No caso concreto, que tramita em segredo de justiça, uma mulher ajuizou ação de divórcio em face de seu marido, de quem já estava separada de fato há mais de três décadas, demandando a consequente partilha de um imóvel, único bem comum ao casal que, ao contrário dos demais que titularizavam em comunhão universal, não havia sido dividido
Recente decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça ratificou entendimento do Tribunal de Justiça do Tocantins no sentido de que a separação de fato não impede o curso do prazo prescricional em demandas que envolvam direitos e deveres matrimoniais.
No caso concreto, que tramita em segredo de justiça, uma mulher ajuizou ação de divórcio em face de seu marido, de quem já estava separada de fato há mais de três décadas, demandando a consequente partilha de um imóvel, único bem comum ao casal que, ao contrário dos demais que titularizavam em comunhão universal, não havia sido dividido.
Em primeiro grau, decretou-se o divórcio e determinou-se a partilha de referido imóvel, cujo valor seria apurado em liquidação de sentença.
O Tribunal tocantinense, contudo, considerou que a separação de fato havia encerrado o regime de bens entre os ex-cônjuges, permitindo o curso do prazo prescricional.
O STJ, por sua vez, em acórdão relatado pelo ministro Moura Ribeiro, manteve a decisão sob os seguintes fundamentos: a) ainda que não haja previsão expressa, é razoável sustentar, com base no art. 5° da LINDB, que o rol de causas de dissolução da sociedade conjugal do art. 1.571 do Código Civil contempla a separação de fato; b) o impedimento para a fluência do prazo se justifica pelas relações de ordem moral entre os cônjuges, como a confiança e o afeto – não mais presentes no caso dos autos – com a finalidade de se preservar a harmonia e a estabilidade da união; c) a separação de fato pelo prazo mínimo de um ano produz efeitos semelhantes aos da separação judicial; d) a separação de fato, ao colocar termo aos deveres de coabitação e de fidelidade, bem como ao regime matrimonial, não impede o fluxo prescricional.
Alguns apontamentos se fazem necessários, a nosso ver, a respeito de alguns dos fundamentos que se acaba de transcrever.
O art. 1.571 do Código Civil elenca quatro causas para o término da sociedade conjugal, a saber, a morte de um dos cônjuges, a nulidade ou anulação do casamento, a separação judicial e o divórcio.
Analisando-o isoladamente, não seria equivocado sustentar que o legislador, ao contemplar apenas a separação judicial como causa dissolutória, longe de ser uma omissão suprível, seria um silêncio eloquente: já àquela altura – e muito antes – não se desconhecia a separação no plano dos fatos. Não à toa, deixou-se de consignar “separação judicial e separação de fato” ou então simples e genericamente “separação.”
Contudo, conjugando-o com o art. 1.830 do Código Civil, importante dispositivo do direito sucessório brasileiro, como faz notar Rosa Maria Nery em seus comentários de atualização ao Tomo VIII do Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda, mesmo diante da necessidade de nova interpretação após a emenda constitucional 66/101, é possível identificar a separação de fato como causa para o desvanecimento do vínculo conjugal.2
Ainda que se entenda desse modo, deve-se notar que a separação de fato, no entendimento da Quarta Turma da mesma Corte, faz com que os bens e direitos dos que estavam casados fiquem em estado de mancomunhão, formando-se uma massa indivisível e pertencente de modo igual a ambos.3
Nesse contexto, pergunta-se: ficará sempre à disposição de determinado cônjuge a pretensão de partilhar os bens em mancomunhão ou disporá de tempo limitado para exercê-la? A resposta passa, invariavelmente, pelo estudo do instituto da prescrição.
O estudo em questão realçará sempre a aparente oposição entre justiça e segurança jurídica. Se por um lado, fazer jus a um direito é atribuir ao seu titular o suum, o seu, o que lhe é devido, por outro argumenta-se não se poder submeter o devedor a uma perene possibilidade de cobrança.4
Sucede que a utilização precípua da prescrição se dá com a violação de um direito subjetivo por outrem, concedendo ao prejudicado uma pretensão exigível juridicamente (Anspruch), chamando o ordenamento jurídico a se pronunciar entre o credor que não exigiu e o devedor que não pagou. Em outras palavras, a prescrição oferece um efeito sedativo das incertezas, dirigindo-se especialmente às cobranças.5
No caso sob exame, não há propriamente uma violação a um direito e tampouco cobrança de obrigação pecuniária. Há, em verdade, uma situação de fato que perdurou por mais de trinta anos envolvendo casal separado sem as formalidades judiciais e que continuou titularizando indistinta e igualmente um bem imóvel.
Nesse sentido, precisa a constatação do des. Francisco Loureiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda que tratando de situação diversa, envolvendo separação judicial: “demora no ajuizamento da partilha não serve para conferir à requerida o domínio da meação do requerente, pois se trata de direito potestativo, que pode ser exercido a qualquer tempo.”6
Para além de ignorar o caráter potestativo do direito da autora da ação, a decisão atenta contra importante cláusula geral do Código Civil, a que se submetem as relações civis com efeitos patrimoniais por ele regidas, que veda o enriquecimento sem causa.
Pode-se mesmo invocar o art. 1.320 do atual diploma civil, que permite que o condômino, a todo tempo, exija a divisão da coisa comum.
Outro ponto bastante controverso da decisão do Superior Tribunal de Justiça diz respeito à fixação do prazo de um ano, a partir do qual passaria a correr a prescrição em desfavor do cônjuge inerte.
Está-se aqui diante de um caso de separação de fato ocorrida há décadas. Em outros, mais comuns, em que os esposos dissolveram a sociedade conjugal há pouco tempo, que segurança se lhes atribuirá? Sem terem formalizado a separação em respeito aos filhos, por exemplo, que fará o cônjuge prejudicado ao saber que já corria o prazo prescricional sem qualquer parâmetro ou previsão legal?
Por fim – e não menos importante-, o ministro Moura Ribeiro atribui também ao afeto o motivo do impedimento da fluência do prazo de prescrição na vigência da sociedade conjugal, com o fito de preservar a harmonia e a estabilidade da união.
Muitos são os problemas implicados na incorporação da afetividade ao Direito brasileiro, por se referir a uma potência humana absolutamente subjetiva e complexa, para cuja compreensão se necessitaria do auxílio de outras ciências.
A título exemplificativo, se cessa o afeto entre um casal, nem por isso se dissolve a sociedade conjugal. Nesse caso, por óbvio, não passaria a correr o prazo prescricional, já que escapa ao Direito a identificação dos sentimentos que ligam os cônjuges.7
Espera-se, em suma, que a decisão seja analisada com a cautela devida, com o auxílio da doutrina, para que se prestigiem os legítimos casos em que deve incidir a prescrição, sob pena de se prejudicar demasiadamente a atribuição de direitos cuja pretensão de exercício não se pode esvair sem o devido amparo legal.
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1 A redação anterior do § 6 do art. 226 da Constituição Federal condicionava a dissolução do casamento civil pelo divórcio à prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei ou à comprovação de separação de fato por mais de dois anos. Por essa razão, o art. 1.830 faz menção ao requisito temporal, não mais exigível desde a mudança legislativa em questão. A ressalva, em sua parte final (“salvo prova, neste caso [separação de fato há mais de dois anos], de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”) não deixa de gerar críticas pelo potencial estímulo a conflitos familiares, notadamente entre cônjuge e filhos.
2 “Não se pode deixar de considerar, também, que nosso sistema jurídico dá grande importância para a separação de fato como forma de extinção do casamento. Embora essa espécie de dissolução da sociedade conjugal não esteja enumerada entre as hipóteses do art. 1.571 do CC/02, nem mesmo o advento da EC 66/10 retirou do sistema os efeitos dissolutórios que ela opera. Tanto isso é verdade que, no sistema de direito de sucessões, o art. 1.830 do CC/02 realça a qualidade do cônjuge como herdeiro necessário, mas aponta a necessidade, para fins de prova da qualidade de herdeiro, que o cônjuge sobrevivente não esteja separado judicialmente, nem de fato, há mais de dois anos, antes da morte do de cujus, ou, ainda, que se prove que a separação de fato se deu por impossibilidade de convivência, sem culpa do cônjuge sobrevivente. Ora, evidentemente, para operar tal efeito de perda da qualidade de herdeiro pelo cônjuge separado de fato há mais de dois anos, por culpa sua, o sistema reconhece que se desvanece o vínculo matrimonial por uma causa de fato, que, agora, sem a distinção antiga de se saber dissolvida a sociedade conjugal, ou o vínculo, há de ser reconhecida como dissolutória do vínculo.” PONTES DE MIRANDA, Franscisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VIII: dissolução da sociedade conjugal e eficácia jurídica do casamento. Atualizado por Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery, p. 60.
3 REsp 1.274.639/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJ 12/09/17.
4 Confira-se, a esse respeito, CORREIA, Atalá. Prescrição e decadência: entre passado e futuro. 2020. 462 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2020.
5 Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I: parte geral de direito civil. 24. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 571-573.
6 Apelação Cível 0017926-68.2011.8.26.0564, Sexta Câmara de Direito Privado do TJ/SP, DJ 26/07/2012.
7 Sobre o tema, cf. MORAU, Caio. Casamento e afetividade no Direito brasileiro: uma análise histórico-comparativa. São Paulo: LiberArs, 2020.
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*Caio Morau é professor de Direito Civil e Empresarial da Universidade Católica de Brasília, Doutorando e Mestre em Direito Civil pela USP, assessor jurídico no Senado Federal e membro da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões.