Introdução
Uma das questões mais tormentosas no âmbito do Direito Notarial e Registral diz respeito à Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Foram diversos os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema no decorrer dos últimos anos.
O estudo desse instituto exige uma breve reflexão sobre a natureza jurídica do Notário e Registrador, a forma como é concedida a titularidade do exercício de tais atividades, para, posteriormente, tratarmos das diversas fases e evoluções das teses sobre a Responsabilidade Civil até a posição atual do Supremo Tribunal Federal.
Convém mencionar que os Notários e Registradores são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado a atribuição de velar pela segurança, validade, eficácia e publicidade dos negócios jurídicos. Em outras palavras, trata-se de agentes públicos, especializados na área de direito privado, encarregados pela segurança preventiva dos atos e negócios jurídicos.
Agentes Públicos, na lição de José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.487)
A atividade notarial e registral está prevista no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil, da seguinte forma:
Assim, observa-se que é uma Delegação com caráter constitucional para a prática de atividades notariais e registrais à serem exercidas em caráter privado. O titular da atividade notarial e registral é um particular, pessoa física, que recebe a delegação do Estado para a prática de certas atividades de natureza pública, titularizadas pelo Estado.
Convém ressaltar aqui, que, ao contrário dos demais delegatários de serviços públicos, concessionários e permissionários, a atividade profissional exercida pelos Notários e Registradores não é material (como as obras e serviços concedidos pelo Estado) e, sim, de natureza jurídica e intelectual, tais como: prestar consultoria, formalizar juridicamente a vontade das partes, autenticar fatos jurídicos, dentre outras (artigo 6º da lei 8935/94).
Para José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.489), os Notários e Registradores são espécies de Particulares em Colaboração com o Poder Público. Uma espécie de agentes públicos que, embora particulares, executam funções especiais que se qualificam como públicas, sempre como resultado do vínculo jurídico que os prende ao Estado.
(…) Apesar de a função caracterizar-se como de natureza privada, sua investidura depende de aprovação em concurso público e sua atuação se submete ao controle do Poder Judiciário, de onde se infere que se trata de regime jurídico híbrido.
No que tange à forma como é concedida a Delegação aos titulares destas atividades, destaca-se o previsto no artigo 236, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil:
São duas as formas de acesso ao exercício dos serviços notariais e de registro: o provimento pode se dar por ingresso ou remoção.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, ambas são modalidades de provimentos originários, e obedecem ao comando constitucional da necessidade de concurso por provas e títulos. Isso porque os serviços em questão, e as funções que lhe são inerentes, não se confundem com cargos públicos. Não são organizados em classes ou carreiras, de tal forma que o concurso de remoção não é uma promoção ou ascensão.
Os denominados Cartórios ou Serventias Extrajudiciais não possuem personalidade jurídica, de forma que todos os atos praticados são imputados ao Delegatário pessoa física e não à estes Órgãos.
Outra importante questão à ser ressaltada é que, como Delegatários de um serviço de natureza pública, os Titulares se submetem a um controle estatal. Esse controle é feito pelo Poder Judiciário, conforme previsão no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil. Tal poder fiscalizatório abrange a elaboração de normas técnicas e regulamentadoras, além da própria correição para análises de cumprimentos das normas legais as quais se submetem.
É mister destacar, ainda, que os Titulares se submetem aos princípios constitucionais referentes à Administração Pública, por serem Agentes Públicos. Nesse diapasão, se submetem aos princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência.
Feita este breve introdução, com objetivo de esclarecer aspectos importantes da atividade notarial e registral como forma de compreensão do objeto do trabalho, passaremos à abordar em seguida sobre a Responsabilidade Civil do Notário e Registrador, com a evolução histórica até chegarmos no posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal.
Da responsabilidade civil dos notários e registradores
Os Notários e Registradores se submetem à lei 8935/1994, chamada pela doutrina de Lei Orgânica dos Notários e Registradores. Esta tem o condão de regulamentar e disciplinar a atividade notarial e registral, tratando também dos direitos e deveres.
O artigo 22 da citada lei, por sua vez, trata da Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Teve sua redação alterada pela lei 13286 de 2015, estabelecendo expressamente o seguinte:
Parágrafo único. Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial.
Já o artigo 23 da mesma lei, assim determina:
Da análise desses dispositivos, percebe-se que o legislador teve a intenção de adotar a responsabilidade subjetiva do Notário e Registrador. Assim, responderiam apenas nas hipóteses de atos ilícitos ou faltas de conduta, praticados pessoalmente ou por seus prepostos. Nesta última hipótese, teriam direito de regresso em face de seus prepostos quando estes tivessem agido com dolo ou culpa.
No que tange à responsabilidade civil, a doutrina de Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.118)
No entanto, este não era o entendimento doutrinário e jurisprudencial à respeito do tema antes da alteração legislativa citada. Antes do advento da lei alteradora 13286/2015, a redação do artigo 22 da lei 8935/94, era a seguinte:
Percebe-se da leitura da norma anterior à nova redação que o legislador não falava em dolo ou culpa do Titular da Serventia. Surgiram, assim, diversas interpretações doutrinárias e jurisprudências ao longo dos anos.
Para Walter Ceneviva (2010, p.152-155), a responsabilidade nesses casos, à época da redação original do citado artigo 22 da lei 8935/1994, era objetiva do Estado. Partia do princípio de que o Supremo Tribunal Federal vinha entendendo que os delegatários seriam servidores públicos “lato sensu” e, que por esta razão a responsabilidade do Estado seria objetiva, em obediência ao disposto no artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Emerge com a afirmação de que a dupla condição de agente público e de atuante em caráter privado suscita a persistência da responsabilidade do Estado pelos danos causados. Cabendo Ação de regresso em face do Titular da Serventia que ocasionou de fato o dano.
Esta também era a posição de Abrão Nelson (1996, p.182-183 e 187):
Da leitura de tais atores renomados e especialistas na matéria, verifica-se que havia uma corrente doutrinária forte no sentido de que era o Estado quem responderia objetivamente, com base no artigo 37, §6º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Tal responsabilização do Estado se dava, baseado na Teoria do Risco Administrativo. Como o Estado tem maior poder e mais prerrogativas do que seus administrados, não seria justo, para esta doutrina que, diante de prejuízos oriundos de um serviço em que é delegado a um particular, mas de titularidade do Estado, tivesse o usuário de um serviço público que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação dos danos. Assim, bastava comprovar o nexo de causalidade entre a conduta praticada e o dano, pra poder responsabilizar diretamente o Estado delegante do serviço.
Ainda no campo doutrinário, se encontrava à época vozes dissonantes deste entendimento. Para Leonardo Brandelli (2016, p.126-133), a responsabilidade seria direta do Registrador e de forma subjetiva, mesmo a época da antiga redação.
Ele parte da idéia de que esta norma é voltada as pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, ao passo que o Registrador é uma pessoa física e, como dito anteriormente, as Serventias extrajudiciais são Órgãos desprovidos de personalidade jurídica.
No entanto, por muitos anos, essa tese defendida por Leonardo Brandelli não foi adotada pela maioria da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais Superiores.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, em diversos julgados, entendeu que, por receber delegação de uma atividade estatal, os Notários e Registradores agiam por sua conta e risco, nos moldes das concessões e permissões. Assim, o Delegatário responderia diretamente pelos danos causados de forma objetiva, ou seja, sem a necessidade de se comprovar culpa ou dolo. Se utilizava do fundamento de que o artigo 22 da lei 8935/1994 era claro ao estabelecer a responsabilidade dos Notários e Oficiais de Registros por danos causados a terceiros, não permitindo a interpretação de que o Estado deveria responder de forma solidária. Caberia ao Ente Delegante a responsabilidade apenas subsidiária, ou seja, só responderia caso o Delegatário não tivesse condições de arcar com o pagamento, havendo, assim, uma espécie de benefício de ordem.
Em um caso específico, o mesmo Superior Tribunal de justiça, no Resp. 1.163.652/PE, com julgamento em 1/6/2010, entendeu que aplicar-se-ia o Código de Defesa do Consumidor nas relações entre os Notários e Registradores e o usuário do serviço público.
Quanto à esta última decisão citada, entretanto, a doutrina majoritária rechaça a possibilidade de aplicação do código consumerista nestas relações. Não se aplicaria porque os serviços notariais e de registro gozam de natureza de serviço público típico, comparável ao serviço de peritos judiciais, sendo os emolumentos forma de remuneração com natureza de tributo, o que, por conseguinte, supostamente, implica refutar a destinação de tais serviços ao mercado de consumo.
Já para o Supremo Tribunal Federal, à época da antiga redação do citado artigo 22 da lei 8935/1994, o entendimento que predominava era também de que o Notário e Registrador tinha a responsabilidade objetiva, pois deviam ser equiparados aos concessionários e permissionários de serviços públicos. No entanto, essa Corte entendia que havia responsabilidade solidária do Estado.
Assim, percebe-se que os Tribunais Superiores eram uníssonos no entendimento de que aqueles profissionais de direito deveriam responder diretamente e de forma objetiva. A divergência entre eles apenas se dava em relação à forma como o Estado deveria responder: de forma solidaria ou subsidiária.
Com o advento da lei 13286, em 2015, que veio a por fim à polêmica da interpretação da citada norma, como dito anteriormente, fazendo prever expressamente no texto a necessidade de que a conduta tenha sido praticada mediante dolo ou culpa, a doutrina passou a acreditar que estava pacificada a questão.
Nos dizeres de Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.119)
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em 27 de fevereiro de 2019 em sede de recurso extraordinário nº 842.846 com repercussão geral, entendeu que o Estado deve responder diretamente e de forma objetiva, por força do disposto no artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, devendo ser proposta contra o Estado ou Distrito Federal, a qual é vinculado aquele Delegatário que causou o dano. Tendo o Ente Federativo o dever de regresso em face do Delegatário causador do dano, se tiver agido com dolo ou culpa, sob pena de responder por Improbidade Administrativa.
Nesse sentido, Ministro Luiz Fux, relator da Ação em sua decisão fez constar que, não obstante o exercício da atividade se dê em caráter privado, por delegação do Poder Público, o regime de direito público norteia relevantes aspectos desta atividade. Como a atividade é estatal e o titular é o Estado, caberia à este responder nos termos do artigo 37, § 6º da Carta Magna.
Repare-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal corroborou com a tese da responsabilidade subjetiva do Delegatário, ao afirmar que caberá regresso em face deste, se tiver agido com dolo ou culpa. Assim, seja como for, a questão está pacificada no nosso país.
Considerações finais
O presente trabalho tratou da natureza jurídica da atividade notarial e registral como um serviço público de natureza jurídica e intelectual exercido por uma pessoa física, aprovada em concurso público de provas e títulos que recebe uma Delegação do Ente Federativo, com status constitucional. As atividades próprias estão elencadas na lei 8935/1994.
Tratamos, aqui, também, de estabelecermos a natureza jurídica do Notário e Registrador como um Agente Público da espécie Particulares em Colaboração com o Poder Público.
Tal introdução foi de suma importância pra tentarmos compreender todas as controvérsias e nuances à respeito da Responsabilidade Civil do Notário e Registrador edo Estado Delegante.
Foram apresentadas as posições doutrinárias à respeito das diversas interpretações do artigo 22 da lei 8935/94 realizadas ao longo dos anos, antes e depois da alteração feita pela lei 13286 de 2015, assim como os posicionamentos dos Tribunais Superiores.
Coaduno com o entendimento de parte da doutrina de que a responsabilidade deve ser direta do Notário e Registrador por força do previsto no artigo 22 da lei 8935/1994, na modalidade subjetiva. É que o comando constitucional do artigo 37, § 6º da Carta Magna faz alusão à uma responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos. A Delegação é feita a um particular, pessoa física que pratica os atos sob sua conta e risco. As Serventias Extrajudiciais são desprovidas de personalidade jurídica e possuem a natureza de centros de atribuições para as práticas de atos previstos na lei 8935/94 e, dentro das circunscrições autorizadas a atuar nos termos das Organizações Judiciárias de cada Estado.
Assim, a responsabilidade deve ser subjetiva, frente à nova redação dada ao artigo 22 da lei 8935/1994.
No que se refere à responsabilidade do Estado, nesses casos, entendo ser a mais correta a corrente que a trata como de natureza subsidiária. Esta se dá em decorrência da titularização da atividade e da natureza de serviço público. Assim, na insuficiência de recursos pelo Titular de Serventia para arcar com a indenização ou compensação de dano, o Ente Delegante deve ser acionado para o pagamento de tais verbas ao prejudicado. Só poderíamos entender que a Responsabilidade seria solidária se houvesse norma constitucional tratando da responsabilidade direta dos Estados, nesses casos. É regra máxima do direito ciivl que solidariedade não se presume; decorre de lei ou da vontade das partes, conforme o disposto no artigo 265 do Código Civil Brasileiro. Outro fundamento importante para afastarmos a solidariedade aqui é que se a responsabilidade do Estado é objetiva e a do Notário ou Registrador é subjetiva, entender que haveria solidariedade seria trazer uma discussão à respeito de dolo ou culpa à uma ação em que o Estado figurando no pólo passivo bastaria comprovar o nexo de causalidade e o dano.
Não obstante este posicionamento, conforme exposto neste trabalho, não foi o seguido pelo Supremo Tribunal Federal. A Suprema Corte pacificou o tema ao tratar como de responsabilidade direta e objetiva do Estado com a necessidade de entrar com ação de regresso em face do Notário ou Registrador causador do dano, sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa.