Des. Ricardo Dip
 
SOBRE A CREDIBILIDADE DO NOTÁRIO (terceira parte)
 
Não se quer aqui desconhecer o quanto de obscuridade cerca o tema da mentira, nem a relevância de considerar os contextos do falso -até para discriminar as mentiras ditas jocosas (que não são mentiras), as ironias, as restrições mentais latiore sensu-, os casos de legítima defesa locutória e as dificultosas distinções justificadoras de passagens testamentárias [p.ex., o episódio das parteiras do Egito (Ex 1,19), o da simulação de Jacó diante de Isaac (Gn 20,2), o de Judith e Holofernes (Jd 11, 5  et sqq.)] e da vida dos santos (v.g., S.Atanásio e S.Francisco de Assis).
 
Aos que se interessem pelo estudo destas intrincadas questões, além de remeter-me às já antes referidas obras de S.Agostinho (De mendacio e Contra mendacium) e de S.Tomás de Aquino (S.theologiæ), indico, brevitatis studio, relativamente recentes páginas de Joan Costa: El discernimiento del actuar humano (Pamplona: Eunsa, 2003).
 
Há algo contextual, entretanto, que não se pode ignorar: é o em nossos tempos pouco apreço social à veracidade. Hoje, ao acendrado zelo pela verdade que enchia e irritava o coração de Peter Kien, personagem do Auto de fé, de Elias Canetti -“Kien detestava mentiras. Desde criança, atinha-se à verdade”; “O cotidiano não passa de um trivial emaranhado de mentiras. Cada homem que passa é um mentiroso”-, parece preferir-se e não nos incomodar demasiado a alma de Nikolai Stavróguin, um dos demônios de Dostoievski, com o gosto do êxtase que lhe provocava a angustiante consciência de sua própria baixeza.
 
A convivência com o falso, pelo agora costumeiro entrechoque de narrativas (conflito cuja exploração é estratégia adotada pelo pós-marxismo), parece normalizar a mentira, fazê-la uma aparente fraterna companheira da verdade (mas uma falsa companheira).
 
Ainda, porém, que, normalizando-se, a mentira se vá tornando convivencialmente muito habitual em nossos tempos, caberia perguntar-nos por quais motivos mentem os homens?
 
A este respeito, remonto-me a um sermão referido por Piotr Roszak, sermão que S.Tomás de Aquino proferiu em julho de 1271, tratando de uma passagem evangélica (Mat. 7, 15), a em que Cristo adverte contra os lobos em pele de cordeiro –lupi in vestimentis ovium.
 
Nessa pregação (designada Attendite a falsis, palavras com que se inicia a mencionada lição do Evangelho), o Doutor Comum ensina que dois são os motivos pelos quais se consuma a simulatio, ou seja, a palavra ou o gesto que falseiam o mundo: ou se cuida, com a mentira, (i) de buscar um benefício patrimonial (lucrum), ou (ii) de obter uma fama vazia (vana gloria); dois bens terrenais, com que o simulador pensa cumprir a “lógica do êxito”, ainda que corroendo a própria alma.
 
Talvez, apenas talvez, haja ou possa haver algum notário descurado da auctoritas que ele próprio, abandeirando-se dela, recebeu de sua milenar ou mais que milenar instituição. Talvez possa haver, nalguma parte, um notário que, por ânimo de lucrum,  perca de vista a liberalidade de seu ofício, e, tal como Esaú, troque-lhe a credibilidade por umas escrituras ou caraminguás a mais. Sempre, contudo, é possível manter a esperança de que, a exemplo do filho pródigo, também regresse ele ao verdadeiro e ao bem.
 
O certo é que, por meia dúzia que sejam ou trinta, se melhor calhar, de moedas adicionais, não parece sequer temporalmente explicar-se o grave risco de pôr-se a perder a credibilidade, signo da essência e da vitalidade do notariado.