Encerra-se em 19 de agosto de 2020 o prazo para apreciação, pelo Presidente da República, do Projeto de Lei de Conversão da MP 944, de 3 de abril de 2020, remetido à sanção, o qual “institui o Programa Emergencial de Suporte a Empregos; altera as leis .430, de 27 de dezembro de 1996, e 13.999, de 18 de maio de 2020; e dá outras providências”.
A MP 944, de 3 de abril de 2020, teve como principal objetivo viabilizar operações de crédito com empresários, sociedades empresárias e sociedades cooperativas, com a finalidade de pagamento de folha salarial de seus empregados, por meio de programa destinado às pessoas com receita bruta anual entre R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
É notório que diversos setores da atividade econômica foram gravemente afetados pela emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19). Assim, o acesso ao crédito neste momento revela-se fundamental para a preservação das empresas e dos empregos, beneficiando a economia do país e o bem-estar de seus cidadãos.
A concessão de crédito, no entanto, depende de uma série de outros fatores que são sopesados no momento de sua solicitação, especialmente a capacidade de adimplemento do tomador e a existência de meios que mitiguem eventual prejuízo decorrente da operação de crédito.
Em um período tão conturbado como o atualmente vivido por nossa sociedade, em que as perspectivas relativas a diversos setores econômicos são sombrias, fornecedores tendem a exigir pagamento antecipado ou garantias para venda ou prestação de serviços de forma faturada. Por sua vez, instituições financeiras agem de forma mais cautelosa, negando acesso ao crédito ou estipulando taxas compatíveis com o maior risco envolvido na operação.
Nesse contexto, o Projeto de Lei de Conversão da MP 944/2020 trouxe em seu bojo uma importante inovação que deve contribuir com a retomada da atividade econômica: a possibilidade de utilização do protesto notarial para registro como perda do crédito na apuração do lucro real da pessoa jurídica.
Com efeito, o art. 18 desse Projeto prevê o acréscimo à lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, da seguinte disposição:
“Art. 9º-A Na hipótese de inadimplência do débito, as exigências de judicialização de que tratam a alínea c do inciso II e a alínea b do inciso III do § 7º do art. 9º e o art. 11 desta Lei poderão ser substituídas pelo instrumento de que trata a Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, e os credores deverão arcar, nesse caso, com o pagamento antecipado de taxas, de emolumentos, de acréscimos legais e de demais despesas por ocasião da protocolização e dos demais atos.”
Cumpre ressaltar que atualmente o registro, como perda, de valores mais expressivos depende da propositura de ação judicial. Nesse sentido, as disposições da lei 9.430/1996:
“Art. 9º As perdas no recebimento de créditos decorrentes das atividades da pessoa jurídica poderão ser deduzidas como despesas, para determinação do lucro real, observado o disposto neste artigo.
[…]
§ 7º Para os contratos inadimplidos a partir da data de publicação da Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014, poderão ser registrados como perda os créditos:
[…]
II – sem garantia, de valor:
[…]
c) superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais), vencidos há mais de um ano, desde que iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento;
III – com garantia, vencidos há mais de dois anos, de valor:
[…]
b) superior a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), desde que iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento ou o arresto das garantias;
[…]
Art. 11. Após dois meses do vencimento do crédito, sem que tenha havido o seu recebimento, a pessoa jurídica credora poderá excluir do lucro líquido, para determinação do lucro real, o valor dos encargos financeiros incidentes sobre o crédito, contabilizado como receita, auferido a partir do prazo definido neste artigo.
§ 1º Ressalvadas as hipóteses das alíneas a e b do inciso II do § 1º do art. 9º, das alíneas a e b do inciso II do § 7º do art. 9º e da alínea a do inciso III do § 7º do art. 9º, o disposto neste artigo somente se aplica quando a pessoa jurídica houver tomado as providências de caráter judicial necessárias ao recebimento do crédito”.
Deve-se ter em vista que muitas dessas ações judiciais são propostas apenas para permitir a dedução tributária da perda, sem que exista qualquer perspectiva quanto ao recebimento do crédito, já que relativas a dívidas contraídas por empresas com atividades encerradas ou com ativos de diminuto valor, situações que não justificam a movimentação desnecessária da máquina judiciária.
Nesse cenário, permitir que as empresas optem pela via judicial apenas quando seja vislumbrada alguma possibilidade de sucesso das medidas, representará um inegável avanço. A legislação processual civil estabelece a regra de que o devedor responde com todos os seus bens para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei1. Mas em inúmeros casos o devedor não possui bens passíveis de penhora, sua localização é ignorada ou suas atividades foram encerradas de forma irregular, situações de pouca efetividade do processo judicial.
Por outro lado, ao promover o protesto do título ou documento de dívida, o credor trilha um caminho alternativo, mais célere e menos oneroso, em um âmbito não litigioso e com a concreta possibilidade de obter a satisfação de seu crédito, no tríduo legal2 ou posteriormente. E, mesmo quando o devedor se queda inerte, o protesto inverte a iniciativa: ao invés do credor buscar a satisfação de seu direito, é o devedor que eventualmente busca a quitação ou a renegociação do débito, com vistas ao cancelamento do protesto.
O protesto notarial, cabe salientar, é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida3. Como ato de incumbência de um tabelião, profissional do Direito dotado de fé pública4, é revestido da autenticidade e da publicidade inerente aos serviços notariais5. Sua autenticidade decorre da investidura do titular após aprovação em concurso público de provas e títulos, da minuciosa disciplina legal e normativa da atividade e da permanente fiscalização pelo Poder Judiciário6.
Em relação à publicidade, aliás, é importante consignar que o protesto resguarda não apenas o interesse particular do credor, mas propicia conhecimento público da situação de inadimplência, já que compete ao tabelião de protesto, “na tutela dos interesses públicos” e privados, “prestar informações e fornecer certidões relativas a todos os atos praticados”, na forma prevista na lei 9.492/19977.
A publicidade do protesto não se restringe à tradicional certidão expedida a qualquer interessado8, pelo período mínimo de 5 (cinco) anos9, mas decorre também do fornecimento de informações às entidades de proteção ao crédito10. Além disso, a central nacional de serviços eletrônicos compartilhados dos tabeliães de protesto disponibiliza consulta gratuita quanto a devedores inadimplentes e aos protestos realizados11, serviço prático, confiável e cada vez mais utilizado pela população.
Tais características do protesto notarial têm, ao longo da história, conferido elevado grau de credibilidade a esse ato probatório12. Para os Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, o respaldo institucional dos tabelionatos de protesto representará um importante ponto de apoio para o exercício das atividades de fiscalização, especialmente tendo em vista a possibilidade de pronta verificação da regularidade da escrituração fiscal da dedução13.
Embora as origens do protesto remontem à letra de câmbio, o fato é que em nosso país o instituto passou a ser utilizado no âmbito civil14 e posteriormente em outros ramos do Direito, incluindo o Tributário, com a expressa previsão legal de protesto das certidões da dívida ativa15, procedimento cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo Colendo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.13516. Neste particular, cumpre apontar que o instituto tem permitido a recuperação de créditos, incrementando o índice de arrecadação de créditos de menor valor17 e viabilizando a concentração de esforços, no âmbito judicial, para as ações versando sobre valores mais expressivos e casos com maior possibilidade de êxito.
Cabe observar que a nova medida legislativa está em consonância com um movimento de extrajudicialização de procedimentos, fenômeno verificado ao longo de muitos séculos18, mas que nos últimos anos tem se intensificado, com a previsão de inventários e divórcios por escritura pública, da usucapião extrajudicial e da simplificação da retificação de registro civil, dentre outras medidas.
Nessa mesma direção, o Código de Processo Civil previu que o Estado promoverá a solução consensual dos conflitos, sempre que possível, e consagrou expressamente o estímulo à conciliação, à mediação e a outros métodos de solução consensual de conflitos (art. 3º, § 2º e § 3º). De fato, a atuação do Poder Judiciário deve ser reservada aos casos em que outros mecanismos alternativos não tenham permitido aos interessados a satisfação de seu direito ou para as hipóteses em que a intervenção judicial seja necessária e apta a conduzir ao resultado almejado.
Nesse contexto, uma vez sancionado o Projeto, as empresas sujeitas ao regime de tributação por lucro real poderão, a partir da avaliação das circunstâncias, definir pela conveniência ou não da propositura ou do prosseguimento da demanda judicial, evitando a desnecessária movimentação da máquina judiciária. E a diminuição da sobrecarga conferirá maior agilidade à tramitação dos demais feitos. Conclui-se, assim, que a mudança legislativa deve beneficiar não apenas as empresas sujeitas a essa forma de tributação, mas toda a sociedade brasileira, especialmente nesse momento tão triste de nossa história.
*Reinaldo Velloso dos Santos é tabelião de Protesto em Campinas, mestre e doutorando em Direito Comercial pela USP e coordenador do Grupo de Pesquisa e Produção Científica “Tabelionato de Protesto” da Escola Nacional de Notários e Registradores – ENNOR.