(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Nona parte)
 
9. Na perspectiva interna ou estrutural do instrumento público, seu momento culminante é o da autorização notarial, quando o notário expressa seu consentimento –placet notarii– ao ato que, com um sinal (signum; hoje, firmando-o), torna, então, completo.
 
Esse consentimento notarial abrange o actum e o dictum do documento, abarca-lhe a matéria e a forma, acrescentando-lhe uma nova e completiva forma, com que se produzem três consequentes:
 
(i) o de encerrar o processo de gestação documental (“sin posibilidad de añadirlo, modificarlo o contradicerlo” –Rafael Núñes Lagos,
 
(ii) o de aperfeiçoar a eficácia sintética da escritura e
 
(iii) o de conceder-lhe a exatidão e veracidade emanantes do testemunho qualificado (fides publica).
 
Materialmente, a autorização equivale ao lançamento de um sinal (atualmente, a firma) do notário na escritura elaborada; formalmente, é o consentimento do notário tanto com o actum do documento (o fato, ato ou negócio instrumentado), quanto com seu dictum, ou seja, com a regularidade de seu processamento (já no campo de sua concordância com a realidade: verdade material ou contextual; já no de sua conformidade com os requisitos legais: verdade formal ou textual).
 
1. A palavra autorização deriva de auctor, auctoris, ou de seu corresponde abstrato auctoritas, auctoritatis, e, mais remotamente, do verbo augeo (infinitivo augēre: aumentar, acrescentar), e, quanto ao caso específico do consentimento notarial, aponta para um aumento ou acréscimo de valor do instrumento, pois que, antes de sua autorização pelo notário, não passa aquele de um projeto ou, quando muito, de um documento particular se já firmado pelos outorgantes (cf. Giménez Arnau).
 
Assim, falar em autorização notarial é acolher a ideia de acréscimo de valor proveniente do só fato de o notário assinalar (rectius: firmar) o documento, porque tem a auctoritas para assinalá-lo (firmá-lo) e, com ela (por ela o ter atraído), a potestas para dar fé pública ao instrumento.
 
Tenha-se, pois, em linha de conta não somente a importância do binômio autoridade-potestade para dar graduado valor jurídico à escritura, mas, por igual, a relevância da pessoa mesma do notário, clave fundamental para a vitalidade do instrumento público.
 
Vem a calhar esta sábia observação de Juan Vallet, no sentido de que “la institución notarial se basa en la persona del notario y en su labor, tal como historicamente se ha desarrollado”. Em nossos tempos, tempos nos quais muitos se enredam por tabelas, gráficos e jargões tecnocráticos, tal como, para aqui empregar uma passagem de Vítor Elias, em seu Pobres diabos, “os homens pré-históricos se deixavam dominar pelos batuques dos tambores”, é hora de considerar o fator antropológico essencial dos notários e registradores, enquanto juristas e não meros amanuenses ou escrevinhadores mecânicos. Tem-se mesmo agora falado na urgente necessidade de um humanismo (ou mesmo de uma re-humanização) notarial e registral que, sem menoscabar a importância dos meios tecnológicos, não os converta em fins, nem se deixem imprudentemente substituir pela gerência dos experts de turno.
 
1. A autorização notarial contemporânea teve, entre outras práticas e institutos, por antecessores, no direito romano, a mancipatio primitiva, a stipulatio e várias espécies de traditio (cf. Núñez Lagos, Bonfante, Brunner, Bono, D’Ors, Jörs-Kunkel).
 
A mancipatio é uma venda simbólica, em que, na presença de cinco testemunhas (todas elas cidadãos romanos púberes) e mais um outro cidadão de Roma (o libripens) que portava uma balança de bronze, o adquirente (mancipio accipiens) golpeava a balança com um pedaço de bronze que trazia às mãos. Este golpe na balança era o sinal completivo do negócio celebrado.
 
A stipulatio era um contrato cujo vínculo obrigatório nascia com um proferimento oral. Em resumo –bastante simplificador–, à pergunta promittisne?, respondia-se promitto, e nisto consistiam o encerramento e a completeza do ajuste.
 
A traditio adotou, ao largo do tempo, diferentes modos, entre estes, para aqui exemplificar, o da entrega do documento pelo scriba ao destinatário, ao fim de um processo que se dava com (i) sua leitura; (ii) subscrição por testemunhas (roboratio); (iii) tradição do documento pelo emitente ao destinatário; (iv) tradição do documento pelo destinatário ao scriba; (v) imposição da cláusula ou fórmula de perfeição (completi et absolvi); e, por fim, (vi) a entrega do documento (dimissio) ao destinatário. Tem-se, nesse processo, duas traditiones cartæ, uma, designada de absolutio a partibus que é a entrega do documento ao destinatário pelo emitente; a segunda é a traditio cartæ ou dimissio que corresponde ao que hoje constitui a autorização notarial.
 
Um segundo modelo de traditio é o da levatio cartæ em que o documento não é entregue por alguém ao destinatário, mas, de maneira diversa, este o recolhe do solo (cartam levare), onde o documento se colocara juntamente com o símbolo da investidura correspondente (festuca ou stipula: faca, luva, pedaço de terra, pequeno ramo, etc.).
 
Deve-se ao Imperador Justiniano o estabelecimento da completio tabellionis, adotada no século VI e modo de autonomização do documento quer em relação à fase oral que o precede, quer no que respeita aos atos que o sucedem. Assim, redigido o documento pelo notário, devia este mesmo completá-lo (“si per tabellionem conscribantur, etiam ab ipso completa sint”), sob pena de o instrumento não adquirir validade. Leia-se o que, a propósito, escreveu Rafael Núñez Lagos:
 
“Los contratantes pueden perfeccionar el acto oralmente y prescindir del documento y del notario; pero, con las medidas de Justiniano, si las partes convienen en formalizar la stipulatio por escrito, o si acuden con el mismo fin al notario, el negocio jurídico no logra su perfección antes que el documento. Negocio y documento se perfeccionan, no ex intervallo, sino in continenti. El documento es constitutivo.”
 
2. Regressemos um tanto ao tema da auctoritas notarii, que é de atualíssima importância na hora presente, em que tanto se vem disputando acerca de acenadas vantagens assecuratórias no uso de meios tecnológicos substituintes dos atuais modos funcionais dos notários e registradores.
 
Há uma asserção simples que parece pôr cobro a estas comichões tecnocráticas –para mesmo não as dizer tecnolátricos: é que, salvo venhamos a acolher uma distopia transhumana ou pós-humana, a fé pública, por definição política, por trajetória histórica e em seu sentido principal, é uma realidade essencialmente antropológica, porque se dirige a comunicar algo de emitentes humanos (agentes fidei publica) a destinatários também humanos (é o que então se denomina fides publica accipientium), o que inviabiliza a admissão de que um mero correlato epistêmico objetivo, tecnológico, possa ser a suficiente fonte emanante (fides publica agentis) ou causa eficiente (fides publica efficiens) substituinte da captação, da percepção e da comunicação inter homines.
 
Ora bem, a essência do notariado está na competência autorizadora do notário –em sua auctoritas de jurista, primeiro, e, depois, de redator dotado de destreza e testemunha qualificada–, e, nesta mesma linha, Bono observou, com razão, que a fé pública deriva da autoridade que ordena a formalização documental, e não da facticidade da mera autenticação do documento por um funcionário ad hoc, ou, completemos nós, do simples fato de o documento gerar-se e conservar-se num ambiente que se afirme tecnicamente seguro.
 
Parecerá, enfim, até mesmo que algumas transposições semânticas conspirem em favor da ideologia tecnocrática: a abdicação, com a Constituição brasileira de 1988, do uso da palavra cartório, substituída pelo vocábulo serviço, não só abandonou um usus loquendi muito consolidado, senão que alterou o centro de gravitação do direito notarial e registral de uma perspectiva orgânica –a do órgão agente– para outra fisiológica, a do conjunto de praxes. Já o temos insistido aqui, lembrando-nos de uma preciosa sentença de Michele-Laure Rassat, que “les mots ne sont pas inoccents” e, doutro autor, que “les mots sont les maux”.
 
Lewis Mumford não hesitou em acusar de denegeração do poder humano a perda do controle dos homens vencidos por seus próprios recursos e oportunidades: “Vivemos (disse Mumford) numa era em que se verifica uma multidão de avanços técnicos sem sentido social, divorciados de quaisquer outras finalidades que não o progresso da ciência e da tecnologia. Na realidade, vivemos num explosivo universo de invenções mecânicas e eletrônicas, cujas partes se movem num ritmo rápido, distanciando-se cada vez mais do seu centro humano e de quaisquer finalidades humanas racionais e autônomas”.
 
E, com efeito, sem que arbitrariamente se modifique, em substância, a noção de fé pública, sem que se renegue da natureza mesma do notariado latino –de que descende também a instituição registral–, não parece possível, num mundo ainda genuinamente humano, substituir notários e registradores por bits e robôs, nem dar autoridade e potestade a máquinas e programas cujos segredos, de resto, são maiores do que os supõe ou desconhece a ingênua ou maliciosa propaganda tecnolátrica. O almejado governo por alguns experts pode ser também o correspondente ganancioso governo por alguns espertos, mas a ideologia não resiste por muito tempo ao confronto com a realidade das coisas, e o que se expulsa por uma janela volta por outra. Entrementes, haverá, porém, um custo a pagar pela desventura.