Conforme já noticiado nesta ConJur, só em 2017 foram ajuizadas no Brasil mais de 41 mil ações de improbidade administrativa.[1] O número impressiona, e chama atenção para um aspecto essencial da fase inicial daquelas ações. Senão em todas as ações de improbidade, ao menos na maioria delas o autor da ação requer em caráter cautelar a indisponibilização de bens dos requeridos. O tema merece aprofundamento, especialmente em função das injustiças cometidas contra sujeitos que passam anos com seu patrimônio indisponibilizado, especialmente aqueles que são ao final absolvidos.
 
O art. 7º da Lei de Improbidade prevê a possibilidade de decretação da indisponibilidade patrimonial dos sujeitos processados, com o bloqueio da generalidade de bens e valores do acusado a fim de garantir futuro ressarcimento ao erário.[2] É medida cautelar em ação de improbidade[3], compreendida do ponto de vista processual como uma garantia de tutela do direito material em função do tempo. A tutela cautelar, ao invés de simplesmente assegurar o processo[4], assegura os direitos e o próprio direito à tutela do direito material.[5]
 
Tem natureza conservativa, na medida em que uma vez deferida impossibilita que o sujeito processado por improbidade administrativa disponha de seus bens móveis ou imóveis. Em alguns casos, como por exemplo em situações de bloqueio de ativos financeiros em conta bancária, impede até mesmo a mera utilização gestão dos recursos. A medida é evidentemente gravosa. Em nome da preservação da persecução processual e do interesse público termina por limitar o patrimônio de quem é acusado de improbidade. Isso acontece mesmo na fase preliminar do processo e antes do recebimento da ação.[6]
 
Até 2014 prevalecia no Superior Tribunal de Justiça (STJ) jurisprudência exigente de duplo requisito para concessão da medida cautelar de indisponibilização de bens em ações de improbidade administrativa. Basta mencionar, por exemplo, decisões da Primeira e Segunda Turmas, que exigiam cumulativamente dois requisitos para o decreto de indisponibilidade: (i) fumus boni iuris, correspondente à verossimilhança ou probabilidade da ocorrência do ato de improbidade invocado pelo autor e (ii) periculum in mora, correspondente à prova de desfazimento do patrimônio pelo acusado ou da prática de condutas próprias de quem busca evitar a execução patrimonial futura (má-fé).[7]
 
Mas a partir de 2014 o STJ contribuiu para o fomento de medidas cautelares indiscriminadas em ações de improbidade. Naquele ano, a Primeira Seção da Corte decidiu no Recurso Especial nº 1.366.721–BA, por maioria, pela presunção do requisito do periculum in mora.[8] Desde então, basta o ajuizamento de ação de improbidade e verificação da probabilidade do direito para que esteja configurada a presunção de má-fé do acusado. O fundamento para tal presunção é de que a demora seria um risco em si para a utilidade do processo de improbidade. Para os defensores daquela presunção, ao silenciar o art. 7º da Lei de Improbidade teria dispensado o segundo requisito das cautelares.[9]
 
Uma leitura atenta evidencia a inconvencionalidade e inconstitucionalidade da interpretação do STJ, por subversão da presunção de inocência (art. 8.2 do Pacto de São José da Costa Rica e art. 5º, LVII da Constituição) e violação da cláusula do devido processo (art. 8 e 25 do Pacto de São José da Costa Rica e art. 5º, LIV da Constituição).[10] Apesar disso, aquele é o entendimento que prevalece desde então e que é aplicado pelos Tribunais em 1ª e 2ª instância.
 
A questão central é que esse posicionamento aplicável nas milhares de ações de improbidade Brasil afora acaba por provocar sérios danos aos réus. A demora natural no processamento daquelas ações em que há bens indisponibilizados está sempre acompanhada do travamento da circulação patrimonial dos acusados. Quando pessoas jurídicas, enfrentam não raro por anos entraves nos seus negócios, com dificuldades de obtenção de crédito, pagamento de folha salarial e dívidas. Quando pessoas físicas, no mínimo têm a vida financeira parada, saldo bancário esvaziado, dependência de familiares e amigos para pagar contas simples. Num caso e no outro, a ansiedade acompanha os réus dependentes de uma Justiça lenta.
 
Não se pode negar que certa demora é ínsita a qualquer processo, mas apesar disso “não parece em consonância com os princípios constitucionais do processo imputar os ônus da demora do trâmite processual, geralmente responsabilidade exclusiva do Estado, ao demandado.”[11] Mesmo em ações de improbidade administrativa, a demora processual excessiva não pode ser colocada exclusivamente sobre os ombros do réu. Não só porque aquele ao final eventualmente inocentado terá experimentado sérios danos, mas também porque mesmo o réu condenado não poderia ter sua presunção de inocência desqualificada de forma injustificada e desproporcional.
 
Assim, é preciso compatibilizar o entendimento vigente da jurisprudência e o princípio da razoável duração do processo em cautelares de indisponibilidade de bens em ação de improbidade. Para tanto, é preciso destacar a norma do art. 266, III do Código de Processo Civil (CPC): “Art. 226. O juiz proferirá: III – as sentenças no prazo de 30 (trinta) dias.”
 
A norma citada prevê um prazo impróprio para o juiz proferir sentença, que pode ser excedido desde que justificadamente (art. 227 do CPC).[12] A verdade é que não raro haverá justificativa para extrapolar o prazo, sendo a mais comum o excesso de trabalho ou volume de processos. Quando não houver justificativa, a doutrina aponta como única consequência do descumprimento do prazo a responsabilização funcional do magistrado.[13]
 
No entanto, a partir de uma leitura convencional[14] e constitucional da Lei nº 8.429/92, à qual se aplica subsidiariamente o CPC[15], é possível sustentar consequência diversa. Em ações de improbidade, ultrapassado o prazo de 30 (trinta) dias para proferir sentença, com ou sem justificativa, extingue-se a presunção do periculum in mora para fins de indisponibilização cautelar de bens. Caso o magistrado deixe de proferir sentença no prazo que a lei considerou razoável para fazê-lo, esvai-se a presunção de que o réu estaria dilapidando seu patrimônio ou imbuído de má-fé.
 
O termo inicial do prazo de trinta dias do art. 226 do CPC é o “primeiro dia útil subsequente à conclusão dos autos para sua apreciação.”[16] A partir do trigésimo primeiro dia contado a partir da conclusão, cabe à parte interessada na manutenção da medida cautelar provar não só a probabilidade do direito invocado, mas também o perigo da demora, sob pena de revogação da medida cautelar em benefício do réu. O mesmo vale para ações pendentes de julgamento em segundo grau de jurisdição.
 
Sem prejuízo de provocação pelo interessado, caberá ao magistrado de ofício intimar as partes para se manifestar sobre a existência de periculum in mora, após o que decidirá sobre a pertinência ou não da manutenção da indisponibilização de bens do réu.
 
A solução apresentada advém de interpretação compatível com os ditames convencionais e constitucionais da razoável duração do processo, dirigidos de modo primordial ao Estado-Juiz e independentemente de justificativas acerca do excesso de prazo para sentença. Afinal, o ônus da demora da ação de improbidade não pode recair desproporcionalmente sobre o réu (que será declarado ou não ímprobo). Não ao menos quando a própria legislação já definiu qual é o prazo razoável para uma decisão de cognição exauriente. Não fosse assim, de reduzida utilidade e eficácia seria a norma do art. 226 do CPC.
 
Por fim, é importante destacar que a revogação da medida de indisponibilidade naquelas condições não prejudica o pedido de indenização da parte de quem sofreu danos advindos de cautelares abusivas no seu conteúdo ou no tempo, nos termos do art. 302 do CPC[17] e art. 27 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.[18]
 
[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mar-20/opiniao-dados-efetividade-acoes-coletivas-brasil>
 
[2] (Lei nº 8.429/92): “Art. 7° Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado. Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.”
 
[3] MATTOS, Mauro Roberto Gomes. O Limite da Improbidade Administrativa: os Direitos dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005. p. 146.
 
[4] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. v.4. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.181.
 
[5] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo cautelar. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.21.
 
[6] A ação de improbidade tem procedimento especial, com fase de prelibação anterior à citação para contestar: “Art. 17 (…) § 7º Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias. § 8º Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.”
 
[7] Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 905035/SC. Relator Min. Castro Meira. Segunda Turma Julgamento em 18.09.2007. Publicado em 18.09.2007; Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp nº 11.898/MT. Relator Min. Arnaldo Esteves Lima. Primeira Turma. Julgamento em 11.10.2011. Publicado em 20.10.2011.
 
[8] Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1366721/BA. Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Relator para Acórdão Min. Og Fernandes. Primeira Seção. Julgamento em 26.02.2014. Publicado em 19.09.2014
 
[9] Seria “desnecessário o perigo do dano, pois o legislador contenta-se com o fumus boni iuris para autorizar essa modalidade de medida de urgência. […] Identificam-se, portanto, as características da indisponibilidade previstas no art. 7º: está limitada ao valor do prejuízo causado e não necessita da demonstração do perigo de dano. O legislador dispensou esse requisito, tendo em vista a gravidade do ato e necessidade de garantir o ressarcimento do patrimônio público.” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela jurisdicional cautelar e atos de improbidade administrativa. In: BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (coord.). Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 260).
 
[10] Cf. GUSSOLI, Felipe Klein. Presunção do periculum in mora na decretação de indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa: para o início de uma crítica à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, v. 15, p. 54-62, 2015.
 
[11] PENÃ, Eduardo Chemale Selistre. Os pressupostos para o deferimento da medida de indisponibilidade de bens na ação de improbidade administrativa. Revista de Processo, São Paulo, v. 38. n. 224. p.333-355, out./2013.
 
[12] (Código de Processo Civil) “Art. 227. Em qualquer grau de jurisdição, havendo motivo justificado, pode o juiz exceder, por igual tempo, os prazos a que está submetido.”
 
[13] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 339.
 
[14] O dever de decidir em prazo razoável é imposto ao Estado-Juiz por vários instrumentos internacionais, a exemplo dos artigos XVIII, XXIV e XXV da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e dos artigos 5.5, 7.4, 7.5, 7.6 e 8.1 da Convenção Americana. O art. 14.2, “c” do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos igualmente garante que todos têm direito “de ser julgado sem dilações indevidas”.
 
[15] “Nos termos da jurisprudência do STJ, é possível aplicar ‘subsidiariamente o Código de Processo Civil nas ações de improbidade administrativa, apesar da ausência de norma expressa na Lei 8.429/92’ (…).” (Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial nº 1337911/PE. Rel. Min. Humberto Martins. Julgamento em 08 set. 2015. Publicado em 16 set. 2015).
 
[16] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Idem, ibidem.
 
[17] (Código de Processo Civil) Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se: I – a sentença lhe for desfavorável; II – obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias; III – ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor. Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.”
 
[18] (LINDB) “Art. 27. A decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos. § 1º A decisão sobre a compensação será motivada, ouvidas previamente as partes sobre seu cabimento, sua forma e, se for o caso, seu valor. § 2º Para prevenir ou regular a compensação, poderá ser celebrado compromisso processual entre os envolvidos.”