No julgamento dos RE 878.694/MG e 646.721/RS sob o rito da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal terminou por equiparar a união estável ao casamento em relação a certos aspectos da sucessão causa mortis
 
Já escrevemos anteriormente sobre a possibilidade de reconhecimento de direitos previdenciários a amantes em virtude do julgamento do RE 1.045.273/SE. O julgamento foi suspenso e deverá ser retomado virtualmente na próxima sexta-feira, dia 11 de novembro de 2020. Três ministros manifestaram-se pelo improvimento do recurso e, portanto, pelo não reconhecimento de tais direitos previdenciários: Alexandre de Moraes (o relator), Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Contudo, o ministro Fachin abriu divergência pela atribuição de efeitos previdenciários às “uniões estáveis” simultâneas, no que foi acompanhado por Rosa Weber, Luis Roberto Barroso, Carmen Lúcia e Marco Aurélio. Os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Nunes Marques ainda não votaram.
 
Destes votos, destaco os dos ministros Luis Roberto Barroso, Marco Aurélio e Rosa Weber que reconhecem a possibilidade de efeitos previdenciários a uniões simultâneas, por se tratar de união estável e não de casamento. O ministro Marco Aurélio inclusive chamou atenção para o fato de que foi relator do RE 397.762/BA no qual proferiu o voto condutor que culminou com a negativa do rateio da pensão previdenciária entre a esposa do falecido e a concubina. Para ele, o caso não guarda semelhança com aquele precedente, pois ali se tratava de casamento, de modo que a união paralela naquele caso configuraria concubinato.
 
Caso tal entendimento venha a prevalecer, estaremos diante de uma grande incoerência do Supremo Tribunal Federal, a contrariar seus próprios entendimentos. Explico melhor.
 
No julgamento dos RE 878.694/MG e 646.721/RS sob o rito da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal terminou por equiparar a união estável ao casamento em relação a certos aspectos da sucessão causa mortis. Naquele julgamento, o ministro Luis Roberto Barroso (relator) asseverou que o legislador infra-constitucional pode atribuir regimes jurídicos diversos ao casamento e a união estável, mas “só será legítima a diferenciação de regimes entre casamento e união estável se não implicar hierarquização de uma entidade familiar em relação à outra, desigualando o nível de proteção estatal conferido aos indivíduos”. Ademais, na trilha do entendimento já esposado pelo ministro Luiz Fux na ADPF 132, não há que se admitir hierarquia entre casamento e união estável, porquanto entre estes dois institutos inexiste “distinção ontológica”.
 
Ainda segundo o ministro Luiz Fux, o tratamento diferenciado entre as entidades familiares constituídas por casamento e união estável justifica-se apenas “em virtude da solenidade de que o ato jurídico do casamento – rectius, o matrimônio – se reveste, da qual decorre a segurança jurídica absoluta para as relações dele resultantes, patrimoniais (como, v.g., o regime de bens ou os negócios jurídicos praticados com terceiros) e extrapatrimoniais”. Assim, união estável e casamento “funcionarão substancialmente do mesmo modo”, segundo o entendimento do ministro Fux (ADPF 132). Este entendimento foi expressamente adotado como fundamento do acórdão no julgamento do RE 878.694/MG e do RE 646.721/RS, ambos sob o rito da repercussão geral.
 
O dever de fidelidade recíproca no casamento (Código Civil, art. 1.566, I) impõe-se em virtude da solenidade do ato? Parece-nos que não. Ora, se inexiste diferença “ontológica” entre casamento e união estável, parece-nos que também devem ser imputados aos conviventes na união estável os deveres previstos no art. 1.566 do Código Civil: fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio conjugal; mútua assistência; sustento, guarda e educação dos filhos; respeito e consideração mútuos.
 
Há um interessante precedente do Superior Tribunal de Justiça que ilustra quais serão as possíveis consequências da formação de uma maioria no sentido de dar provimento ao recurso e permitir o reconhecimento de efeitos previdenciários a uniões simultâneas. Trata-se de agravo regimental contra decisão que negou seguimento a agravo em recurso especial interposto por suposta companheira de falecido delegado de polícia federal, alegando que sua convivência com o de cujus iniciou-se apenas quando ele já se encontrava separado de fato de sua esposa, e que após o falecimento dele apenas ela e outra mulher pediram reconhecimento da união estável; mas a outra postulante foi derrotada em sua pretensão. Afirma também que o entendimento do Tribunal de origem no sentido de não reconhecer a união estável tendo em vista as inúmeras relações mantidas pelo de cujus não tem amparo probatório e não pode prevalecer.
 
O Tribunal de origem já havia delimitado os contornos fáticos da questão, indicando que havia a pretensão de divisão da pensão previdenciária entre a esposa viúva e a suposta companheira. Ocorre que a viúva já percebia apenas 50% da pensão, pois a outra metade já era dividida entre os “inúmeros filhos do finado com outras mulheres”. Ademais, a viúva carreou provas aos autos que comprovam que o seu falecido marido relacionou-se com 25 mulheres, e que teve filhos com algumas. Daí porque o Tribunal de origem concluiu que não seria possível falar em “união estável com exclusividade quando se trata de policial federal com várias mulheres”. O Tribunal de origem consignou que união estável somente deve ser reconhecida diante da possibilidade de ser convertida em casamento, nos termos do § 3º do art. 226 da Constituição Federal. Acrescentou também que a “seriedade do instituto jurídico da união estável demanda pelo menos exclusividade de relações sexuais, e não como aqui acontece com 25 mulheres”, ressaltando que o reconhecimento de tais uniões poderia afetar o interesse de menores de idade que também dependem da pensão previdenciária.
 
Assim, por considerar que a decisão do Tribunal de origem estava de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a Quarta Turma negou provimento ao recurso por unanimidade nos termos do voto do ministro Raul Araújo. Isto também pode suscitar reflexões sobre o fenômeno da “não-monogamia consensual” (consensual non-monogamy, ou CNM) na atualidade.
 
As relações “CNM” abarcam desde o poliamorismo até diversos tipos de relações sexualmente abertas. Uma pesquisa indica que cerca de 3% dos norte-americanos adultos encontram-se atualmente em algum tipo de relacionamento “aberto”. Indaga-se, contudo, quão consensual é uma relação não-monogâmica “consensual”? Uma “dona-de-casa, desempregada, introvertida e dependente de um parceiro economicamente bem sucedido, extrovertido e aberto a aventuras (sexuais e afetivas) realmente tem condições de se opor ao seu parceiro que deseja uma relação aberta? A resposta padrão no sentido de que deve bastar uma comunicação franca entre os parceiros não parece ser suficiente (e honesta), especialmente em situações nas quais um dos parceiros tem um grande poder e influência de fato sobre o outro.
 
Para ilustrar a questão da consensualidade nas relações não-monogâmicas, tome-se o exemplo de um conhecido ex-jogador de futebol brasileiro. A imprensa divulgou que uma das ex-parceiras deste jogador ajuizou pedido de reconhecimento de união estável e pensão compensatória. Ela afirma que manteve “trisal” com o ex-jogador e outra mulher consensualmente: “Não dormíamos todos juntos. Tudo o que houve entre nós foi às claras. Ele nos propôs uma vida de casados porque disse que não conseguia viver sem as duas e nós éramos amigas, nos dávamos bem”. Contudo, o ex-jogador desejava manter relações com outras “amigas” que não apenas as duas “amigas” com quem já residia: “Ele disse que tinha amigas e que elas iriam ligar para ele quando quisessem; e se eu não estava satisfeita era pra pegar minhas coisas e ir embora”. Após discutir e ser empurrada pelo jogador, ela ainda relata que deixou de conviver com ele, apesar da outra “amiga” haver continuado a residir com o ex-jogador sob o mesmo teto. Admitindo-se como verdadeiros os fatos narrados, o caso deste ex-jogador de futebol ilustra bem que as relações não-monogâmicas não são necessariamente consensuais, ou que podem se iniciar consensualmente (pois uma parceira admitiu a introdução de apenas mais uma pessoa na relação) e se converterem em uniões não consensuais (com a introdução de outras pessoas na relação sem o consentimento dos integrantes iniciais).
 
Admitir a divisão da pensão previdenciária em tais situações é permitir o sacrifício do sustento do viúvo ou da viúva, em razão da partilha da pensão em tantos quantos foram os relacionamentos afetivos e sexuais estáveis do de cujus; em prejuízo também da pensão previdenciária eventualmente devida aos filhos menores e/ou deficientes do falecido.
 
Caso o Supremo Tribunal Federal admita a possibilidade de conferir efeitos a duas uniões simultâneas, o que impedirá o reconhecimento de efeitos a três, cinco ou vinte cinco uniões simultâneas? Por fim, é de se questionar se a vontade dos participantes da relação é suficiente para tornar lícitas as relações simultâneas ao casamento ou a união estável.
 
Veja-se que, por exemplo, não é reconhecido às gestantes o poder de dispor “de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto” (lei 9.434/97, art. 7º, § 7º); e que ao consumidor pessoa física não é reconhecido o direito de renunciar a responsabilização do fornecedor por vícios de qualquer natureza (lei 8.078/90, art. 51, I). É a vulnerabilidade da gestante e do consumidor que justificam tais limitações a liberdade de disposição.
 
As relações de união estável e de casamento também podem abarcar situações de vulnerabilidade que justificam restrições quanto ao autorregramento da vontade. Infelizmente, em razão da dependência econômica e afetiva, ou em vista das necessidades dos filhos menores ou deficientes; muitas pessoas se sujeitam a relacionamentos abusivos. Se o STF chancelar o reconhecimento dos efeitos previdenciários das uniões simultâneas, estas pessoas também se verão prejudicadas em relação aos meios para o seu sustento. É em atenção a estas questões que a doutrina tradicionalmente qualificava os deveres conjugais como de ordem pública. Presumir igualdade e autonomia plena em tais relações parece ser irreal e termina por contribuir para o aprofundamento das desigualdades nas relações domésticas e familiares.