(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 14)
790. Lê-se no caput do art. 225 da Lei n. 6.015, de 1973, que “os tabeliães, escrivães e juízes farão com que, nas escrituras e nos autos judiciais, as partes indiquem, com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e, ainda, quando se tratar só de terreno, se esse fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário”.
Num primeiro momento pareceria não ser de observância obrigatória esta regra quanto ao registro da hipoteca judicial, uma vez que, como ficou dito, não se exige pronunciamento judiciário para a constituição desta garantia (arg. § 2º do art. 495 do Cód.pr.civ.bras.).
Isto, contudo, não se afeiçoa ao entendimento de que, nada obstante dispensável o decisum judicial para admitir-se essa hipoteca, diversamente haja necessidade de uma singular decisão judiciária quanto ao imóvel ou imóveis sobre os quais deva recair o ônus.
É verdade não ser de todo raro que essa exigência de observância rigorosa da norma do art. 225 da Lei brasileira de Registros Públicos seja superada pela só menção do número da matrícula do imóvel afligido. Com todo o rigor, caberia satisfazer o preceito de regência para a adequada especialização da hipoteca (arg. art. 1.497 do Cód.civ.bras.), não havendo na disciplina legal em vigor uma previsão exceptiva que beneficie a garantia com excluir-lhe da incidência do referido art. 225 da Lei n. 6.015.
791. É da regra do § 3º do art. 495 de nosso vigente Código de processo civil que “no prazo de até 15 (quinze) dias da data de realização da hipoteca, a parte informá-la-á ao juízo da causa, que determinará a intimação da outra parte para que tome ciência do ato”.
Não havia previsão símile no Código brasileiro de processo civil de 1973, e a nova disposição não se fez acompanhar de preceito sancionatório.
A omissão desta providência imposta pela regulativa processual não possui reflexo algum imediato na esfera do registro, nem tem o registrador de diligenciar-lhe observância ou cientificar-se dela, não se propiciando, pois, nenhum ato de averbamento correspondente.
A conduta a praticar-se, segundo essa regra do § 3º do art. 495 do Código, é imanente ao processo e, quando se queira pensar em alguma inflição de penalidade ante a ausência da informação exigida na lei, a sanção correspondente é de caráter processual, aplicada em razão de ser reconhecido, circunstancialmente, um caso de má-fé (art. 17 do Cód.pr.civ.), por afronta do dever de probidade no processo (art. 5º do mesmo Cód.).
792. Também se prevê no Código de processo a hipótese de responsabilidade objetiva referente à hipoteca judicial, quando sobrevenha “a reforma ou a invalidação da decisão que impôs o pagamento”, respondendo o credor “independentemente de culpa, pelos danos que a outra parte tiver sofrido em razão da constituição da garantia”; o valor indenitário correspondente deve ser “liquidado e executado nos próprios autos” (§ 5º do art. 495).
Trata-se aí de previsão estritamente relativa a uma responsabilidade processual, em nada, por certo, extensiva ao registrador, suposto haja ele bem qualificado o título correspondente.
Desta maneira, esta regra processual que tem por pressuposto a reforma ou a invalidação da sentença que impôs o pagamento pecuniário não confronta com o disposto no art. 22 da Lei n. 8.935/1994 (de 18-11), norma que prevê a responsabilização civil dos oficiais de registro pelos prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo (tal a aclaração que proveio do art. 2º da Lei n. 13.286, de 10-5-2016).
Assim, ao lado da responsabilidade objetiva de caráter processual pela constituição da hipoteca judiciária, responsabilidade que apenas pode afetar quem figurou com o status de credor exequente no processo referencial, persevera a possibilidade da responsabilização subjetiva do registrador ꟷna hipótese de prejuízos resultantes, por seu dolo ou culpa stricto sensu, de uma conduta propter officium (interessante parece observar, neste passo, que o texto original do caput do art. 22 da Lei n. 8.935 mencionava expressamente respondesse o registrador pelos danos que ele e seus prepostos causassem a terceiros, “na prática de atos próprios da serventia”; a mesma indicação se preservou com a mudança do texto do caput desse art. 22 por força do art. 8º da Lei n. 13.137, de 19-6-2015; todavia, a referência já não se encontra no enunciado proveniente da Lei n. 13.286, dando margem, pois, a cogitar-se, ainda que sem aparente êxito, acerca de eventual expansão da responsabilidade civil do registrador, enquanto tal, pela prática de atos extra officium). Remanesce ainda, como se verá adiante, a possibilidade de uma responsabilização subjetiva do credor exequente, na hipótese de abuso de direito com a inscrição da hipoteca.
793. Designadamente, não parece trasladável ao registrador o quadro de responsabilização objetiva que, nos termos do § 5º do art. 495 do Código de processo civil, poderá afligir o exequente.
Em outras palavras, a só circunstância de dar-se, pelo registro de imóveis, publicidade à inscrição de uma hipoteca judicial que, adiante, em vista da reforma ou anulação da sentença que lhe deu fundamento, veio a desconstituir-se, não acarreta, ipso facto, deva o oficial de registro também responder pela publicidade que, ao fim, terminou por admitir-se injurídica.
Para logo, toda responsabilidade do registrador demanda confirmação de sua culpa (lato sensu). Além disto, sempre supondo aqui a regularidade da qualificação do título, o oficial do registro, ao inscrever a hipoteca judicial, satisfazia os efeitos de uma sentença, de modo que se há de concluir de todo implausível tivesse ele a faculdade de discutir o acerto ou desacerto do meritum iudicandi. Por fim, lê-se no inciso I do art. 188 do Código civil brasileiro não constituir ato ilícito o praticado “no exercício regular de um direito reconhecido”; ora bem, um dos pressupostos da responsabilidade civil é exatamente a ilicitude de um ato ou de omissão.
794. Ao preceito do § 5º do art. 495 do Código de processo civil já se têm levantado ponderáveis críticas.
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, por exemplo, observaram que, perante a previsão de responsabilidade objetiva da parte favorecida pela garantia, a “hipoteca judicial não irá despertar os operadores do direito para o seu uso, pois, ao fim e ao cabo, a parte só optará pela hipoteca caso haja muita segurança no desfecho do processo nas instâncias superiores”.
Também Narciso Orlandi Neto que considera “intrigante” essa responsabilização objetiva (ou “ameaça”) do exequente entende não ser comum “a pessoa natural responder objetivamente por prejuízo causado no exercício regular de direito” (o destaque não é do original). É de assinalar que o exercício de um direito corresponde exatamente à ideia de conduta harmonizada com a ordem jurídica. Se assim é, se, pois, há licitude na conduta, os prejuízos que dela estritamente derivem não podem ser considerados ilícitos.
Vem a propósito invocar um julgado do Superior Tribunal brasileiro de Justiça que exatamente afastou a obrigação ressarcitória de danos num caso envolvendo a atividade de ofício extrajudicial: “Diante da presunção legal de veracidade e publicidade inerente aos registros do cartório de protesto, a reprodução objetiva, fiel, atualizada e clara desses dados na base de órgão de proteção ao crédito ainda que sem a ciência do consumidor não tem o condão de ensejar obrigação de reparação de danos” (REsp 1.444.469, julg. 12-11-2014).
795. O efeito prognosticado com essa regra do § 5º do art. 495 do Código de processo civil de 2015 é o da abdicação do uso da hipoteca legal, porque, demais do dispêndio financeiro do custeio de seu registro, “o risco de ter de pagar indenização à parte contrária, além das verbas de sucumbência, afugentará o credor do Registro de Imóveis” (Narciso Orlandi), preferindo o interessado outras formas para satisfazer seu crédito.
De par com os danos materiais suscetíveis de configurar-se (Narciso Orlandi ilustra-os com as perdas de um financiamento e de ocasião para a venda do próprio imóvel onerado), ter-se-ia também de cogitar de possíveis lesões de caráter moral, diante de eventual sofrimento psíquico padecido por, a final, injustos impedimento de plena disponibilidade do imóvel e publicidade desse impedimento.
Acrescente-se que a hipótese de responsabilidade objetiva prevista no § 5º do art. 495 do Código de processo civil não exaure o espectro da responsabilização da parte interessada na garantia hipotecária, o que foi bem avistado por Narciso Orlandi:
“(…) como a lei não limita o número de imóveis que podem ser hipotecados, e como a obrigação de pagar pode não ser líquida, o credor pode sentir-se tentado a hipotecar mais de um imóvel.
(…)
Sabidamente, a hipoteca registrada restringe sobremaneira a disponibilidade do proprietário. O abuso do direito, facilmente provado, poderá levar o exequente a ter de pagar indenização por perdas e danos, ainda que a decisão que produziu a hipoteca não tenha sido reformada ou anulada” (a ênfase gráfica não é do original).