(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: o bem de família – parte 3)
 
Des. Ricardo Dip
 
No vigente direito brasileiro, o processo inscritivo do bem de família tem início com a apresentação do título (escritura, formal de partilha, carta de adjudicação), seguido de sua prenotação no Livro n. 1 -Protocolo e sucessiva autuação (cf. Ademar Fioranelli).
 
A apresentação (art. 261 da Lei n. 6.015/1973) ꟷou, à vista de seu intento, solicitação, requerimento, pedido de registroꟷ não demanda texto, sequer fórmula sacramental, suficiente o fato mesmo de entregar-se o título ao ofício imobiliário. Dessa essa apresentação (e o art. 261 usa, no tempo futuro, o verbo “apresentar”), que é o ato inicial do processo de instituição do bem de família, comporta distinguir-se outra apresentação do título, para fins de mera qualificação e cálculo de gastos (vidē o par.ún. do art. 12 da mesma Lei n. 6.015). Aquela cumpre a instância que se exige para a instauração desse processo (cf. tomo III destes Registros sobre registros, itens 517 et sqq.).
 
A prenotação (art. 182 da Lei n. 6.015) fixa o terminus a quo da eficácia do registro definitivo correspondente e prevalecerá até o final do processo, seja que se perfaça a inscrição requerida, seja que seja ela negada (o que adiante melhor se examinará: vidē art. 264), de sorte que se tem aí uma exceção à automaticidade prevista no caput do art. 205 da mesma Lei n. 6.015: “Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais”.
 
Por autuação entende-se, formalmente, o ato inaugural de um processo. Neste aspecto, a palavra portuguesa auto é uma variante do vocábulo ato; ambas provêm do latim actus, acti (ou ainda actus, actus) ꟷe não do grego autos (αυτός) de que, por outro aspecto, também pode resultar o vernáculo auto (p.ex., automóvel, autoacusação, autodidata, autônomo etc.). Com a origem latina parece traduzir-se a ideia de alguma solenidade: assim, autos jurídicos ꟷo ritual dos autos de fé, designação dos processos nos Tribunais de Inquisição, e o dos autos teatrais (“ação artística, sacra ou profana, executada por corpos vivos” ꟷLanciani-Tavani; v.g., os célebres autos de Gil Vicente). Em acepção material, autuação é dar uma capa à peça de inauguração de um processo, e nessa capa referir elementos de sua identificação (nome do interessado, objeto, data etc.; cf. De Plácido e Silva), tornando-se o conjunto um lugar atrativo das demais peças relativas ao mesmo processo, cujas folhas se vão numerando em ordem sucessiva (Fioranelli).
 
Preceitua a normativa brasileira de regência que o registrador proceda à publicação, em forma de edital, do “resumo da escritura” relativa ao bem de família, indicando o nome, a naturalidade e a profissão do instituidor, assim como a data do instrumento notarial e nome do tabelião que o elaborou, e a situação e características do prédio objeto (inc. I do art. 262 da Lei n. 6.015, de 1973).
 
Antes, porém, de proceder a essa publicação editalícia, compete ao oficial de registro a tarefa de qualificar o título, vale dizer, julgar concretamente se cabe ou não admitir o registro pretendido, julgamento que se expede à luz dos requisitos extrínsecos e intrínsecos da titulação, bem como à de sua adequação aos supostos registrais (p.ex., observância da consecutividade, da regularidade descritiva em face do registro anterior, etc.).
 
Dentre esses requisitos, no direito brasileiro, avulta aqui revolver, de modo particular, os das controversas exigências legais (i) da moradia do instituidor, por ao menos dois anos, no imóvel objeto, (ii) da confirmação da solvência do mesmo instituidor e (iii) da limitação do bem afetado ao correspondente a um terço do patrimônio líquido ao tempo da instituição (art. 1.712 do Cód.civ.).
 
Tem-se escrito do art. 19 do Decreto-lei nacional n. 3.200/1941 (de 19-4), com o texto que lhe deu o art. 1º da Lei n. 6.742/1979 (de 17-12), que “não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos”.
 
Aponta, assim, Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, a controvérsia a propósito desse dispositivo: “parte da doutrina considera que cabe ao registrador examinar se foi observado o requisito temporal de dois anos de moradia no imóvel. Doutrina majoritária, contudo, não acolhe essa orientação, uma vez que o Código Civil vigente não contempla esse requisito”.
 
Ari Pires Neto sustenta que “permanece a exigência legal de que o instituidor resida no imóvel objeto da instituição há pelo menos dois anos, nos termos do art. 19 do Decreto-lei n. 3.200/1941, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 6.742/1979, não revogado pelo novo estatuto, sendo requisito necessário, uma vez que o descumprimento dessa ordem legal poderá ser motivo de reclamação de eventual interessado e burla ao instituto”. Não diversamente pensam Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, e, na mesma linha, Ademar Fioranelli, os três acenando a julgado da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo (Processo 000.01.069194-4), decisão esta proferida, entretanto, antes da vigência do Código civil de 2002.
 
O art. 19 do Decreto-lei n. 3.200 previra, originariamente, que não seria instituído em bem de família “imóvel de valor superior a cem contos de réis”; esse dispositivo alterou-se com a Lei n. 2.514/1955 (de 27-6), vedando-se a instituição em prédio com “valor superior a Cr$1.000.000,00 (um milhão de cruzeiros)”; posteriormente, com a Lei n. 5.653/1971 (de 27-4), limitou-se a instituição em imóvel cujo valor não ultrapassasse “500 (quinhentas) vezes o maior salário mínimo vigente no País”. Com o advento da Lei n. 6.742, estabeleceu-se não haver limite de valor para o bem de família, desde que o imóvel fosse “residência dos interessados por mais de dois anos” (art. 1º). Ou seja, tal o observou Paulo Nader, a Lei n. 6.742, de 1979, substituiu “o limite máximo [do valor do prédio objeto da instituição do bem de família] pela exigência de morada no imóvel, pelos interessados, por mais de dois anos”, solidando-se o entendimento de que esse prazo de residência no prédio configuraria o requisito ordinário para toda instituição de bem de família.
 
Com o vigor do Código civil de 2002, restabeleceu-se o critério de valoração máxima do imóvel em que se institua o bem de família.
 
Nada obstante, com efeito, não se tenha previsto, a propósito, valor fixo, previu-se, no entanto, limite de valoração proporcional: “Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial” (art. 1711 -a ênfase gráfica não está na origem).
 
Desta maneira, já não vige a indiferença do valor do prédio objeto, qual se dera com a função substituinte que, no Decreto-lei n. 3.200, observada a redação da Lei n. 6.742, era exercida pela residência ao menos bienal no imóvel instituendo. Retomou-se, com o Código civil, a ideia de limite valorativo para a instituição do bem de família.
 
Recruta-se da doutrina de Ricardo Arcoverde Credie: “o art. 1.711 desse novo Código (…) estabelece que a instituição voluntária do bem de família somente poderá acontecer na hipótese de o imóvel não ultrapassar, em seu valor, a um terço do patrimônio líquido do instituidor”.
 
Ora bem, a lei posterior ꟷou seja, neste quadro, o Código civil brasileiro de 2002ꟷ “revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (§ 1º do art. 2º do Decreto-lei n. 4.657, 4-9-1942; vidē Lei n. 12.376/2010, de 30-12), e há incompatibilidade normativa entre a dispensa de valor do prédio objeto da instituição do bem de família, tal se deu com a Lei n. 6.742, e a previsão de valor máximo indicada no Código. Se a dispensa de valor, naquela norma anterior, a da Lei n. 6.472/1979, atrelara-se ao requisito de moradia por ao menos um biênio no imóvel instituendo, já a correspondência substitutiva perdeu sua razão de ser com o Código civil: não há mais isenção de valor a substituir-se pela de residência; não se vê motivo para manter-se uma função substituinte quando não há mais o que substituir.
 
As sucessivas textualizações do art. 19 do Decreto-lei n. 3.200 põem em relevo a clave fundamental do valor do prédio, não a de moradia por dado período mínimo. O regresso normativo da limitação de valor do imóvel objeto da instituição afasta o que foi apenas, desde a vigência da Lei n. 6.742 até o vigor do Código civil de 2002, uma forma substituinte da limitação que se suprimira.