“Amor não é virtual. Nunca. Amor é real. Eu sinto. É meu. Virtual é a paquera, o namoro, até o sexo. Se é pela internet, é virtual. Mas o amor é real.” (Mônica Raouf El Bayeh)
 
A ciência jurídica não pode preterir os fatos sociais e, em especial, a realidade das famílias. Historicamente no nosso país e no mundo pessoas hetero ou homossexuais optaram por viverem juntas sem qualquer formalidade como a exigida para o casamento. Há dados que indicam que na Grécia antiga, a união entre homens e mulheres sem ser pelo casamento não seria condenável. Aspásia, por exemplo, foi uma pensadora grega que foi amante e parceira do estadista Péricles com o qual teve um filho, mas há relatos que ela teria sido concubina do filósofo Sócrates1.
 
Na França, no final do século XIX, ocorreram pedidos judiciais de mulheres que exigiam a partilha de bens adquiridos durante a constância de uma união informal, com base na teoria do enriquecimento ilícito.2.
 
No direito romano, e também no nosso contexto histórico do século XIX e início do século XX, a união informal entre homem e mulher era considerada inferior e era denominada: concubinato. Este termo significava dizer que a união entre esses sujeitos não foi feita pelo casamento e, por isso, não produziria efeitos jurídicos no campo do Direito das Famílias, mas viável no Direito das Obrigações por ser uma “sociedade de fato”.
 
Diante desse cenário, são inegáveis as nocivas violações (duradouras) de valores consagrados como a autonomia da vontade, igualdade das pessoas, liberdade, além da dignidade da pessoa humana.
 
Com isso, o reclamo de proteção jurídica para essas relações afetivas fez com que o Judiciário fosse provocado e, por ele, reconhecido direitos que, por lei, não teriam. O STF, antes mesmo da CF/88, editou duas súmulas que até hoje oferecem suporte a casais em união estável:
 
Súmula 380: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”
 
Súmula 382: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato.”
 
Com esse entendimento da Corte Superior, vários outros direitos antes só reconhecidos por pessoas ligadas pelo casamento foram reconhecidos a casais em união não formal pelos Tribunais dos Estados, o que abriu espaço para legislações extravagantes virem a ser inseridas no nosso ordenamento jurídico, destacando-se: uso do patronímico pela companheira (lei 6.015/73), reconhecimento de filho extraconjugal com a Lei do Divórcio (lei 6.515/77), pensão para companheira de ex-combatente (lei 4.297/63), dentre outros.
 
A Constituição de 1988 consolidou a união estável como família e em seu artigo 226 estabelece especial proteção do Estado à família com vistas a promover a dignidade da pessoa o que inclui as uniões livres (art. 226, § 3º CF).
 
Proclamou-se, naquele momento, o status familae da união estável, convertendo-a de fato social em fato jurídico, como entidade familiar que deveria ser.
 
Após a Constituição, duas leis especiais (leis 8.971/94 e 9.278/96) foram editadas disciplinaram precariamente um “estatuto” da união estável. Ao final, o Código Civil de 2002 acabou recepcionando e dispondo sobre a união estável (arts. 1.723 a 1.727), absorvendo algumas orientações doutrinárias e jurisprudenciais, revogando as referidas leis.
 
Destaca-se, por oportuno, que o Código Civil não conseguiu consagrar, por completo, que a compreensão fundamental da união estável deve advir dos comandos constitucionais. O núcleo familiar formado por duas pessoas livres, mesmo não sendo um homem e uma mulher, merecerá proteção do Estado e garantia da dignidade de todos os seus membros3. Por esta razão, ao longo de todos esses anos (pós entrada em vigor do Código Civil 2002), os Tribunais e a doutrina civilista, em especial, encarregaram-se de defender e estender as garantias conferidas às pessoas casadas também àqueles que viviam em união estável4, incluindo os homossexuais5.
 
Nesse passo, apesar de inúmeras “equiparações” da união estável ao casamento, aquela não tem o mesmo status familae deste6, porém, não há dúvida de que o objetivo da união estável é o de constituir família (intuitu familiae) somado a alguns elementos caracterizadores estabelecidos em lei (arts. 1.723 a 1.727 CC) para ser reconhecida como entidade familiar.
 
Com efeito, um bom critério para a comprovação da união estável é a teoria da primazia da realidade7 muito utilizada na órbita das relações de trabalho, mas que ganha apoio no direito das famílias para evidenciar o início da união estável, já que ela pode ser constituída desprovida de qualquer formalidade jurídica. Esta teoria destaca que o que se vê na realidade é o que acontece de forma efetiva. Assim, a verdade dos fatos impera sobre qualquer formalidade.
 
Assim, para se reconhecer uma união estável de forma real e efetiva deve-se aferir a verdade dos fatos, ou seja, os acontecimentos no dia a dia, de como as pessoas vivem, com publicidade da relação perante a sociedade e familiares (more uxoria), comunhão de vida, esforço e afeto.
 
A escritura de união estável ou mesmo um documento particular que a ateste possui caráter meramente declaratório e não constitutivo. Isso quer dizer que se a união estável existir, seu registro apenas refletirá um fato anterior. Já se não houver, verdadeiramente, uma união estável, o registro não passará de uma declaração falsa, pois não servirá para criá-la.
 
Paulo Lôbo8 aduz que a união estável tem origem no elo efetivo dos companheiros, sendo ato-fato jurídico que não exige qualquer manifestação ou declaração de vontade para produzir efeitos, bastando-lhe a existência “fática para que haja a incidência das normas constitucionais e legais cogentes e supletivas para a conversão da relação fática em jurídica”.
 
Realmente, nem mesmo a convivência sob o mesmo teto é requisito para comprovar a união estável como consagrado na súmula 382 do STF9. Nem a própria Constituição e o Código Civil tratam desta exigência. A realidade do casal, a verdade da união intuitu familiae, é a dos fatos concretos, aceitos, autênticos e que legitimam ostentarem ser companheiros erga omnes.
 
Se o casal opta por formalizar escritura pública de união estável ou um contrato escrito, apenas facilitará a evidência de vida em comum. Entretanto, servirá apenas de prova juris tantum porque as relações fáticas anteriores a qualquer documento escrito podem demonstrar que a existência pré-existente de uma entidade familiar.
 
Parece não haver dúvida, para reconhecer união estável deve-se buscar a presença de companheirismo, ligação permanente, aparência pública de casamento. A união estável não se estabelece por um único ato, mas com o tempo e este também não exige prazo mínimo para configurar a estabilidade. O que importa é que nessa convivência haja: publicidade, afeição recíproca, comunhão de interesses, conjunção de esforços em benefício do casal, mesmo que sem filhos e sem coabitação.
 
Diante dessas considerações, vê-se que, pelas constantes alterações sociais, a internet tem se tornado mais do que um meio de comunicação entre as pessoas. Os relacionamentos afetivos virtuais se tornaram uma realidade, pois a internet criou uma sociedade sem fronteiras, alterando o modelo social vigente.
 
O ambiente virtual possibilitou às pessoas se relacionarem a quilômetros de distância no campo físico, mas com notável proximidade e ligação emocional e até mesmo econômica. E mais. Esse contato virtual que passa a fazer parte da vida cotidiana das pessoas possibilita o íntimo envolvimento entre elas e uma comunhão de vida, tal como, ou até maior, do que se houvesse a proximidade física.
 
O ordenamento jurídico brasileiro já reconheceu o envolvimento virtual, mas assim como na fase conceptória da união estável, tal forma de relacionamento ainda não é visto como um relacionamento familiar.
 
Veja-se, a jurisprudência e a doutrina tratam do relacionamento virtual no âmbito da infidelidade, isto é, se preocupam com o assunto quando uma das partes envolvida for casada10. Entretanto, ainda não há notícias do reconhecimento de união estável virtual entre duas pessoas desimpedidas.
 
A infidelidade virtual pode ser compreendida pelo “comportamento conjugal intencional no sentido de congresso sexual com estranho, exaurindo nos atos preparatórios ou circundantes, como também se inclui o deslize envolto a sexualidade, porém despido de qualquer contato carnal, representando a infidelidade moral ou espiritual”.11
 
Ora, se a relação virtual é capaz de gerar uma traição (porque a pessoa é casada ou mantém união estável), também será capaz de gerar um relacionamento familiar como o da união estável, desde que seus elementos estejam comprovados.
 
De fato, o afeto e o relacionamento humano não têm fronteiras e podem vir a constituir uma família quando as pessoas se relacionarem com publicidade, afeição recíproca, comunhão de interesses, conjunção de esforços em benefício do casal, características próprias da união estável, ou seja, relação more uxório, isto é, se portando como casados nas redes sociais e o mais importante, demonstrando companheirismo e vínculo afetivo.
 
Os relacionamentos virtuais rompem o padrão social comum dos relacionamentos presenciais, mas podem trazer os mesmos vínculos jurídicos apresentados em uma relação pessoal/física, levando a evidenciar uma união estável, desde que comprovados os elementos fáticos.
 
Assim, a relação interpessoal, pela internet, possibilita o reconhecimento de uma união estável com os mesmos objetivos das relações interpessoais com presença física. Sendo eles vínculos duradouros e profundos12, levam a caracterizar uma união estável, ainda que virtual, e que pode ser reconhecida pelo ordenamento jurídico para que possa gerar os devidos efeitos legais.
 
Por derradeiro, reforça-se. A verdade da união intuitu familiae é a dos fatos concretos, aceitos, autênticos e que legitimam ostentarem ser companheiros erga omnes, ainda que virtualmente.
 
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1 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 13.
 
2 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da união estável. In: Direito de Família e o novo Código Civil. Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira (coords). Belo Horizonte:Del Rey, 2005, p. 224.
 
3 Em decisão das ADINs 4.277 e ADPC 132, em 2011, o ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF.
 
4 Alguns efeitos jurídicos para os conviventes equiparados ao casamento: regime de bens, alimentos, relação de parentesco natural, presunção de paternidade, planos de saúde, seguro de vida, pensão pós morte, regras do direito sucessório com aplicação do art. 1829 CC.
 
5 V. Provimento 37/14 CNJ: Dispõe sobre o registro de união estável, no Livro “E”, por Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais sendo possível a conversão em casamento, também, nas relações homoafetivas . Provimento 175/13 CNJ: “Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.
 
6 Não há equiparação da união estável com o casamento no que tange: a) formalidades legais para sua constituição; b) os requisitos legais para alteração de regime só há para casados (art. 1.639 §2º CC), c) pacto nupcial é necessário, apenas, para casamento quando os cônjuges desejam firmar regime da separação total de bens, ou comunhão total ou participação final dos aquestos. Já a união estável não será necessário, ou seja, pode ser formalizado o regime de bens por Escritura ou por contrato escrito; d) é necessário provas para reconhecer União Estável e assim estabelecer o início do Regime de Bens, já o casamento prova-se, simplesmente, com a certidão de casamento e o regime de bens só vale a partir do casamento; e) não há incidência das regras do divórcio, da separação ou anulação, mas sim regras para Dissolução de União Estável (art. 731 CPC); f) não existe estado civil de companheiro, por enquanto e, g) a exigência de outorga uxória (art. 1.647 CC) deverá ser feita análise da publicidade efetiva da união estável em face de terceiro.
 
7 Em qualquer dessas situações os fatos prevalecem sobre as formas. Não é necessário analisar ou responsabilizar cada uma das partes. O que importa são os fatos. Demonstrados os fatos eles não podem ser eliminados por documentos ou formalidades.
 
8 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. 3ªed., São Paulo:Saraiva, 2010, p. 169.
 
9 Súmula 382 STF: A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato.
 
10 “Direito Civil – Ação de indenização – Dano moral – Descumprimento dos deveres conjugais – Infidelidade – Sexo virtual (internet) – Comentários difamatórios – Ofensa à honra subjetiva do cônjuge traído – Dever de indenizar – Exegese dos arts.186 e 1.566 do Código Civil de 2002 – Pedido julgado procedente (TJ/DF, Sentença proferida pelo Juiz Jansen Fialho de Almeida. 21/5/08).
 
11 CAHILI, Yussef Said. Separações Conjugais e Divórcio. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.345
 
12 BALLONE GJ, MOURA EC (2003) – Compulsão à Internet, Mito ou Realidade, in. PsiqWeb, Internet. Disponível clicando aqui. Acesso em: 29 de Jul. 2020.
 
*Isa Gabriela de Almeida Stefano é advogada do escritório Fogaça, Moreti Advogados. Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Professora de Direito Civil e Direito Constitucional (em cursos de graduação e pós-graduação). Autora de obras jurídicas.
 
*Raquel Valési é doutora e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Pós-graduada em Direito Processual Civil. Professora de Direito Civil na Universidade São Judas. Professora de cursos de extensão da ESA/SP.