(O registro de imóveis e os direitos reais – Sétima parte)
 
688. Tal o temos visto, ao registro de imóveis compete o exercício de relevante função política destinada à ordenação da propriedade privada, tanto para sua aquisição, quanto para sua conservação, ou seja, quer no plano da fluidez dominial, quer no de sua proteção e estabilidade. Assim, as duas consagradas finalidades do registro –a da segurança dinâmica (que corresponde à garantia das transferências dominiais e à da constituição dos créditos) e a da segurança estática– espelham exatamente as condições de dinamismo e estabilidade exigidas para um regime dominial que esteja adequadamente disposto ao bem da comunidade.
 
Em tempos nos quais o principal modo de riqueza é o indicado pela possessão de um bem móvel, qual seja o dinheiro, a tendência de mobilizar-se o imóvel tem o efeito de privilegiar o crédito em detrimento não só da estática dominial, mas também, em certo aspecto, da mesmo fluidez do domínio imobiliário, fluidez que tem frequentemente sido embaraçada, no que diz respeito ao registro de imóveis, por exigências excessivas, o que leva, de fato, a uma restrição dos benefícios esperados da própria dinâmica. Assim, as vantagens exageradas concedidas ao crédito, acarretando a contranatural “mobilização do imóvel” –que, pois, vê debilitada sua posse para fins de assentamento, em favor de uma função de garantia creditória– induz a acumulação do domínio imobiliário (não raro de modo especulativo), incentivando a pleonéxia, vale dizer, a vontade exacerbada de investir-se na injusta e desmedida possessão de bens, para, desta maneira, satisfazer a ganância, a “cupidez da riqueza”.
 
Se, pois, de um lado, a abolição da propriedade privada vulnera a natureza das coisas e atenta contra a liberdade –tal abolição a propugnam, quodammodo os vários socialismos–, e se, de outro lado, pode afirmar-se com Louis Salleron que “la propriéte privée est bonne, est excellente”, não menos é preciso admitir, com a mesma lição de Salleron, que o defeito maior do capitalismo está na falta de fluidez do domínio, está no cúmulo da propriedade em mãos de poucos. A solução para esse aparente confronto está no estímulo à difusão do domínio, tal, aliás, já indica o título da obra de Salleron (Diffuser la propriété), da qual se extrai a passagem que segue:
 
Parce que le capitalisme individualiste et libéral a privé de propriété un trop grand nombre d’individus, le communisme propose d’en priver tout le monde –comme si la généralisation du mal constituait son remède. Il est évident que la bonne solution est inverse: assurer la propriété à tout le monde. Patrimoine familial, patrimoine corporatif, patrimoine national et universel –voilà la vraie formule –em tradução livre: Porque o capitalismo individualista e liberal privou de propriedade um demasiado número de indivíduos, o comunismo propôs privá-la de todo o mundo, como se a generalização do mal fosse seu remédio. É evidente que a boa solução é a inversa: assegurar a propriedade a todo o mundo. Patrimônio familiar, patrimônio corporativo, patrimônio nacional e universal –eis a verdadeira fórmula.”
 
Neste mesmo sentido, vêm também lições recrutadas na doutrina da Quadragesimo Anno do Papa Pio XI, onde, após reconhecer legítima a propriedade privada –“a própria natureza exige a repartição dos bens em domínios particulares, precisamente a fim de poderem as coisas criadas servir ao bem comum de modo ordenado e constante”–, o Pontífice observa que infringem a justiça econômica “tanto os ricos que, felizes por se verem livres de cuidados em meio da sua fortuna, têm por muito natural embolsarem eles tudo e os operários nada, quanto a classe proletária que, irritada por tantas injustiças e demasiadamente propensa a exagerar os próprios direitos, reclama para si tudo, porque fruto do trabalho das suas mãos, e combate e pretende suprimir toda a propriedade e rendas ou proventos, qualquer que seja a sua natureza e função social (…)”.
 
689. O registro de imóveis é um instrumento que, destinado embora à ordenação da propriedade privada, pode ser, de fato, um veículo que favoreça seu uso bom ou mau, fomentando e agasalhando justiças e injustiças, certo que a possessão de bens materiais não é imune à intância moral (é de Aristóteles, na Ética a Nicômaco: “As coisas úteis podem ser usadas bem ou mal…” –Bkk. 1120 a 5; sirva-nos aqui uma só ilustração extraída do direito brasileiro posto, qual o de seu Código penal (art. 91) prever o efeito confiscatório emanado da condenação criminal), e a autoridade política tem mesmo o dever de evitar os usos da propriedade que sejam molestos ao bem comum (v.g., o uso de equipamentos médicos para a prática do assassinato de crianças). Tal o fez ver com muito acerto Christopher Ferrara –e a isto já nos referimos, o direito de propriedade, por não ser absoluto, não pode compreender-se separadamente de seus deveres relativos aos demais indivíduos, aos corpos sociais intermédios e à toda sociedade.
 
Contra o bom uso da propriedade conspira a pleonéxia ou “cupidez da riqueza” (lucri cupiditatem), de que diz Aristóteles, numa passagem da Política:
 
(…) alguns (…) acabam por pensar que deve conservar-se ou aumentar a riqueza monetária indefinidamente. A causa desta disposição é o afã de viver, e não o de viver bem. De ser, com efeito, aquele desejo sem limites, desejam também sem limites os meios produzidos. Até os que aspiram viver bem buscam o que contribui aos prazeres corporais, e como isto parece que depende da propriedade, toda sua atividade dedicam-na aos negócios (…)” (1257 b 15 et sqq.; acrescente-se aqui o que se acha na República, de Platão: “(…) os negociantes zelam por seu dinheiro, porque o consideram obra sua e também, como os outros, porque veem a utilidade que ele tem. Até a convivência com eles é difícil, já que querem louvar sua riqueza” –330 c).
 
Não nos precipitemos a entender que o aumento patrimonial seja de si próprio algo nefando. Vale a pena recordar, ad summam e ainda uma vez lição da Quadragesimo Anno:
 
Nem é vedado aos que se empregam na produção, aumentar justa e devidamente a sua fortuna; antes a Igreja ensina ser justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens, se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição, contanto que isto se faça com o respeito devido à lei de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os princípios da fé e da reta razão. Se esta doutrina fosse por todos, em toda a parte e sempre observada, não somente a produção e aquisição dos bens, mas também o uso das riquezas, agora tantas vezes desordenado, voltaria depressa aos limites da equidade e justa distribuição; à única e tão sórdida preocupação dos próprios interesses, que é a desonra e o grande pecado do nosso tempo, opôr-se-ia na verdade e de fato a suavíssima e igualmente poderosa lei da moderação cristã, que manda ao homem buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça, seguro de que também na medida do necessário a liberalidade divina, fiel às suas promessas, lhe dará por acréscimo os bens temporais.
 
Christopher Ferrara diz, mais uma vez com razão, que o homem contemporâneo nem sempre se dá conta de que a concorrência sem fim de uns empresários contra outros, visando à aquisição ilimitada de riqueza, corrompe a civilização porque o afã de aquisições imoderadas desconsidera os fins humanos e o destino universal dos bens.
 
690. O acúmulo injusto de excessivas riquezas incrementa mais cumulações ilícitas e, em acréscimo, propicia a coalização entre o capital e o estado –ou, noutro ângulo, entre o liberalismo (também o neo-liberalismo) e o socialismo–, vícios que já se haviam diagnosticado, ainda em meio ao século XX, nesta aguda observação de Jacques Germain:
 
(…) frente aos poderes políticos, a grande empresa encontra-se em uma posição de força –e de influência. Por suas mesmas dimensões desempenha um papel essencial na vida econômica de um país, e o estado não pode desinteressar-se de sua atividade, de tal maneira que se vê obrigado a conceder-lhe vantagens financeiras (subvenções, empréstimos, garantias de empréstimos), privilégios fiscais ou aduaneiros (…).
 
Por outra parte, pelo mero fato de seu poder financeiro, a grande empresa encontra-se particularmente bem armada para intervir junto aos altos funcionários, parlamentares ou membro dos governos e obter deles múltiplas vantagens, ao ponto até de que, a miúdo, não se sabe se o estado é quem dirige a economia ou se é a economia privada quem dirige o estado.

 
Todo um complexo de normas limitadoras da injustiça econômica –p.ex., preceitos que garantem o descanso semanal, a indenização e a compensação por danos patrimoniais e lesões morais resultantes do trabalho, ou vedem a usura)– deve estimular o bom uso dominial e animar a ideia de um justo distributismo, ou seja, de um fomento à difusão da propriedade, e, quanto ao domínio imobiliário, apetrechar o registro imobiliário a, sem excessivos óbices, favorecer-lhe a aquisição e beneficiar-lhe a custódia.
 
Em contrário, a conjugação do estado com o capital e as finanças, ou, mais concretamente, com determinados grupos privados, enseja o que Bradley Jr. designou de capitalismo político –e que outros autores têm chamado de capitalismo de laços ou capitalismo amiguista, em que o estado privilegia algumas entidades particulares, dando-lhe vantagens ou atribuições que injustamente desfavorecem e prejudicam outros corpos sociais menores, dos quais, muitas vezes, são subtraídas as atividades em benefício das entidades “amigas”.