumentos privados do benefício da reserva de prioridade, pelo motivo já apontado de evadir possível abuso na prática, nem se há de permitir largueza de tempo quanto à reserva prioritária, ainda que ela só prestigie os instrumentos públicos (não só os notariais, senão que também os judiciários, administrativos e de origem legislativa).
 
Ter-se-ia de prever, no âmbito administrativo, o processo impugnatório em favor de terceiros interessados −que não podem ornar-se apenas de recursos à mais complexa e menos célere via jurisdicional−, bem como, além disso, não se pode conceder, em caso algum, a formação de uma cadeia sucessiva de prazos de reserva, vale dizer, um encadeamento ininterrupto de seus tempos, o que levaria à paralisação potestativa das inscrições quanto a um dado imóvel.
 
Com estes supostos, parece bem a ideia de instituir a reserva de prioridade −pela qual, entre nós, muito militou a doutrina do magistrado gaúcho, Décio Antonio Erpen.
 
De não se perfilhar esta reserva, o registro muitas vezes será a aventura dos valientes, na expressão de Fontbona, e achar um táxi a tempo, tal o disse Pelayo Hore, continuará a ser frequentemente mais importante do que os sacrossantos princípios registrais.