(O registro de imóveis e os direitos reais -Segunda parte)
 
672. A diversidade dos entes criados manifesta as infinitas perfeições do universo, por serem eles, de algum modo, um reflexo de semelhanças −ou espelho− da Infinitude de Deus.
 
São evidentes, a propósito, a ordem e o fim naturais das coisas, bem como as leis de sua natureza: todos os entes agem por um fim −vale dizer, seja de maneira consciente ou inconsciente, inclinam-se eles a algo que lhes convém, e esse “algo” – esse bem determinado− é seu fim, a finalidade de sua ação.
 
Disse Garrigou-Lagrange, muito bem (como sempre foi de seu costume), que se o agente, ainda o não espiritual, não atuasse por um fim, “nenhuma coisa teria razão de ser e tudo seria ininteligível”.
 
Também os seres humanos são finalistas, já no mero plano físico (observou Aldo Vendemiatti, nas páginas de La legge naturale: “La mostra struttura somatica è portatrice di un finalismo intrinseco: conservar nell’essere e propagare la specie”) e também no domínio espiritual (intelectual e volitivo): “Ad un livello superiore scopriamo in noi stesse l’esigenza di conoscere la verità, di intessere relazioni di amicizia, do vivere in pace” (Vendemiatti).
 
Todos os entes, para poderem atingir suas finalidades, são regidos por leis naturais, i.e., normas inscritas na natureza mesma de cada um deles. Alguns desses entes são ordenados per modum passionis, de modo material, irrefragável, com uma subordinação,  dir-se-á, “às cegas”, inevitável, irresistível; outros, tal o caso dos seres humanos, diversamente, sendo embora sempre subordinados à lei natural, em uma parte são-no de maneira equivalente à subalternação dos entes não espirituais (scl., per modum passionis: p.ex., é da constituição genética que emerge o sexo corporal, masculino ou feminino; os entes humanos não se fazem homens ou mulheres por seu livre arbítrio ou por meio de constructo social, como está na moda trovoá-lo). Noutro aspecto, contudo, os seres humanos participam da lei natural quer per modum cognitionis, quer per modum actionis, ou seja, conhecendo essa lei e tendendo, com liberdade, à sua observância, porque só com isto podem cumprir a perfeição de sua natureza.
 
Vejamos, num só exemplo, um tanto do que se dá em relação aos entes não espirituais, para, assim, apreciarmos a magnitude da perfeição da ordem criada.
 
Consideremos o caso das abelhas, que constroem suas colmeias com um rigor matemático multissecular inalterável, submetidas, de modo material, à lei da natureza. Certa vez, e este episódio é muito conhecido, René de Réaumur, célebre biólogo francês (1683-1757), resolveu estudar a construção das colmeias, com o peculiar objetivo de saber com quanto menor dispêndio possível de cera produziriam as abelhas maior quantidade de mel. Para isto, Réaumur cuidou do problema da angulação dos losangos da base de uma colmeia para que, com área mínima, tivesse ela máxima capacidade. Coube, então, ao matemático holandês Johan Samuel König (1724-1777), empregando os algoritmos do cálculo infinitesimal inventado por Leibniz, apresentar a resposta ao problema desfiado por Réaumur: os ângulos agudos do prisma hexagonal da colmeia deviam medir 70°34’, e os obtusos, 109°26’. Calha que, ao medirem-se, entretanto, os ângulos do hexaedro produzido de maneira invariável pelas abelhas, descobriu-se que os agudos correspondiam a 70°32’, os obtusos, 109º28’. Logo se extraiu uma aparente conclusão: os pobres insetos não racionais se haviam equivocado. A natureza correntia era falha. O próprio Criador, pois, pecara no projeto ordinário e na essência das abelhas.
 
Assim era o estado de coisas que entusiasmava os racionalistas, agnósticos e ateus, quando, pouco tempo depois, um navio afundou no litoral da França. O acidente náutico atribuiu-se a um erro na verificação da longitude. Instaurou-se uma sindicância. Confirmou-se que o capitão do navio, no entanto, elaborara seus cálculos de modo adequado. Repassadas as operações, encontrou-se um erro na tábua de logaritmos. Corrigido, então, esse erro, Samuel König voltou ao problema que René de Réaumur propusera e concluiu que as abelhas estavam certas: os ângulos agudos, nos losangos das colmeias, deveriam, com efeito, medir, cada qual, 70°32’, e os obtusos, 109°28’.
 
673. Assinale-se que a perfeição de cada ente está em realizar, o melhor possível, sua própria natureza. E isto assim também se passa com os seres humanos, que, pessoas formadas de corpo e alma, possuem natureza política e, que, por isto, para também realizá-la e buscar a perfeição, põem-se, além de seu inter-relacionamento pessoal, em relação com coisas inanimadas e coisas animadas brutas.
 
É evidente, com efeito, a insuficiência individual dos homens para sua sobrevivência física, desde já a infância, e para seu desenvolvimento intelectual e moral, devendo eles servir-se das coisas para suprir o quanto possível as deficiências da natureza humana vulnerada. Em tempo algum, de fato, o homem vive à margem das coisas: Reiner Maria Rilke, num de seus poemas (Oitava elegia), estampou que
 
“Nunca temos, sequer num só dia,
o espaço puro diante de nós,
para onde se abrem
infinitamente as flores.”
 
Servir-se das coisas é beneficiar não só da, mas também a natureza delas; ou seja, os homens favorecem-se do amplo uso das coisas, de sua instrumentalidade em favor humano, mas, com isto, promovem também o fim próprio das coisas inanimadas e das animadas não espirituais, que é o de servir os seres humanos, submetendo-se a eles, mas impondo-lhes a contrapartida do dever de valer-se moralmente das coisas.
 
As coisas adquirem sentido humano pela estimativa individual ou social que os homens lhes dão, trate-se de um sentido utilitário (consumação, serviço) ou de outro, afetivo (p.ex., contemplam-se e apreciam-se paisagens naturais ou coisas da arte). Esta atribuição de sentido humano é tributária de uma conformidade inaugural com a natureza das coisas: Tierno Galván disse bem que “el modo de estimación común de una piedra será distinto al de un árbol por el simple hecho de que una piedra es una piedra y un árbol un árbol”. Falsear a natureza das coisas é própria da insensatez −p.ex., em Dom Quixote, ao pensar o protagonista de Cervantes que algumas maritornes eram donzelas de linhagem; quando isto contamina, o falso, o todo social, é o tempo orgiástico de um predomínio cultural dos loucos, pois, na memorável sentença de António Sardinha, “numa quermesse de doidos é humaníssimo que aos loucos pareça loucura o falar alguém com acerto…” (in Na feira dos mitos, prólogo).
 
O segundo momento dessa estimativa individual e sociológica das coisas, porém, e tanto que respeitada a natureza delas, é o da liberdade dos homens, que concedem às coisas um valor que tanto pode ser utilitário (qual o do aparato eletrônico que me permitiu escrever este pequeno texto), quanto estético (assim o que emana da obra de Diego Velázquez), ou mesmo afetivo: a rosa do Pequeno Príncipe, quase igual a milhares de outras, fez-se única no mundo.
 
674.  Ora, a diversidade da relação possível entre os homens e as coisas −nos planos do útil, do belo, do cativado− comporta uma perspectiva jurídica, é dizer: admite a vista própria da regulação da ordem política que tem seu fim no bem comum, no bem da comunidade, no bem de todos.
 
Como vimos, os entes humanos, por serem pessoas,  não podem ser objeto das relações de direito, na medida em que isto importaria não só em afronta da dignidade humana, mas também em uma recusa da consequência lógica de os homens serem dotados de personalidade. O definidamente próprio da pessoa é ser sujeito de direitos e deveres. Este é um dado metajurídico (lembremo-nos, a propósito, que o direito é um saber subalternado da moral e, logo, da metafísica), tão metajurídico quanto o é o conceito de “objeto”.  Houve, é certo, o contraposto episódio trágico da escravidão, e, ainda agora, o do aborto voluntário é um exemplo da despersonalização −rectius: desumanização− do humano, mas estes exemplos factuais não demonstram o desacerto da afirmação de os homens serem sempre sujeitos e nunca objetos das relações jurídicas. Em síntese, pode haver direito sem objeto, quando se protege o próprio sujeito (v.g., direito à vida, direito à integridade corporal, direito ao nome), mas só as coisas podem ser objeto de direito.
 
675.  Vallet de Goytisolo, em seu excelente Panorama del derecho civil, depois de passar em revista a doutrina de vários autores (p.ex., Windscheid, Gierke, Gaudemet, Pacchioni, Carnelutti), resume agudamente o discrimen nas relações jurídicas desde o ponto de vista do modo dessas relações −é dizer, do conteúdo delas.
 
Há na relação jurídica, diz Vallet, uma coisa −seu objeto−, sobre a qual se projeta um interesse humano. Esse interesse pode dizer respeito quer à totalidade dessa coisa, a uma parte dela, ou a algo a aferir na ou com a coisa. Ora, enquanto esse interesse concerne à integralidade das relações da coisa ou a uma determinada relação dela, tem-se aí o direito real. Quando, diversamente, o de que se trate é de algo a verificar na ou com a coisa (entregá-la, limpá-la, construir nela, etc.), tem-se o direito de crédito, o direito obrigacional.
 
Deste modo, vê-se que o direito real é uma das partes da relação dos homens com as coisas, direito cujo surgimento é fruto, sob dado aspecto, das exigências da natureza −quer a dos homens, quer a das coisas−, e resultado, sob outro aspecto, de circunstâncias históricas que convém considerar, ainda que em concisa visitação, para que compreendamos bem a função social dos direitos reais, maxime a do de propriedade.