O TJ/SP negou um provimento de recurso de apelação, com pedido de antecipação de tutela, de acordo com o voto do Relator do processo, o corregedor geral da justiça Ricardo Anafe. Leia a íntegra do acórdão abaixo:
“Apelação Cível nº 1006929-86.2019.8.26.0577
Espécie: APELAÇÃO
Número: 1006929-86.2019.8.26.0577
Comarca: SÃO JOSÉ DOS CAMPOS
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Apelação Cível nº 1006929-86.2019.8.26.0577
Registro: 2020.0000681580
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1006929-86.2019.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que é apelante M. L. R. O., é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).
São Paulo, 13 de agosto de 2020.
RICARDO ANAFE
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Apelação Cível nº 1006929-86.2019.8.26.0577
Apelante: M. L. R. O.
Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de São José dos Campos
VOTO Nº 31.185
Registro de Imóveis – Dúvida – Antecipação da Tutela Recursal – Indeferimento – Óbito da titular de domínio – Recebimento de imóveis pelo companheiro por sucessão hereditária – Possibilidade – Escritura de inventário e adjudicação lavrada sem a participação dos demais interessados na herança – Óbice ao registro configurado – Dúvida procedente – Nega-se provimento ao recurso interposto.
1. Trata-se de recurso de apelação, com pedido de antecipação de tutela, interposto por M. L. R. O. contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São José dos Campos/SP, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve os óbices apresentados para registro de escritura pública de inventário e adjudicação, lavrada em virtude do falecimento de A. G. de A., tendo por objeto, dentre outros, os imóveis matriculados sob nos 57.873 e 92.829 junto àquela serventia imobiliária.
Alega a apelante, em síntese, que a falecida A. G. de A. e seu companheiro, W. J. N. O., viveram em união estável por mais de quarenta anos e não tiveram filhos. Aduz que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, afastando a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros e determinando a aplicação, em ambos os casos, da regra trazida pelo art. 1.829 do Código Civil. Assim, na falta de descendentes e ascendentes, como no caso concreto, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança, sem necessidade da participação dos colaterais da de cujus no inventário. Aduz que os documentos apresentados comprovam a alegada união estável, razão pela qual a negativa de registro não merece subsistir (fl. 147/154).
A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fl. 179/180).
É o relatório.
2. Ex ante, há que ser indeferida a pretendida antecipação de tutela recursal. Isso porque, instaurada a dúvida registrária, o prazo da prenotação é prorrogado até solução final do procedimento, sendo inadmissível a concessão de tutela provisória, na forma pretendida pela apelante, em razão do disposto no art. 203 da Lei nº 6.015/73 que condiciona o registro do título ao trânsito em julgado da decisão:
“Art. 203 – Transitada em julgado a decisão da dúvida, proceder-se-á do seguinte modo:
I – se for julgada procedente, os documentos serão restituídos à parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao oficial, para que a consigne no Protocolo e cancele a prenotação;
II – se for julgada improcedente, o interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo”
Desta forma, há manifesta incompatibilidade da antecipação da tutela recursal e o procedimento (processo em fase recursal) de dúvida, implicando na ausência de interesse processual.
Do mérito do recurso.
Com o falecimento de A. G. de A., titular de domínio da parte ideal correspondente a 50% do imóvel matriculado sob nº 57.873 e da totalidade do imóvel matriculado sob nº 92.829 junto ao 1º Oficial de Registro de Imóveis de São José dos Campos/SP, W. J. N. O., na qualidade de companheiro da de cujus, requereu a lavratura de escritura de inventário e adjudicação dos bens em seu favor (fl. 13/19).
Nos termos da Nota de Devolução expedida pela registradora, foi exigida a rerratificação da escritura para que dela passe a constar que a falecida não deixou outros herdeiros, pois o companheiro concorre com os colaterais, nos termos dos arts. 1.790, inciso III, e 1.843 do Código Civil. Também foi exigida a apresentação de certidão ou traslado da escritura de renúncia outorgada por R. C. de A. Marcondes, lavrada em 06 de junho de 2016, para que fosse verificado se houve reconhecimento da união estável, com observância, ainda, da necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor ou não houver consenso de todos os herdeiros, inclusive quanto ao reconhecimento da união estável (fl. 42/44).
O título reingressou na serventia imobiliária acompanhado do traslado da escritura de renúncia, como solicitado.
Contudo, por discordar do outro óbice apresentado, requereu a apresentante a suscitação de dúvida, insistindo na desnecessidade de rerratificação da escritura de inventário e adjudicação, sob a alegação de que é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o disposto no art. 1.829 do Código Civil.
Contudo, os argumentos apresentados pela apelante não convencem.
Não se desconhece a equiparação do companheiro ao cônjuge sobrevivente que, com o advento do novo Código Civil, foi elevado à posição de herdeiro necessário, em concorrência com eventuais descendentes e ascendentes. Com efeito, o art. 1.790 do Código Civil teve sua inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em seu Tema Repetitivo 809, segundo o qual “no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
Ocorre que, independentemente dessa equiparação, o fato é que a união estável deve existir à época da abertura da sucessão para fins de recebimento de herança pelo companheiro supérstite.
Não se trata de discutir, aqui, regras de direito sucessório, mas sim, a possibilidade de registro de escritura de inventário e adjudicação em que não há participação de todos os possíveis herdeiros.
No caso dos autos, na escritura de inventário e adjudicação lavrada consta que a de cujus faleceu no estado civil de solteira, sem deixar ascendentes ou descendentes, mas não conta com a participação dos outros possíveis herdeiros da falecida além de seu companheiro. Por outro lado, na escritura de renúncia aos direitos hereditários outorgada por R. C. de A. M., irmã da falecida, constou que a renunciante possui descendentes (fl. 69/70).
Ora, é incabível presumir que a união estável entre A. e W., não formalizada por escritura pública ou reconhecida por decisão judicial, efetivamente perdurou até o óbito da autora da herança (data da abertura da sucessão), sendo insuficiente, para tanto, os documentos apresentados pela apelante.
Como ensina Euclides de Oliveira: “Da mesma forma como nasce, tipicamente informal, a união estável prescinde de reconhecimento judicial de sua existência ou de sua dissolução para que opere efeitos jurídicos entre os companheiros.
(…)
A união estável, diversamente do que acontece no casamento, não exige procedimento judicial para sua dissolução. (…) a dissolução se dá pelo simples rompimento da vida em comum, sem maiores formalidades”. (in “União Estável – Do concubinato ao casamento. Antes e depois do Código Civil”; Editora Método; 6ª edição; pp. 243/245).
A dissolução da união estável, tanto quanto a sua constituição, também decorre de um fato da vida, qual seja, o fato da cessação da convivência, não exigindo qualquer procedimento ou formalidade. Uma característica essencial da união estável é sua livre dissolubilidade, ao contrário do casamento formal, que somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (Art. 1.571,§ 1° : O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente).
E essa informalidade para a constituição da união estável, assim como para sua dissolução, exige a observância de formas específicas para que certos atos e negócios jurídicos produzam os efeitos que deles se pretende. Assim ocorre, em especial, quanto aos atos e negócios jurídicos que tem como característica a constituição de direitos reais sobre imóveis, que são oponíveis erga omnes por força da publicidade decorrente de seu registro.
Destarte, para o julgamento da dúvida suscitada, devem ser diferenciados os atos e negócios jurídicos relacionados aos direitos da personalidade, cuja oponibilidade em relação a terceiros prescindem de cerimônia e forma prescritas em lei, como ocorre com a constituição de família por meio da união estável, e os atos e negócios jurídicos que demandam publicidade específica por meio de sua inscrição em Registro Público, como ocorre com os direitos reais imobiliários.
O que se pretende, in casu, é por meio do registro de escritura de inventário e adjudicação tornar público o direito de propriedade que foi adquirido pelo companheiro por meio de sucessão hereditária e, então, conferir ao referido direito oponibilidade contra terceiros.
Ora, é sabido que a escritura de inventário e adjudicação não permite o reconhecimento da união estável por declaração unilateral do sobrevivente, nos termos do art. 18 da Resolução nº 35 do CNJ e do item 112 do Capítulo XIV, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, vigente à época:
“112. O companheiro que tenha direito à sucessão é parte, observada a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor ou não houver consenso de todos os herdeiros, inclusive quanto ao reconhecimento da união estável.”
Logo, imprescindível a participação dos outros possíveis herdeiros para o reconhecimento da união estável em escritura de inventário, o que justifica o óbice apresentado pela registradora.
E nem mesmo a escritura de renúncia de direitos hereditários lavrada pela irmã da falecida basta para afastar o direito de eventuais outros herdeiros, certo que a colateral fez renúncia pura e simples, ou seja, abdicativa, o que deixa a critério da lei a destinação do direito do renunciado.
Considerando, pois, que a renunciante possui descendentes, a participação destes no ato lavrado é de rigor.
Daí porque, sem a anuência dos demais interessados na herança, isto é, de todos possíveis herdeiros da falecida, não há como se afastar o óbice ao registro da escritura de inventário e adjudicação qualificada negativamente pela registradora.
3. À vista do exposto, pelo meu voto, NEGO PROVIMENTO ao recurso.
RICARDO ANAFE
Corregedor Geral da Justiça e Relator.”