Se a Constituição veda aos pais discriminação entre filhos havidos ou não no casamento, essa proteção também se estende aos avós em relação aos netos.
 
Com esse entendimento, o juiz Milton Biagioni Furquim, de Guaxupé (MG), determinou que duas netas sejam incluídas na partilha da avó, que tinha excluído ambas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai.
 
De acordo com o juiz, ainda que a autora do testamento possa dispor livremente da parte disponível da herança, esse direito encontra limitações constitucionais, devendo o Poder Judiciário afastar esses abusos.
 
Na ação, as duas netas afirmaram que foram excluídas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai. Dos sete netos, a avó deixou de fora apenas as duas. O valor atribuído a causa é de R$ 35 milhões.
 
Ao proferir sentença parcial de mérito, Furquim reconheceu que houve abuso de direito por parte da avó e que é possível a intervenção do Judiciário. “A última vontade da testadora, assim como todos os atos jurídicos, de esfera pública ou particular, devem ser compatíveis com os instrumentos normativos de hierarquia superior, podendo sofrer controle de legalidade, supra legalidade e/ou constitucionalidade”, afirmou.
 
O juiz lembrou que a Constituição Federal de 1988 aboliu toda diferenciação entre filhos legítimos, ilegítimos ou adotados, sem qualquer ressalva de situações preexistentes. “A igualdade e a não discriminação dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, é imperativo imposto pela ordem constitucional vigente que o intérprete da lei civil não pode ignorar quando se confronta com uma questão como a sob foco.”
 
Para o magistrado, não haveria discriminação se a avó tivesse aquinhoado terceiros ou apenas um ou dois entre tantos netos. No entanto, explicou, houve disposição em favor de cinco dos sete netos, deixando de fora apenas as duas netas concebidas por um de seus filhos em relação não marital.
 
“O princípio constitucional que impede a discriminação dos filhos para todo e qualquer fim, especialmente para fins sucessórios, é proteção que, em relação aos avós, obviamente se estende aos netos, que são filhos dos filhos daquela. Até porque, o caput do artigo 227, da CF/88, confere um dever a que a família coloque seus membros a salvo de sofrerem discriminação ou lesão à sua dignidade e/ou aos seus direitos, inclusive patrimoniais”, registrou o juiz.
 
Na decisão, ele disse ainda que chama a atenção o fato de o testamento contemplar exatamente os cinco netos e, ao mesmo tempo, de forma indisfarçavelmente discriminatória, não contempla as outras duas netas.
 
“Ora, o direito não tolera o abuso. Não tolera que, no exercício de um direito reconhecido, o agente, ao exercê-lo, exceda manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, complementou.
 
Furquim afirmou também que o tratamento discriminatório, além de contaminar a essência da igualdade familiar, acarretará em discrepância ainda maior em razão da magnitude do patrimônio. “No seio da mesma família, por força da discriminação imposta, um verdadeiro abismo se formará entre os primos, uns milionários, e outras, em petição de miséria.”
 
Segundo o magistrado, essa situação atenta contra a dignidade da pessoa humana, além de desvirtuar o instituto do testamento para, através dele, dar vazão aos chamados planejamentos sucessórios. Assim, reconhecendo o tratamento discriminatório dispensado pela avó, o juiz declarou o direito das netas de serem incluídas na partilha.