A presente análise se sustenta na previsão constante no artigo 1.831 do Código Civil, que trata especificamente sobre o direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, quando se propicia ao cônjuge supérstite o direito de permanecer residindo no imóvel que servia de moradia do casal independentemente do regime de bens
 
Para além da inteligência do texto normativo, que culminava com o entendimento equivocado sobre a aplicação do direito real de habitação, a própria jurisprudência trazia posicionamentos contraditórios, contribuindo ainda mais para a instauração da dúvida quanto à aplicação do instituto, especialmente diante da existência de coproprietário estranho à sucessão.
 
Dentro desse panorama, cediço que quando analisado o instituto do direito real de habitação sem o necessário cotejo com outros institutos importantes, sua generalização acaba se firmando como regra, criando-se a partir daí uma falsa ideia de que basta o óbito de um dos cônjuges para a satisfação do direito do cônjuge supérstite de manter-se no imóvel sem que aos demais herdeiros seja possibilitado o exercício do seu direito decorrente da percepção do seu quinhão. Todavia, há que se destacar que tal regra não é absoluta no caso concreto.
 
Todas as variáveis na aplicação do instituto devem ser observadas, como por exemplo, a existência de herdeiros; se há copropriedade; se há condomínio instituído; a existência de relação de comodato, casos em que o pedido de reintegração de posse estaria amparado, pois a manutenção do imóvel em favor do cônjuge supérstite estaria desprestigiando aquele que seria o legítimo proprietário desse bem em discussão.
 
Diante disso, a jurisprudência vem assentando o entendimento de que não há direito real de habitação no caso de copropriedade de terceiro pactuada antes do óbito e não no início da partilha.
 
Assim se apresenta o entendimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, senão vejamos:
 

APELAÇÃO CÍVEL. IMISSÃO DE POSSE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO DE CÔNJUGE SUPÉRSTITE. AFASTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE LIMITAR O DIREITO DE PROPRIEDADE DO COPROPRIETÁRIO E FILHO DA FALECIDA. SENTENÇA CONFIRMADA. Descabido o pleito de reconhecimento do direito real de habitação, pois implicaria em limitação ao direito de propriedade de José Mário T.C., pessoa legítima para reaver a posse de imóvel que lhe é próprio na condição de proprietário, nos termos do artigo 1228 do CC, e de sucessor, eis que filho da falecida. Apelação desprovida, por maioria. (Apelação Cível Nº 70077465805, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Julgado em 04/04/2019).
 
(TJ/RS – AC: 70077465805 RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Data de Julgamento: 04/04/2019, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 12/04/2019)

 
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão, em sede de Embargos de Divergência, firmou o entendimento de que, havendo copropriedade de terceiro anterior à abertura da sucessão, há impedimento ao reconhecimento do direito real de habitação:
 

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COPROPRIEDADE DE TERCEIRO ANTERIOR À ABERTURA DA SUCESSÃO. TÍTULO AQUISITIVO ESTRANHO À RELAÇÃO HEREDITÁRIA.  1. O direito real de habitação possui como finalidade precípua garantir o direito à moradia ao cônjuge/companheiro supérstite, preservando o imóvel que era destinado à residência do casal, restringindo temporariamente os direitos de propriedade originados da transmissão da herança em prol da solidariedade familiar. 2. A copropriedade anterior à abertura da sucessão impede o reconhecimento do direito real de habitação, visto que de titularidade comum a terceiros estranhos à relação sucessória que ampararia o pretendido direito. 3. Embargos de divergência não providos.
 
(STJ – EREsp: 1520294 SP 2015/0054625-4, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 26/08/2020, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 02/09/2020)

 
No acórdão da decisão, a relatora, ministra Isabel Galotti afirmou que o direito real de habitação possui a finalidade de garantir a moradia ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, preservando o imóvel que servia de residência para a família, independente do regime de bens adotado, conforme assenta o código civil.
 
Entretanto, o mais importante nessa decisão se apresenta na fundamentação do seu voto, proferido com base no entendimento do ministro Luís Felipe Salomão, em caso assemelhado, nos seguintes termos: “o direito real à habitação limita os direitos de propriedade, porém quem deve suportar tal limitação são os herdeiros do de cujus, e não quem já era proprietário do imóvel antes do óbito”.
 
Diante disso, a conclusão da ministra fora de que “no caso em debate, entendo que tal direito não subsiste em face do coproprietário embargado, cujo condomínio sobre a propriedade é preexistente à abertura da sucessão do falecido (2008), visto que objeto de compra e venda registrada em 1978, antes mesmo do início do relacionamento com a embargante (2002)”.
 
Oportuno salientar que toda narrativa se estrutura no sentido da instituição de um condomínio que se extingue com o falecimento do de cujus, devendo assim ser assegurado o direito de propriedade daquele que adquiriu o imóvel antes da união do casal.
 
Pois bem, em uma análise dos acórdãos supra, conclui-se que muito embora a lei não seja clara, deixando de trazer exceções, esse entendimento firmado recentemente tem o condão de minimizar a insegurança jurídica instaurada pelo artigo 1.831 do Código Civil, se revelando inequívoco ao dispor que o estranho à sucessão terá seu direito garantido de haver o imóvel para si.
 
Por fim, em decorrência lógica de tudo que tem sido observado na jurisprudência, não há como se conceber a manutenção do imóvel em favor do cônjuge supérstite quando houver copropriedade anterior, podendo-se ir até mais longe, especialmente, quando além de coproprietários, existem herdeiros, justamente porque, diante de um caso concreto, a depender do imóvel objeto da sucessão, não haverá como efetivar o direito dos primeiros, sem efetivar o direito dos segundos.