(Princípio da unitariedade da matrícula – Primeira parte)
 
638. Designa-se fólio real −ou, de modo mais popular, todavia menos preciso, matriz ou matrícula, vocábulo este último que é o enunciado na lei brasileira de regência dos registros imobiliários (p.ex., arts. 167 e 176)− a folha atrativa, no registro de imóveis, da representação (no caso brasileiro: literal) de um dado prédio e também convocatória das vicissitudes jurídicas desse imóvel. Trata-se, frequentemente, de uma folha volante, quer dizer, de uma folha avulsa, folha de impressão ou manuscrita, autônoma, sem ligação física a outras folhas.
 
A palavra “fólio” deriva do latim folium, folii (também folia, ae −cf. Forcellini), que tem uma primeira acepção própria da botânica, obviamente a de “folha”; sabe-se bem isto: cuida-se aí de um órgão constituído por uma lâmina (rotineiramente, de cor verde) que, sustentada por um pedúnculo (ou pecíolo), liga-se a ramos, caules e troncos de vegetais.
 
Ora, a partir deste sentido inaugural, interessa-nos sindicar, ainda que brevemente, como foi que o folium de um vegetal pôde vir a significar a charta (ou seja, a “folha de papel” −e, mais inclusivamente, a folha volante), em que, entre outras realidades humanas, constitui-se a matrícula registral.
 
A transferência do significado do folium da botânica para o folium do lugar ou suporte de um escrito humano −transferência esta de significado tão corriqueira que, de comum, não se pensa já em sua ocorrência, a ponto de Silvio Edmundo Elia afirmar, a propósito dos termos “folha de um livro”, tratar-se não mais de metáfora, mas de catacrese, ou seja: de um abuso da expressão metafórica−, dizia-se: o traslado da acepção principal de folium para a significação figurada derivou de atribuir-se às sibilas (sacerdotisas a quem incumbia enunciar os oráculos de Apolo) a escrita de suas manifestações em folhas de palmeira (Ernout-Meillet; Torrinha). Daí adveio que, nas línguas romances, o suporte de escrita se designe “folha”, “hoja”, “feuille”, “foglia”, “foaie” (no romeno), “folla” (no galego), sem embargo de que talvez, em seu lugar, tenha sido prevalecente, no período latino clássico, o uso do termo charta (utilizado por Cícero; houve mesmo em Roma o magister chartulari, que elaborava documentos qual se fora um tabellio −cf. Bono). Hoje teríamos, de fato, uma espécie destes antigos magistrados romanos com a eventual praxe, que se vai fazendo não de todo rara, de magistrados que homologuem acordos extrajudiciais sem que haja lide em ato.
 
639. No direito brasileiro, a matrícula é fólio real. Podia não sê-lo: nada impediria que fora fólio pessoal (a instituição de uma Central única de dados logo faria do Livro n. 5 -Indicador pessoal exatamente um follium personalis, porque reuniria, num só e grande banco de dados −sonho, é claro, de todos os socialistas, distopia de uma tecnópolis−, um locus para cada pessoa vigiada pelo Big Brother).   Daí a referência acima ao sentido de ser menos preciso o vocábulo “matrícula” para indicar o fólio real, pois nada estorva que haja matrícula pessoal. Emblemático, aliás, da ideia de “matrícula” como follium personarum é sua antiga estendida adoção no controle prostitucional: a “matrícula das toleradas”, “matrícula das prostitutas”.
 
O adjetivo “real” tanto pode proceder de res, rei (coisa; o que existe realmente, de fato, verdadeiramente), quanto de rex, regis (rei). Se falamos “trono ou cetro real”, podemos referir-nos quer ao trono ou cetro de um dado rei, quanto ao próprio sólio ou ao bastão como coisas, realidades corporais, independentemente de seu liame com um monarca. É evidentemente este segundo sentido −de coisa, coisa corpórea− que se anuncia com o adjetivo do termo complexo “fólio real”. Cuida-se aí, pois, da “folha (representativa) da coisa”, da folha que, no registro predial, representa o imóvel; por isto, podemos usar as expressões latinas folium reale ou folia realis (ambas significando “fólio real”), ou ainda folium vel folia rei (“folha da coisa”; folium vel folia rei immobilis: “folha da coisa imóvel”).
 
640. Já acima se indicou −e aqui se repete− uma enunciação semântica para o termo “fólio real” (quanto ao registro imobiliário): a folha nele atrativa da representação (no caso brasileiro: literal) de um dado imóvel e também convocatória das vicissitudes jurídicas desse imóvel.
 
Nada impede, em linha de princípio, que a representação do imóvel seja, no fólio real, de caráter imagético-sensível (p.ex., uma fotografia, um filme, uma imagem recolhida por meio de satélites ou drones etc.), ou auditiva. Isto pode tanto ocorrer de modo isolado, quanto de maneira integrada: a interação dos três sistemas de signos, o literal, o áudio e o visual, suporta em nossos tempos uma cômoda enunciação ordinária em bits: “Les bits véhiculent indifférement du texte, du son ou de l’image” (Ignace Ramonet).
 
No direito brasileiro vigente, o fólio real no do registro imobiliário é o locus atrativo, por primeiro, de uma representação literal de um dado imóvel, vale dizer, o lugar em que se enuncia uma textualização da realidade física de um prédio. A apreensão dessa realidade predial faz-se mediante um título no qual (e do qual) há uma recolha intencional −representativa− de dados sensíveis, captados pelos sentidos externos, percepcionados pelos internos e, posteriormente, concebidos sob modo intelectual. Secundariamente, o fólio real recruta as vicissitudes ou “aventuras” jurídicas do imóvel a cuja descrição se lançara com primazia.
 
641. Afirmou-se em passagem anterior que o sistema do registro imobiliário é como que o abrigo espiritualizado de preferências na história das comunidades, asseverando-se ainda que a trajetória histórica da segurança humana que se simbolizava e realizava, primeiro, sob forte influxo religioso, por meio do umbral das portas, e, depois, com as muralhas das cidades, foram, em parte, recolhidos pela função conservadora instituída, de modo substituinte, com o registro de imóveis.
 
É hora de ver, vem nisto calhar o capítulo do fólio real, o papel desempenhado, no registro de imóveis, pela consciência de territorialidade e, antes mesmo, o da relevância do mesmo registro para efetivar estavelmente (rectius: recolher, conservar e garantir) a ordem jurídica da cidade em um locus territorial. É intuitivo, com efeito, que versar o fólio que tenha por objeto nuclear um imóvel é versar algo da ideia de “território”, e é fácil compreender que a espiritualização dos umbrais e das muralhas não poderia abdicar do fim ordenador e protetivo do território e de seu domínio pelos homens, avultando que nenhum escopo efetivamente de proteção pode obter-se sem a ideia e a realidade da ordem.
 
As instituições sociais respondem à politicidade natural de todos homens, e têm por finalidade a paz entre eles, vale dizer, sua concórdia (união de corações), que tem de ser uma união ordenada −ordenata concordia (S.Agostinho)− porque a interação política dos homens faz com que o bem próprio de sua convivência na sociedade seja não apenas o de caráter individual, mas conjuntamente com este o bem dos outros, ou seja: o bem comum, um bem que não é “alcanzable por un individuo aislado, sino que lo sea en la exacta medida en que se persiga como inclusivo de otros en cuanto otros” (José Luis Widow). Assim, só com uma concórdia ordenada é possível a paz de todas coisas, paz que é exatamente a tranquilidade da ordem: omnium rerum tranquillitas ordinis, ainda uma vez em sábias palavras que se lêem no De civitate Dei do Bispo de Hipona.
 
642. A origem da cidade foi, com efeito, um ajuntamento de casas, e não uma aglomeração de indivíduos. Tal, por exemplo, o fez ver Ortega y Gasset, a polis grega resultou da sinoyka, uma agregação de casas, e não menos o ayuntamiento das Espanhas, assim o observou Patricio Randle, significou inicialmente a congregação de famílias.
 
A civilização urbana, que nasceu antes como um ponto de encontro do que como lugar fixo de habitação, deve muitíssimo à invenção de formas a invenção de formas, propiciatórias do desenvolvimento de um sistema de comunicação (assim, o registro escrito, a biblioteca, o arquivo, a escola, a universidade em germe), e, de fato, dentre os vários traços com que se pode indicar a passagem da estrutura da aldeia para a da cidade, devem considerar-se de capital importância a adoção das notações literais e numéricas −se se quiser simplificar, a invenção do alfabeto−, o fundamental papel a instituição de um “registro permanente” −a referência essencial neste capítulo é a Lewis Mumford, de cuja obra se recorta: “Viver pelo documento e viver para o documento tornaram-se um dos grandes estigmas da existência humana: na verdade, a vida, tal como era registrada (…), muitas vezes tendia a se tornar mais importante que a vida tal como era vivida”.
 
Daí dizer-se que a cidade muitas vezes vive pela lembrança, e que algumas vezes −por meio de seus registros− “preserva para o futuro ideias que foram insensatamente postas de lado ou rejeitadas por uma geração passada” (Mumford).
 
Não se tratará, per certo, nessa origem, daquilo que hoje se tem por já constituído sob o modo de “registros públicos”, mas não nos esqueçamos de que, se fôssemos regressar pela trajetória da in iure cessio e da mancipatio romanas, dos orói gregos, do cadastro egípcio, dos koudourrous babilônicos, sempre nos haveriam de mostrar-se a inscrição, a publicidade e a garantia que dão fisionomia universal ao registro de todos os tempos: Dom Alfonso X, no Espéculo (séc. XIII), já se referia ao registro como reunião fática das notas, e também, no Fuero Real, valeu-se da expressão “as notas do registro”.
 
Há, entre os sumérios, a legenda de um seu grande rei, Gilgamesh, da dinastia de Uruk −terá ele vivido há mais de quatro mil anos. Ora, o principal guerreiro de Gilgamesh é uma personagem mítica, Enkidu, a cuja militância bem pareceria corresponder à figura ideal do notário e do registrador contemporâneos, pois Enkidu é o mais importante dos guardiães da paz social. Dele se diz com efeito que “tomou sua arma para caçar os leões: os pastores podiam repousar à noite, ele apanhava os lobos: ele capturava os leões: os guardadores do gado podiam descansar. Enkidu é seu vigia, o homem ousado, o heroi sem igual”.
 
Prosseguiremos.