As mudanças no modo de conviver no último século podem servir como ponto de partida para as reflexões propostas no título. Estamos vivendo mais. Com a longevidade, avós conseguem conviver com seus netos, terão oportunidade de conhecer seus bisnetos e se manterão no mercado de trabalho por muito mais tempo do que as gerações anteriores. Vivendo mais, passamos a ter outras necessidades, especialmente no campo da saúde e qualidade de vida, pois o acesso aos avanços tecnológicos da vida moderna e as recentes descobertas da medicina têm seu preço. O roteiro por muitos imaginado: concluir estudos, casar, ter filhos, aposentar-se (por poucos anos) antes de morrer, não pode ser pensado como a última opção que deve ser tutelada pelo Estado, diante da atual pluralidade de arranjos familiares, que reflete um momento histórico no qual as pessoas poderão ter vários relacionamentos ao longo de suas vidas, constituindo um retrato familiar muito mais próximo de um mosaico do que de uma vetusta pintura a óleo que costumava imortalizar a imagem da família patriarcal tradicional.
Um novo tempo de convivência e necessidades, aliado a um momento em que a incerteza e a proximidade da morte nunca estiveram tão próximas, ante a pandemia do coronavírus, parece propício a um repensar sobre o exercício da autonomia no direito sucessório, matéria que, pelo menos do ponto de vista legislativo, experimentou poucos avanços no Código Civil vigente, quando comparado com o seu antecessor. Será que sob os auspícios de um texto constitucional que consagra a igualdade material, através do qual se consolidou um marco legislativo que reconhece e tutela a vulnerabilidade de diversos grupos de pessoas, ainda devemos interpretar o direito das sucessões sob o ponto de vista da igualdade formal entre os herdeiros?
A pequena digressão acima serviu para apresentar o objetivo deste texto: expor os diferentes pontos de vista em matéria de “contratualização” das relações sucessórias. Dito de outro modo: quais os limites e possibilidades para o exercício da autonomia privada no campo do direito das sucessões? No atual estágio de nosso ordenamento jurídico, seriam admitidas cláusulas contratuais estabelecendo, por exemplo, “pactos de não suceder”, vale dizer, renúncia antecipada a direitos sucessórios relativos à sociedade conjugal ou convivencial, em caráter irrevogável?
Num momento em que se incentivam os mecanismos de desjudicialização, com o fortalecimento dos métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias, permitindo ainda a solução de questões sucessórias diretamente nos cartórios, não teria chegado o momento de se pensar num direito sucessório mínimo, sujeito à interferência estatal apenas quando estritamente necessário para a proteção de vulneráveis, com amplo espaço para que o titular dos bens decida qual o destino que pretende conferir ao seu patrimônio, quando aberta a sua sucessão?
Talvez, caro leitor, você esteja se perguntando: mas não é exatamente isso o que acontece atualmente, com as previsões do CC/02? Quem deseja uma solução diferente das regras dispositivas da sucessão sem testamento pode optar por uma das modalidades de fazer eficaz a sua vontade para depois da morte…
Mas quando se constata que arranjos patrimoniais para a sociedade conjugal, como a adoção do regime da separação convencional de bens, só geram efeitos em vida, criando um cenário completamente diferente no momento da sucessão de um dos cônjuges, fica mais fácil perceber que o espaço de autonomia privada no campo sucessório não é tão amplo quando parece.
No decorrer dos últimos anos, um movimento doutrinário fez despertar o debate em torno dos institutos do direito das sucessões. Em alguns ordenamentos jurídicos, a discussão tem girado em torno da liberdade de testar, aproximando também nesse aspecto os dois grandes sistemas do direito contemporâneo, o da Common Law e o romano-germânico ou da Civil Law, numa demonstração de que ambos dialogam em busca de segurança jurídica com um maior equilíbrio entre a proteção dos herdeiros necessários e a ampliação da autonomia do autor da herança quanto à destinação dos seus bens após a morte.
No Brasil, para além da temática concernente à sucessão testamentária e, por consequência, à possibilidade de flexibilização ou relativização da herança legítima, o debate assumiu dimensão mais larga para abranger uma série de institutos que se abrigam sob o espectro do que veio a se apresentar como “planejamento sucessório”. Mais do que um simples pensar sobre como se dará a sucessão no estreito campo da divisão dos bens, o planejamento sucessório trouxe da experiência do direito empresarial, onde acontece com frequência, a práxis relacionada a uma intrincada rede de atos jurídicos que visam tornar mais rápida, mais fácil e dotada de maior efetividade a sucessão da pessoa física.
É possível afirmar que a discussão sobre o tema tem trazido muitas contribuições, em especial por demonstrar que esse planejamento não está voltado apenas a grandes patrimônios. Pelo contrário, é cada vez mais comum a tomada de decisões de pessoas que podem ser incluídas “na classe médica”, sobre situações jurídicas que se projetam para o futuro, para o tempo da morte do autor da herança, mas adotadas ainda em vida. Situações as mais diversas e muitas vezes de pouca complexidade, como as que visam apenas à diminuição de custos pela quantidade de atos jurídicos a serem praticados e de impostos a serem recolhidos.
O planejamento sucessório tem no testamento um dos seus principais instrumentos, senão o mais importante. Entretanto, inúmeras são as possibilidades de arranjos para essa programação. Mais do que trazer soluções para problemas práticos enfrentados no dia a dia do direito das sucessões, esse movimento vem contribuindo com a releitura de institutos consagrados numa legislação rígida e desenhada para um momento histórico cujas bases socioeconômicas mudaram por completo. A perenidade dos institutos jurídicos não significa o seu engessamento. Faz-se necessário, porém, um repensar considerando as transformações e as contingências que o tempo histórico acarreta.
Conforme apontado acima, com poucas modificações, o direito das sucessões no Código Civil de 2002 é voltado não só para uma tipologia familiar que já não é a única; porém, mais que isso, carrega o forte conteúdo moral que predominava na sociedade ainda no início do século XX.
De fato, embora fundado na proteção familiar, o fenômeno sucessório se volta à manutenção do patrimônio concentrado em um determinado grupo de herdeiros e, mesmo entre estes, com pouca mobilidade. Como se os “desvios comportamentais” tão combatidos há cem anos, como a ruptura da sociedade conjugal, a formação de novos vínculos familiares e a própria disposição do patrimônio, representassem uma ameaça à pré-falada concentração de riqueza.
Não à toa vige até hoje dispositivo que obriga o maior de setenta anos a adotar o regime da separação de bens. Trata-se do inciso II do art. 1641, que até 2010, com o advento da lei 12.344, limitava em sessenta anos a idade para a pessoa escolher o regime de bens sob o qual deseja submeter seu casamento, seu patrimônio, incapacitando alguém que ainda se encontra em idade produtiva, na maioria das vezes alocado no mercado de trabalho, sem justificativa jurídica para tal.
Nesse cenário, onde a mobilidade do patrimônio pode ser entendida como risco à sua integralidade para efeitos sucessórios, vários são os dispositivos do Código Civil que fazem interlocução com o Livro das Sucessões e necessitam, ao menos, ser debatidos.
É o caso do art. 426, o qual dispõe que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. Entre os autores que vêm se dedicando ao tema da “contratualização do direito das sucessões”, Mário Delgado destaca seu entendimento sobre a possibilidade de celebração de pactos sucessórios, forte na disposição prevista no art. 1.639 do Código Civil, segundo o qual é lícito aos nubentes estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
E a outros dispositivos do Código Civil que, na opinião do mesmo autor, concretizam a autonomia patrimonial, soma-se o uso de soluções extrajudiciais em litígios sucessórios, a exemplo da inserção de cláusula compromissória em testamentos e escrituras de partilha, bem como a crescente utilização de compromisso arbitral entre os herdeiros em conflito.
Aliado a outros doutrinadores, Delgado provoca uma reflexão sobre a atualidade das regras que proíbem a celebração de pactos sucessórios, em especial quando inseridos em pactos antenupciais e contratos de convivência, chamando a atenção para a necessidade de ampliação da autonomia no direito das sucessões, possibilitando-se que seja contornada ou mesmo afastada a vedação legal à disposição contratual prevista no mencionado art. 426 do Código Civil. Indo além, adverte que inexiste norma expressa que proíba a celebração de todo e qualquer tipo de pacto sucessório.
As modalidades mais referenciadas pela doutrina nacional seriam a do pacto aquisitivo ou designativo, na qual se institui herdeiro ou legatário através de contrato, distinguindo-se do testamento pelo caráter irrevogável das disposições contratuais; do pacto renunciativo ou “pacto de não suceder”, em que é permitido ao herdeiro renunciar à herança do outro pactuante; e a do pacto dispositivo, através da qual é permitido pactuar a sucessão de um terceiro ainda não aberta, a exemplo de uma cessão de direitos hereditários antes da morte do autor da herança.
A interpretação do mencionado art. 426 deveria alcançar apenas o pacto dispositivo, já que as outras duas modalidades não constituem, a rigor, contratos que tenham por objeto herança de pessoa viva. Na Europa continental, Alemanha e França permitem a celebração do pacto renunciativo e, recentemente (2018), Portugal passou a permitir a renúncia a direito sucessório em pacto antenupcial, mais precisamente da condição de herdeiro necessário.
Na visão de Delgado, há diversos pactos sucessórios permitidos no Brasil, aos quais, por um jogo de palavras, é retirada a incidência da norma, como o caso da doação causa mortis, que é exatamente um pacto designativo no qual o donatário passa a ser receptor de um direito que adquirirá somente após a morte do doador. A partilha em vida também poderia ser inserida na categoria dos pactos sucessórios. E se essa restrição fosse tão ampla, haveria de se reconhecer a invalidade dos modelos citados como exemplo. “O que não pode ser objeto de contrato é a herança de pessoa viva e não todo e qualquer direito sucessório”.
Entre os inúmeros doutrinadores infensos à chamada contratualização do direito sucessório encontra-se o professor João Aguirre, o qual defende que a interpretação do art. 426 do Código Civil deve ser mesmo restritiva, dado que o próprio sistema, o ordenamento jurídico brasileiro, está direcionado a essa restrição da ampla liberdade de pactuação, em virtude da tutela dos interesses daqueles sujeitos de direito que o legislador elegeu para objeto de proteção.
Aguirre não reconhece espaço no ordenamento brasileiro para que se possa renunciar a direito sucessório, o que somente poderia acontecer por intermédio de autorização legal expressa mediante alteração legislativa, como ocorreu em Portugal e como previsto em outros sistemas. Assim, o art. 426 proíbe tanto o pacto dispositivo como o renunciativo, havendo norma expressa no próprio Código Civil no sentido de restringir a celebração de pactos sucessórios, além do pacto dispositivo; exemplifica com os arts. 1.808, 1.863 e 1.898, asseverando igualmente que a distinção entre direito sucessório e herança não foi a opção dos Códigos de 1916 e 2002.
O estado da arte desse debate está bem delimitado em arquivo disponível na plataforma digital Youtube, contendo reunião do grupo de pesquisas CONREP-Constitucionalização das Relações Privadas, realizada no dia 3 de julho de 2020 com o tema Contratualização do Direito das Famílias e Sucessões e a participação, como expositores, de ambos os professores aqui mencionados.
Para além da posição adotada neste trabalho, a qual, adianta-se, segue o entendimento pela defesa da necessidade de alteração legislativa para a livre pactuação de direitos sucessórios, dos quais a herança é espécie, o debate demonstra o quão rígido é o sistema no que diz respeito à mobilidade patrimonial no direito das sucessões e também no direito das famílias.
Os argumentos em defesa de um ou outro posicionamento no debate entre Mário Delgado e João Aguirre se complementam e, dados os seus fundamentos, enriquecem sobremaneira a discussão. Porém, o que se extrai de conclusão – e aqui se destaca o reforço argumentativo trazido pelo primeiro ao referir-se à carga moral que contamina a interpretação e aplicação da norma – é que, a exemplo de Alemanha e França, que dispõem da matéria em seus Códigos, e da alteração levada a efeito em Portugal, necessária será a autorização expressa para a celebração de pactos sucessórios no direito brasileiro, já que à proibição do art. 426 do Código Civil somam-se outros dispositivos voltados a restringi-los.
Observe-se que a mudança no direito das sucessões com a releitura de seus institutos, se não é uma opinião unânime, tampouco enfrenta resistência. É um movimento sem volta. A questão a destacar é que a doutrina tem o importante papel de debater e apresentar opções legislativas que se coadunem com a ordem constitucional e atendam à solução das mais diversas questões oriundas da diversidade de situações jurídicas surgidas nos últimos cem anos.
Não se trata de lacunas a exigir do aplicador, por exemplo, o uso da metodologia civil constitucional como forma de validar dispositivo do Código Civil que admite interpretação mais dúctil à míngua de outras normas do sistema que tenham por foco a restrição. Pelo contrário, sobram dispositivos infraconstitucionais a indicar que a interpretação restritiva do art. 426 se encontra concorde com o ordenamento vigente. Por isso a alteração legislativa imporá maior segurança jurídica ao sistema. Daí a importância do debate em torno dos limites e possibilidades da autonomia privada no direito sucessório.